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A retórica do gesto : intersecção entre linguagem e sensação na poética da dramaturgia

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

IGOR ALEXANDRE CAPELATTO

A RETÓRICA DO GESTO

Intersecção entre linguagem e sensação na poética da dramaturgia

CAMPINAS 2018

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IGOR ALEXANDRE CAPELATTO

A RETÓRICA DO GESTO

Intersecção entre linguagem e sensação na poética da dramaturgia

TESE apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de DOUTOR em MULTIMEIOS.

ORIENTADOR: ERNESTO GIOVANNI BOCCARA

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELO ALUNO IGOR ALEXANDRE CAPELATTO, E ORIENTADO PELO PROF. DR. ENESTO GIOVANNI BOCCARA. CAMPINAS 2018

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

IGOR ALEXANDRE CAPELATTO

ORIENTADOR: PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA

MEMBROS:

1. PROF. DR. ERNESTO GIOVANNI BOCCARA 2. PROFA. DRA. CRISTIANE PEREIRA DIAS 3. PROFA. DRA. JUSSARA CORRÊA MILLER 4. PROF. DR. RONALDO MARIN MARINSKY 5. PROFA. DRA. SUZY MARIA LAGAZZI

A Ata da Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

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Dedico esta tese a todos os poetas inspirados pelo encanto dos gestos.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram com seus gestos nesta pesquisa.

Agradeço ao Prof. Ernesto Giovanni Boccara pelo seu gesto orientador e às oportunidades dadas ao longo desta pesquisa de compartilhá-la com outros colegas. Agradeço a Profa. Monica Zoppi e a Profa. Suzy Lagazzi pelo gesto carinhoso de abrirem um grupo de pesquisa voltado ao tema da minha pesquisa que muito contribuiu com esta tese. E ao gesto compartilhado dos colegas que fizeram parte desta jornada.

Agradeço ao Prof. Paulo Vasconcellos pelo gesto acolhedor de abrir portas para minhas palestras e meus cursos de cinema pela extensão, pelos quais desenvolvi muita atividade ligada a esta pesquisa.

Agradeço aos queridos amigos artistas que cederam seus gestos em direção, desenhos, músicas, produções, atuações, enfim, em maravilhosas criações na pesquisa prática desta tese, construindo uma belíssima peça teatral. Em especial à trupe que compõe a peça Um Banquete para Tamora, resultante desta pesquisa: a banda Acron, Álvaro Peterson Jr, André Farias, André Luiz Camargo, AV Junior, Bueno Neto, Carlos Cassim, Daniel Chinellato, Fernanda Pupo, Fernando Lacerda, Fabiana Bonilha, Gabriel de Marin, Jaqueson Luiz Silva, a banda Jewel Box, Larissa Souza, Laura Cesarini, Luis Henrique Bento, Marcos Fraga, Max Sawaya, Nando Almeida, Rafael Ghiraldelli, Tamiris Silveira, Tânia Villarroel, Thais Colacino, Tiago Francis da Silva Camargo, Tiago Monteiro, Tiemi Kimura e Valdemar Queiróz . Agradeço a Tiemi Kimura e ao Tiago Monteiro pelo gesto de contribuição no curso que ministramos baseado nesta minha pesquisa no qual pude desenvolver diversos tópicos e análises presentes nesta tese.

Agradeço os gestos de apoio cultural do Bazar da Sobrapar, do MakerLab da Facamp e do Coletivo Casarão à peça Um Banquete para Tamora e de todas as pessoas que doaram materiais para nossa produção.

Agradeço aos gestos cinematográficos e poéticos dos queridos amigos artistas e os gestos cedidos dos queridos colaboradores tanto no documentário “Abismo-Cinema”, gesto inicial desta pesquisa, quanto no decorrer do primeiro ano desta pesquisa, a web série “Uma pausa para o café em meio ao caos do abismo”

Agradeço aos professores Cristiane Dias, Francine Simões, Joana Wildhagen, Jussara Miller, Marcius Freire, Ronaldo Marin e Suzy Lagazzi pelo gesto afetivo de aceitarem compor a minha banca de defesa.

Agradeço a Capes pela bolsa de pesquisa durante estes 4 anos e meio de pesquisa. Agradeço ao gesto revisor de Elisa Domingues Coelho.

Agradeço ao gesto afetuoso de minha família que sempre me apoiou em todas minhas realizações.

Agradeço ao gesto de carinho e amor e companheirismo de Kamilla Mesquita que contribuiu não somente nesta pesquisa, mas contribui em uma parceria de gestos de desejos e vida.

