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Afinal, o que é gesto? Para Galard (2008, p.82), palavras prolongam palavras, gestos resolvem-se em gestos. Ou seja, um gesto retribui um gesto, bastando-se e, enquanto palavras, estendem o discurso tornando-o um discurso sem término, ao contrário do gesto que, mesmo que se dilate também nas suas significações, resolve-se nele mesmo enquanto palavras dependem sempre de mais palavras e assim por diante. Na esfera da comunicação, uma vez que palavras ampliam o discurso, a comunicabilidade incessável não permite uma conclusão ainda que provisória, enquanto que o gesto autoriza uma ideia conclusiva. Nos filmes, palavras não dão conta da interpretação (ainda que o recurso dos diálogos sejam complementos do ato), os gestos resolvem brevemente a informação (ou informações) que o ato deseja comunicar. Na cena selecionada (figura 13) do filme O Planeta dos Macacos: A Origem (WYATT, 2011), o gesto de segurar o garfo comunica toda a relação entre o homem (Charles) que sofre Alzheimer, perdendo, portanto, a memória dos costumes e etiquetas humanos, e o primata (Ceasar) que, por ser cobaia de um experimento para cura do Alzheimer, evolui, adquirindo costumes e etiquetas humanas. Afinal, o acontecimento em si, a perda dos costumes e etiquetas humanos, é senão expressão do gesto – aquela concepção de que a observação dos movimentos corporais revelam mais que as palavras –, pois o homem (e, no caso, também o primata) “é um ser multissensorial que, de vez em quando, verbaliza” (BIRDWHISTELL apud SILVA36). Através das sensações, o homem imprime seus anseios (corporalmente); o gesto, por sua vez, associa sensações a signos culturais, comunica. A função do gesto talvez seja de contextualizar as sensações humanas (e responder assim os porquês deste ou daquele movimento), pois gesto é cultura, mas é cultura social (e cultura pessoal)37 no campo das relações entre sujeito e meio, sempre associada à cultura da percepção corporal (memória-corporal). Se depende de um corpo para ser comunicado, é permitido assim dizer que, sendo gesto, corpo se expressando, e sendo gesto, fundamento análogo de cultura, gesto é a cultura se expressando através do corpo38.

36 In: SILVA, Lúcia Marta Giunta da et al. Comunicação não-verbal: reflexões acerca da linguagem

corporal.Rev. Latino-Am. Enfermagem [online]. 2000, vol.8, n.4, pp.52-58.

37 Chamo de cultura social aqueles signos culturais que pertencem a um coletivo e cultura pessoal aqueles signos

que pertencem somente ao sujeito (seu modo particular de ser).

38 Segundo Pittergen e Smith (apud ECO, 2013, p.143), “gestos e movimentos do corpo não são natureza humana

instintiva, mas sistemas de comportamento suscetíveis de serem aprendidos, que diferem acentualmente de cultura para cultura”. Corpo será assim compreendido como veículo de expressão cultural e gesto como a manifestação desta expressão – gesto é projeção da cultura.

Figura 13. Frames de O Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011)

Segundo Flusser (2014, pp.20-21), os gestos se diferenciam entre gestos puramente

expressivos e gestos puramente impessoais (informativos). Para não causar dúvidas, abro

parênteses inteirando que o que Flusser chama de expressivos são os gestos que chamo de pantomímicos (vide subcapítulo 4.3). Para este estudo, consideramos que todo gesto comunica, porém alguns formam (são gestos icônicos), outros informam (são gestos exordiais ou concomitantes – vide igualmente subcapítulo 4.3): “nos gestos comunicativos, a teoria geral deveria distinguir entre o gesto enquanto expressão e enquanto mensagem.[...] São dois códigos diferentes que participam do mesmo gesto” - a liberdade do gesticulador (expressão) e a recepção subjetiva (ao decodificar a mensagem).

