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Por ‘gesto’ não se deve entender gesticulação: não se trata de movimentos das mãos feitos com a finalidade de sublinhar ou esclarecer. Mas uma atitude de conjunto. ‘Gestual’ é uma linguagem que se baseia sobre o gesto assim entendido: uma linguagem que demonstra determinadas atitudes daquele que as tem diante de outras pessoas. (BRECHT apud BONFITTO, 2013, p.108)

O ar está gelado, mas o sol está quente. Se você veste uma jaqueta, o público entenderá o frio; se você veste camiseta cavada ou abana-se, o público sentirá o calor. No entanto, está ao mesmo tempo frio e calor. Se abaixar a cabeça reprimindo o semblante a frente de uma fotografia, o público pode dizer que a foto lhe traz lembranças tristes; se sorri, a lembrança é positiva. Mas o que faz ficar triste com a foto não necessariamente é o fato representado na foto, mas talvez a lembrança de que aquele fato não vai mais se repetir. Assim como a personagem não necessariamente sente frio porque o ar está gelado ou calor porque o sol está quente.

O gesto é complicado: tem que comunicar o que a personagem sente, mas também tem que comunicar o que acontece exteriormente à personagem. Dizer que a personagem sente frio, mas que ainda assim há lugares em que está calor ou que sente calor apesar do vento frio. Revelar o que lhe traz tristeza: se é o momento retratado na foto ou se é algo que cessou esse momento. E, ainda, se a fotografia em questão não é mostrada ao público (o que não é necessário quando a abordagem é a emoção da personagem e não o contexto da fotografia), cabe ao gesto comunicar não do que se trata a fotografia, mas seu vínculo com a personagem que a observa.

Mas o gesto é traiçoeiro: ele pode enganar (e isso pode ser uma artimanha dramatúrgica excepcional). É Sèverine, em A Belle de Jour, que demostra sua situação de mulher submissa às imposições sociais, porém que, depois (e somente depois), revela uma culpa nessa submissão (seja o medo de confrontar o marido e a sociedade, seja uma melancolia diante de uma conformidade). E Sèverine diz apenas em gestos. E gestos, como coloca Brecht (apud BONFITTO, 2013, p.108), são atitudes diante das outras pessoas. Sèverine é a mulher submissa, que se rende à sociedade, mas é também a Belle de Jour, a mulher que confronta essa imposição social.

Às vezes deparamo-nos com atores solicitando texto para comunicar (no sentido da oralidade, palavra falada pela voz), é uma necessidade humana imposta pela sociedade: aprendemos a nos comunicar pelas palavras e desaprendemos a comunicação pelas expressões das emoções. Deixamos de olhar ou sentir (tato) e passamos apenas a escutar e proferir sons. Então somos levados a dizer: “apesar do sol, está frio” ou “essa foto me lembra fulano, por que tinha que partir?”. O que não quer dizer que devemos omitir todo discurso falado: Shakespeare ou Nelson Rodrigues, por exemplo, têm ótimos e emblemáticos discursos falados que nos revelam emoções e contam muito de forma poética. Palavras podem surgir instintivamente, e podem compor com o gesto. Mas o gesto não depende da palavra para existir enquanto que a palavra depende do gesto (para ser executada, ou para ser interpretada, lembrando que nós seres humanos criamos imagens mentais de cada palavra que processamos).

O gesto é capaz de se revelar no ‘silencio’, assim criando essa possibilidade de se trabalhar pausas sonoras reflexivas, pode, assim, conferir atitudes mais chocantes. Se, em Titus, é dito: Demetrius e Quiron estupraram Lavínia (Marcus e Titus leriam as palavras escritas de Lavinia – e a escrita é parte desta ‘oratória’ –), é menos impactante do que o público assistir ao estupro. Pela longevidade da peça com atos estendidos, em sua época, Shakespeare precisava criar certos reforços (que chamarei de Resgate Pontual) para relembrar o público, já num filme cuja duração é menor ou numa versão teatral com um tempo menor, não é necessário um resgate pontual, o gesto em si perpetua.

Mas o gesto não depende apenas do tempo da peça ou filme para ser lembrado, marcado. O gesto depende de sua magnitude e contextualização. Como ele representa? O gesto pode dizer que está frio uma única vez numa peça ou filme e durante a trama toda lembrarmos que está frio, mas pode dizer que está frio e, em alguns momentos, acharmos que está calor.

A estrutura do gesto é a de um maestro: conduz aos altos e baixos, cria aquilo que deseja. O gesto é simbólico e, portanto, o maestro pode dar a ele o significado que lhe convém, mas o público também criará sua própria interpretação desse gesto: as músicas conferidas pela orquestra não dizem isso ou aquilo, elas têm seus múltiplos significados. Mas há músicas cujos significados são pré-estabelecidos: às vezes por sua intenção original, como O Toreador de Bizet que representa o instante de uma tourada ou o romance entre Escamillo (o toreador) e a cigana Carmem; às vezes por uma ressignificação marcante, como Danúbio Azul representando a dança de naves e estações orbitais em 2001: uma odisseia no espaço.

Outra instância do gesto é que ele não se limita à peça ou ao filme, em seu tempo de exibição. Ainda em 2001: uma odisseia no espaço, se pensarmos no gesto do primata jogando o osso para o céu, vemos que é uma imagem que ultrapassa o espaço fílmico. Esse gesto é um gesto que se torna parte das pessoas, muitas delas o conhecem mesmo não sabendo que ele pertence ao filme do Stanley Kubrick, assim como o enigmático assassino do chuveiro de

Psicose ou o gesto da mão de Spock em Jornada nas Estrelas.

Ao longo do processo de análise do gesto, investigando-o enquanto conceito, enquanto representação no corpo, enquanto ferramenta de comunicação, observo que o gesto físico e o gesto conceitual não podem estar desvinculados: pois se o gesto físico é formulado pela cultura, e cultura sendo conceito (determinado por um grupo de indivíduos), gesto físico é conceitual: melhor explanando, gesto físico é o gesto conceitual representado por um corpo. Por tal aspecto, defino gesto como sendo o elemento, dentre os diversos signos da comunicabilidade, que melhor faz a ponte entre os lados que se comunicam; Gesto é relação entre dois signos.

Durante a perscrutação proposta inicialmente nessa pesquisa, de encontrar qual o elemento que com mais apreço criasse o vínculo entre público e filme (entre duas partes que se comunicam) e que excluso, criasse um abismo, de todos os signos elencados, o gesto foi o que melhor expressou tal função, uma vez que todos demais signos dependiam de fatores outros. O gesto, ao contrário, comunica por si só; isolado, ele tem forma, tem informação e. acima de tudo, dialoga (demais elementos como figurinos, objetos cênicos, cores, etc., quando isolados, não dialogam, podem até informar, mas não dialogam).

Figura 49

“O homem é por natureza um

animal fabulador”

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