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RESUMO

Esta tese analisa o gesto na dramaturgia - no cinema e no teatro. Através de Flusser, esta pesquisa investiga o abismo que há entre dois signos (por exemplo, filme e espectador) e como o gesto aparece como elemento que sobressai nesta comunicabilidade, criando pontes ou inferindo queda neste abismo.

Através de Agamben, será realizada uma análise do porque o gesto é necessário ao ser humano, e como o gesto no cinema (e no teatro) representa o ser humano. Segundo Benjamin, o espectador vai à sala de cinema (ou teatro) para se encontrar, mas encontra-se cada qual a sua maneira. E assim, sendo esta identificação subjetiva, esta pesquisa não pode deixar de falar de subjetividade e modos de interpretação, para tal serão utilizados conceitos de Eco, Hegel e Sartre. Ainda, alguns outros pensadores serão mencionados como suporte desta pesquisa.

Por fim, um pequeno ensaio sobre como esta pesquisa pode ser aplicada em outras áreas de conhecimento é proposto, com um estudo aplicado sobre a linguagem do teatro, numa adaptação da peça Titus Andronicus, de William Shakespeare, a qual intitulamos “Um Banquete para Tamora”, no qual coloco em prática, o que chamo de Metodologia dos Gestos.

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ABSTRACT

This thesis analyzes the gesture in dramaturgy - at cinema and theater. Through Flusser, this research investigates the abyss between two signs (for example, film and spectator) and how the gesture appears as an element that stands out in this communicability, creating bridges or inferring fall in this abyss.

Through Agamben, we will analyze why the gesture is necessary for the human being, and how gesture in movies represents the human being.

According Benjamin, the spectator goes to the movie theater to meet himself, but each one is in his own way. Therefore, being this identification subjective, this research cannot leave talking about subjectivity and modes of interpretation, and for that, we will use Eco, Hegel and Sartre concepts. Still, some other scholars’ ones will be mentioned to support this research.

Ultimately, a small essay on how this research can be applied in other areas of knowledge is proposed, with an applied study on the language of theater, in an adaptation of William Shakespeare's Titus Andronicus, which we call "A Banquet for Tamora " in which I put into practice, what I call The Gesture Methodology.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 – Frame extraído do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (KUBRICK, 1968) Figura 2 – Frame extraído do filme Freezone (GITAI, 2005)

Figura 3 – Frame extraído da série Jornada nas Estrelas; temporada 2, episódio 1 (BUTTLER e RODDENBERRY, 1966)

Figura 4 – Frame extraído do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (KUBRICK, 1968)

Figura 5 – Frame extraído do making of do filme Birdman (IÑARRITU, 2014)

Figura 6 – Frame extraído do making of do filme A Arca Russa (SOKUROV, 2002)

Figura 7 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966)

Figura 8 – Frame extraído do filme A Bela da Tarde (BUÑUEL, 1967)

Figura 9 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966)

Figura 10 – ensaio sobre Blow up - in: www.darsmagazine.it/ - acessado em 23/12/2015 Figura 11 – Recriação gestual de Era uma Vez no Oeste (superior) em Star Wars (inferior) in: https://twitter.com/StarWarsTHX

Figura 12 – Frame extraído do filme A Testemunha (WEIR, 1985)

Figura 13 – Frame extraído do filme O Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011) Figura 14 – Frame extraído do filme A Testemunha (WEIR, 1985)

Figura 15 – Frame extraído do filme A Testemunha (WEIR, 1985) Figura 16 – Frame extraído do filme A Testemunha (WEIR, 1985)

Figura 17 – Frame extraído do filme 2001: Uma Odisseia no Espaço (KUBRICK, 1968) Figura 18 – Frame extraído do filme O Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011)

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Figura 19 – Frame extraído do filme O Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011)

Figura 20 – Frame extraído do filme Platoon (STONE, 1986)

Figura 21 – Estudo de cena do filme Platoon (STONE, 1986)

Figura 22 – Estudo de cena do filme Platoon (STONE, 1986)

Figura 23 – Estudo de cena do filme Caçadores de Emoção (BIGELOW, 1991)

Figura 24 – Estudo de cena do filme Caçadores de Emoção (BIGELOW, 1991)

Figura 25 – Estudo de cena do filme Caçadores de Emoção (BIGELOW, 1991)

Figura 26 – Estudo de cena do filme Corra Lola Corra (TYKWER, 1998) Figura 27 – Frames extraídos do filme Identidade Bourne (LIMAN, 2002) Figura 28 – Frames extraídos do filme What About Bob? (OZ, 1991)

Figura 29 – Frame extraído do filme Precisamos Falar Sobre o Kevin (RAMSAY, 2011) Figura 30 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966)