Se informar significa estar dentro de uma forma, poderíamos fazer uma confusão ao separar gestos expressivos de gestos informativos. Para evitar equívocos, considerarei gesto expressivo como aquele que extrai do ato a mensagem, e gesto informativo como aquele que se abstrai no ato, informa sem afetar. Uma pessoa qualquer pegando o garfo de modo 'adequado', é gesto informativo, já Charles pegando o garfo (figura 13) é gesto expressivo. E, por sua vez, o primata Ceasar pegando o garfo de modo 'adequado', gesto expressivo amplificado.

A liberdade do gesticular se situa na esfera do filme, a cultura estabelecida no ato em questão. Essa cultura, por sua vez, determina como o gesto irá se transpor (ser composto e exposto) – seria assim antagônico falar em gesto expressivo como o gesto que articula liberdade. Para tal compreensão, é preciso abstrair a liberdade do gesto enquanto elemento representado, mas entender essa liberdade no campo da construção do gesto. Desta forma, o autor do filme determina a cultura que irá ser estabelecida no filme, por exemplo o gesto saudação de Spock (figura 3), que se transpõe (por sugestão do ator Leonardo Nimoy) de uma cultura judaica, o gesto feito por um rabino em uma sinagoga, para uma cultura que somente existe na série

Jornada nas Estrelas (dos vulcanianos, seres do planeta Vulcan).

O gesto articulado nessas duas esferas – o gesto expressivo e o gesto informativo – ademais, pode ser compreendido como o gesto que prontifica a comunicação, no sentido de uma urgência (expressivo), e o gesto que conduz o receptor à informação (informativo), como é o caso da cena (figuras 14, 15 e 16) de A Testemunha (WEIR, 1985) em que Samuel, uma criança que presencia um assassinato, identifica o assassino e precisa comunicar essa informação ao detetive John Book. O gesto expressivo se encontra no olhar e apontamento, gesto do dedo (figura 14), enquanto expressão emotiva do transmissor (Samuel), e o gesto informativo, igualmente no gesto do dedo, só que agora enquanto condução da mensagem, reforçado pelo olhar do receptor, Book. A mensagem completa-se por um plano detalhe (figura 15) de uma foto do assassino. O gesto expressivo também se encontra logo em seguida, na personagem Book, no movimento (figura 16) que ele faz com a mão descendo o dedo de Samuel, de forma a ocultar aquele gesto expressivo do garoto (uma vez que o assassino identificado é um policial condecorado que trabalha naquela delegacia em que ambos estão).

Figura 14. Frame de A Testemunha (WEIR, 1985)

Figura 15. Frame de A Testemunha (WEIR, 1985)

Fenomenologicamente, gesto expressivo e gesto informativo são fundamentos teóricos de análise (subjetiva) de um estudo do próprio gesto, mas considerando colocar o gesto em prática, qualquer que seja a área da comunicabilidade, no caso, o cinema, gesto expressivo e gesto informativo podem ser considerados como mecanismos para colocar em práxis a poiesis e, desta forma, intensificar o gesto. Ainda que sejam elementos subjetivos (dependem de uma comunicação na esfera da cultura), são ferramentas de construção fílmica, pois a concepção gestual se estabelece na associação entre códigos imagéticos e códigos conceituais.

Códigos imagéticos (como filmes) dependem de pontos de vista predeterminados: são subjetivos. São baseados em convenções que não precisam ser aprendidas conscientemente: elas são inconscientes. Códigos conceituais (como alfabetos) independem de um ponto de vista predeterminado: são objetivos. São baseados em convenções que precisam ser aprendidas e aceitas conscientemente: são códigos conscientes. Portanto, a ficção imaginativa relaciona-se com os fatos de um modo subjetivo e inconsciente, e a ficção conceitual faz o mesmo de maneira objetiva e consciente. (FLUSSER, 2007, p.114)

Gesto é a práxis do discurso.

Gesto é, de certa forma, o ato livre da teoria, é, na esfera do discurso, aquilo que informa pela sensação. Sensação é percepção pelos sentidos, é comunicação pelo corpo. Através de Flusser (2014, pp.16-17), podemos entender que gesto é movimento do corpo, corpo este, humano, ou seja, o gesto é a impressão da movimentação humana, mas nem todo movimento do corpo é gesto. Na esfera do involuntário, o corpo se expressa por necessidade natural, ou seja, por conta de reflexos, estímulos que o cérebro provoca na instância da sobrevivência (por exemplo, espasmos musculares ocasionados para aquecer o corpo no frio), isso não é gesto. Para se tornar gesto, a dinâmica do corpo tem que estar na esfera da cultura, mas não preso a uma cultura precisa, e sim libertos dentro da cultura (livres para dominar a cultura)39.

Gestos podem ser classificados por critério fenomenológico: pelo corpo que se move no gesto. […] É claro que nem todo movimento do corpo humano é gesto. Movimentos satisfatoriamente explicáveis não são gestos, por não articularem a liberdade. O movimento das pálpebras sob luz forte e dos punhos sob dor forte não é gesto, embora se assemelhe fenomenologicamente a gesto. (FLUSSER, 2014, p.17)

Em outras palavras, o gesto dialoga, não no âmbito do instinto, mas no âmbito da comunicabilidade, ou seja, o corpo que demonstra o gesto, articula-se com a maestria da apropriação da língua, ele conhece os códigos e, a partir dele, controla a cultura40. No filme, quando identificamos o comportamento humano numa personagem (e desta forma, a personagem não precisa ser humana, pode ser um animal, como em O Planeta dos Macacos ou um robô como em Eu, Robô) e reconhecemos a nós mesmos na personagem, estamos nos relacionando através do gesto, identificamo-nos no gesto.

O gesto é, então, não um elemento dominado (no sentido do discurso) mas elemento dominador (impera e controla o discurso), uma vez que se comunica por si só. Mas gesto não é discurso fechado, é discurso subjetivo e, desta forma, cada gesto é livre para ser interpretado de maneira distinta, por cada interpretante. Se há liberdade41 no modo como o gesto é interpretado, há liberdade no modo como o gesto se manifesta.

39 Um ensaio mais profundo das analogias entre gesto e corpo encontram-se no capítulo 8.

40 Controlar a cultura, no sentido de criar novos significados culturais, inventar cultura, como fazem os artistas,

roteiristas e escritores.

41 Ainda que haja liberdade no modo como o gesto é interpretado, é necessário reconhecer que essa liberdade tem

No cinema, técnica e aparato técnico são necessários para se construir o gesto, uma vez que o cinema é linguagem conduzida por imagem. Segundo Flusser (2011, p.23), “imagens são mediações entre o homem e o mundo”. A percepção primeira do espectador é senão a imagem. O espectador primeiro vê. A imagem é introduzida no seu cérebro, processada e depois codificada. O percurso do filme é este: imagem, processamento e codificação. O gesto está incorporado na imagem. Ele é fruto da codificação que o cérebro faz da imagem que nele foi introjetada. Codificação essa que depende de códigos que estão na linguagem do filme assim como dos códigos que pertencem à cultura do espectador. No entanto, Agamben (2015, p.22) propõe que “o elemento do cinema é o gesto e não a imagem”.

Para evitar equívocos, uma vez que a colocação de Agamben configura-se, ao longo desta tese, como uma das assertivas sobre o gesto, desdobro, neste ponto, sobre essas dúbias: sim, o gesto é manifestado no filme através da imagem, ainda que a nossa mente registre uma associação entre gesto e imagem e necessite da imagem para criar uma representação mental do gesto. É a representação conotativa do gesto, o elemento pleno no cinema, uma vez que a significação do gesto é que o suspende. Imagens mediam a relação entre espectador e filme, mas é uma relação passiva até que se estabeleça o gesto. Podemos assim propor que a imagem é, nesse contexto, técnica e gesto é poética.

E quem comunica o gesto no cinema? Ainda que seja a personagem (interpretado pelo ator, retirando casos de muppets ou personagens desenhados ou criados por computação gráfica), o gesto no cinema é comunicado pela máquina, são planos e enquadramentos que determinam os pontos de vista da cena, modos como vemos o ato, portanto o gesto.

[...] no cinema, esse desempenho [o ator exibir sua arte] é apresentado ao público por meio de uma máquina. Duas consequências decorrem daí. A máquina que transmite ao público a encenação do ator não está obrigada a respeitá-la inteiramente. [...] não sendo ele mesmo [ator] a interpretar para o público, diferentemente do artista de teatro, não tem a possibilidade de adaptar a atuação de acordo com as reações do público. (BENJAMIN, 2015, pp.21-22)

A técnica aliada aos aparatos técnicos nos permite, no cinema, observar detalhes que não somos capazes de perceber. Nós, espectadores, somos capazes de testemunhar uma ação, um movimento e até mesmo um gesto, mas as minúcias do gesto somente a câmera (e os cortes de cena e o tempo dilatado do ato fílmico) nos permite notar.

Por mais que conheçamos o modo de andar das pessoas em seus traços mais gerais, nada sabemos de seu comportamento na fração de segundos em que dão um passo. Embora nos sejam familiares, grosso modo, os gestos de pegar um isqueiro ou uma colher, pouco sabemos do contato real entre a mão e o metal, para não mencionar como nossos diferentes estados de espírito são capazes de mudar esse contato. Aqui intervêm a câmera e seus acessórios, subindo e descendo, cortes e closes, sequencias longas ou rápidas, ampliações e reduções. Ela nos abre pela primeira vez o inconsciente óptico, do mesmo modo que a psicanálise nos revelou a experiência do inconsciente pulsional. (BENJAMIN, 2012, p.30)

Nem todo gesto é percebido, quando não estamos atentos a eles. A distração ou alienação são fatores determinantes no distanciamento do observador em relação ao gesto, criam abismos. No cinema, é possível construir atalhos (pontes) que reafirmam o gesto buscando a atenção do espectador, rompendo aquela ideia de passar despercebido. Nos filmes, os gestos são potencializados pela técnica, o que nos permite ver o contato real entre a mão e o talher, abrindo o inconsciente óptico, como coloca Benjamin. Dentre esses diversos procedimentos, destaco três importantes fundamentos da técnica cinematográfica: o enquadramento (aliado ao plano de câmera), que direciona o olhar do espectador para o foco do gesto; a atuação, pois o ator precisa interpretar o gesto dentro da ação de forma que esse possa ser suspenso; e a montagem que decide o tempo de cada plano.

Mas antes de adentrarmos as regras fotográficas, é importante ressaltar que gestos não estão apenas no corpo em si, mas nas manifestações de corpos agregados a outros corpos. Considerando gestos nos quais se movimentam outros corpos (FLUSSER, 2014, p.17-18), Flusser institui o termo “corpo gesticulável (capaz de exprimir uma liberdade no seu movimento)”. Esse tipo de gesto “pode ser especificado tomando por critério o tipo de instrumento que nele se move. Assim seriam distinguidos gestos como os de “martelar”, “pincelar”, “remar”, “guilhotinar” ou “escrever”.”42 (Ibid. p.19). Cada uma dessas ações é, ainda, potencializada pelo instrumento que a elas se atrelam, como extensores da parte do corpo a que se relacionam.

Instrumentos são prolongações de órgãos do corpo: dentes, dedos, braços, mãos, prolongados. Por serem prolongações, alcançam mais longe e fundo a natureza, são mais poderosos e eficientes. Os instrumentos simulam o órgão que prolongam: a enxada, o dente; a flecha, o dedo; o martelo, o punho. (FLUSSER, 2011, p.39)

42 Através do estudo dos instrumentos que prolongam o corpo, portanto, o gesto, é possível afirmar que gesto não é representação por meio de ação e movimento (apenas) no corpo, mas gesto é representado pela função executada (o ‘martelar’, o ‘pincelar’, o ‘remar’, o ‘guilhotinar’, o ‘escrever’, e assim por diante). Gesto configura-se a função executada (e cada função, por sua vez, tem suas particularidades culturais conforme meio em que está inserida).

Considerando essa potência do instrumento em se tornar extensor do gesto, ele se torna representação do corpo, mesmo que já não esteja mais fisicamente conectado a ele. É o osso em 2001: uma odisseia no espaço (KUBRICK, 1968).

Figura 17. Frames de 2001: uma odisseia no espaço (KUBRICK, 1968)

É interessante notar como os instrumentos carregam em si a linguagem de uma cultura: códigos que determinam o modus operandi do objeto, tradições e costumes que o envolvem e as pontes que conectam os indivíduos, sejam aqueles que estão envolvidos diretamente com o objeto (o primata, o osso, a pré-história, o homem contemporâneo, o homem do futuro e a máquina), sejam observadores empíricos (o espectador). Em O Planeta dos Macacos: a origem (figura 13), Ceasar auxilia Charles na maneira adequada de pegar o talher (instrumento) e, assim, observa-se o gesto através de um corpo extensor, o garfo. Desse modo, constata-se que

corpus associado a ethos configura cultura.

Nessa sequência de O Planeta dos Macacos: a origem utilizada para elucidar o gesto através de instrumentos, observamos dois enquadramentos que potencializam o gesto. No primeiro frame destacado (figura 18), o olhar do primata direciona-se e nos direciona para o ponto cume do gesto, assim como o olhar de Charles. No segundo (figura 19), o plano de detalhes, destacando o garfo e as mãos, centrado no enquadramento da cena, reforça os instrumentos e movimentos que conduzem o gesto.

Desenvolvida ao longo da história da pintura, e que ganhou importância maior com os pintores renascentistas, [a regra dos terços] é uma técnica que auxilia no enquadramento dos temas propostos. Divide-se a imagem em nove quadros, traçando duas linhas horizontais e duas verticais imaginárias, e posicionando nos pontos de cruzamento o assunto que se deseja destacar para se obter uma foto equilibrada. (CAPELATTO, 2014, p.58-59)

A harmonia da composição imagética proposta pelos renascentistas, como Michelangelo e Da Vinci, pressupõe colocar o objeto-tema no centro da imagem, no quadrante central, ou sobre as linhas ao seu redor (regra dos terços). Ainda, para melhor precisão do foco do espectador, quando se trata de personagem, a altura de seus olhos deve se encaixar nos pontos de intersecção das linhas (ou sobre as linhas) horizontais e verticais. Essa é a posição em que se encontram os olhos do primata Ceasar.

Figura 18. Estudo de cena de Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011)

Figura 19. Estudo de cena de Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011)

O elemento do cinema é o gesto e não a imagem. Uma vez que tem o seu centro no gesto e não na imagem, o cinema pertence essencialmente à ordem da ética e da política (e não simplesmente àquela da estética). […] O gesto abre a esfera do éthos como esfera mais própria do homem. (AGAMBEN, 2015, pp. 22-23)

Segundo Agamben, “o elemento do cinema é o gesto e não a imagem”. Sendo o gesto a estrutura que conduz o filme, e estando ele “na esfera do éthos”, o gesto afirma-se assim como o elemento que configura todos os códigos fílmicos: desde os informativos como os expressivos. Por uma questão cultural, o homem supõe ser guiado pela imagem, apesar de, de fato, ser guiado pelo gesto. A imagem por si apenas conduz o belo, na ótica kantiana, aquilo que simplesmente agrada. Agrada no sentido de fazer bem na esfera da comoção. Agradar não no sentido de opor-se ao enojo (repugnar), mas no caráter de agregar agrado e enojo - ambos podem ser belos. Dessa forma, o enojo incomoda, mas pode agradar (agradar=atrair), pois pode se tornar sublime – o belo da morte representado pelo Sargento Elias, personagem interpretada por DeFoe em Platoon (STONE, 1986).

Figura 20. Frame de Platoon (STONE, 1986)

Imagens têm o propósito de representar o mundo. Mas, ao fazê-lo, interpõem-se entre mundo e homem. Seu propósito é serem mapas do mundo, mas passam a ser biombos. O homem, ao invés de se servir das imagens em função do mundo, passa a viver em função das imagens. (FLUSSER, 2011, p. 23).

Na esfera do belo, não são necessários códigos específicos para se aproximar da imagem, é puramente afeitva essa relação. Todavia, desta forma, o belo – apenas enquanto imagem que agrada – não permite envolvimento outro senão o de um registro estético e afetivo (no âmbito da emoção pura) através apenas dos códigos imagéticos, mas, como ressalta Agamben, o cinema é movido pelo gesto, e o gesto abre a esfera do éthos.

Imagens fílmicas quando ficam apenas na esfera imagética podem até fixar na memória, registradas, mas somente como signos imagéticos, como objetos decorativos, uma vez que se transferem num caráter de aproximação e somente colocam o espectador dentro da cena quando essas se suspendem e, para tal, dependem do gesto (a cultura estética que agrega a cultura social, corporal e pessoal). E, então, a guerra do Vietnã se torna íntima do espectador, que passa a fazer parte dela, torna-se testemunha da morte através do Sargento Elias.

Numa primeira percepção, na esfera da estética, nessa cena de Platoon (figura 20), é possível elucidar como a regra dos terços colabora diretamente com a composição sensorial. O motivo representado, no caso, o Sargento Elias, encontra-se diretamente no centro da cena (ilustrando, assim, com o ponto em que nós, espectadores, observamos em primeira instância ao olhar uma imagem), com os braços estendidos sobre as linhas verticais (eixo segundo de harmonia imagética) e que formam, dessa maneira, a grade de composição das regras dos terços (figura 21). Porém, ainda nessa imagem, é possível observar como esta técnica da mesma forma coopera na segunda instância da relação do espectador com a imagem – na comunicação43 -.

Quando passamos para a esfera da interpretação, observamos os soldados oponentes do Sargento Elias ao fundo: as quatro personagens em cena, posicionadas sobre um mesmo eixo, aquele em que se encontra a cabeça do sargento, que proporciona assim um diálogo, uma relação, entre a personagem central (Sgt. Elias), as demais personagens (figura 22) e o contexto da trama.

43 Segundo Flusser (2011, p.21), imagens são “superfícies que pretendem representar algo”, não apenas no sentido de ilustrar (imageticamente) mas no sentido de gerar significâncias, e portanto, possibilitar comunicação. As imagens, complementa Flusser, “devem sua origem à capacidade de abstração específica que podemos chamar de imaginação. [...] imaginação é a capacidade de codificar fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer e decifrar imagens. O fator decisivo no deciframento de imagens é tratar-se de planos. O significado da imagem encontra-se na superfície e pode ser captado por um golpe de vista. No entanto, tal método de deciframento produzirá apenas o significado superficial da imagem. Quem quiser “aprofundar” o significado e restituir as dimensões abstraídas, deve permitir à sua vista vaguear pela superfície da imagem”, e as técnicas (e teorias) aplicadas à imagem propiciam tal aprofundamento.

Figura 21. Estudo de cena de Platoon (STONE, 1986)

Entre o subjetivo e o objetivo encontra-se a cultura da imagem. Flusser discursa, em sua obra O universo das imagens técnicas (2008), sobre duas instâncias da imagem: a imagem poética e a imagem técnica. A imagem poética é aquela subjetiva, realizada na esfera da

subjetividade 'pura'; a imagem construída a partir da imaginação e sem mediação de aparatos

técnicos, a imagem técnica, por conseguinte, é a imagem mediada por um instrumento (na fotografia, a máquina fotográfica; no cinema, a filmadora). Na primeira, a imagem pertence ao indivíduo que a produz; na segunda, pertence à máquina (ainda que haja um indivíduo operando

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