Figura 31 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 32 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 33 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 34 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 35 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 36 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 37 – Frames extraídos do filme Psicose (HITCHCOCK, 1960) Figura 38 – Frame extraído do filme Cloverfield (REEVES, 2008) Figura 39 – Frame extraído do filme Cloverfield (REEVES, 2008)

Figura 40 – Frames extraídos do filme Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959) Figura 41 – Frame extraído do filme Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959) Figura 42 – Frame extraído do filme Os Incompreendidos (TRUFFAUT, 1959)

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Figura 43 – Frame extraído do filme Noite Vazia (KHOURI, 1964) Figura 44 – Frame extraído do filme Noite Vazia (KHOURI, 1964) Figura 45 – Frame extraído do filme Noite Vazia (KHOURI, 1964)

Figura 46 – Frames extraídos do filme Precisamos Falar Sobre o Kevin (RAMSAY, 2011) Figura 47 – Frame extraído do filme Precisamos Falar Sobre o Kevin (RAMSAY, 2011)

Figura 48 – Frame extraído do filme O Planeta dos Macacos: a origem (WYATT, 2011) Figura 49 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966)

Figura 50 – Frame (recorte) extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966) Figura 51 – Frame extraído do filme Tarzan (BUCK e LIMA, 1999)

Figura 52 – Frame extraído do filme Blow Up (ANTONIONI, 1966)

Figura 53 – Fotografia da peça Um Banquete para Tamora (GEHRINGER, 2018)

Figura 54 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 55 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 56 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 57 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 58 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 59 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 60 – Titus Andronicus. Ilustração de Sir John Gilbert. In: http://www.alamy.com – acesso em 05/05/2017

Figura 60 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 61 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 62 – Fotografias do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 63 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 64 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017)

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Figura 65 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 66 – Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 67 – Fotografias do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 68 – Fotografias do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017) Figura 69 – Estudo sobre Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017)

Figura 70 – Estudo sobre Fotografia do ensaio da peça Um Banquete para Tamora (CAPELATTO, 2017)

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SUMÁRIO

1. Prefácio ... 1.1. Notas sobre a Subjetividade …... 1.2. Subjetividade: conhecimento, arte, realidade e objetividade ... 1.3. Notas sobre a Criatividade …...

2. Introdução ... 2.1. Notas sobre Abismo ... 2.2. Notas sobre Poiesis e Práxis ... 2.3. Notas sobre Cultura …...

3. Problemáticas da Interpretação Fílmica ... 3.1. Autoria ... 3.2. Ausência Cultural ... 3.3. Confronto de Significação Cultural ... 3.4. Gesto em Relação à Forma e à Conversa ... 3.5. Recriação ...

4. O Gesto …... 4.1. Notas sobre Ação ... 4.2. Notas sobre Pausa ... 4.3. O Gesto Concomitante, o Gesto Exordial e o Gesto Pantomímico ... 4.4. O Gesto Emblemático ...

5. Ilusão-Gestual …... 5.1. O Gesto Análogo …... 5.2. Notas sobre a ausência do gesto ...

6. Considerações Finais …...

7. Posfácio (ou A retórica do gesto) ... 17 18 20 23 25 26 32 37 43 50 51 52 57 59 63 78 92 95 100 105 123 126 129 133

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8. Índice ...

9. Bibliografia ...

10. Filmografia ...

11. Apêndice I: Analogias entre Gesto e Corpo ...

12. Apêndice II.I: Notas sobre a Prática do Gesto - Escrever, Dirigir e Atuar ...

13. Apêndice II.II: O gesto pertence ao ator (assimetrias entre ator e personagem) ...

14. Apêndice II.III: Analogias entre o gesto em Shakespeare e na nossa livre adaptação ...

15. Apêndice II.IV:

Quando o gesto pertence à câmera (assimetrias entre filme e peça teatral) ...

16. Apêndice II.V: Pentâmetro Iâmbico aplicado ao Gesto ...

17. Apêndice II.VI: Ficha Técnica – Um Banquete para Tamora ... 143 147 150 153 161 183 187 198 201 203

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“O gesto tem raízes orgânicas”

(EDWARD SAPIR)

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Figura 1.

“O gesto é a poesia do ato.”

(JEAN GALARD)

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1. Prefácio

Há um abismo que permeia o saber e o sentir. Ambos caminham de mãos dadas, se um soltar o outro cai. Durante o processo de escolha do objeto a investigar nesta pesquisa, as diretrizes indicavam uma importância na pesquisa do comportamento fílmico perante seus espaços e formatos de Confronto de Significação Cultural. Investigar este hiato que existe entre espectador e filme: o abismo-cinema1. Mas, de fato, intrigava-me descobrir o que investigar nessa obscura profundeza. Mergulhei-me nesse abismo, peguei carona em Vilém Flusser e os brilhos do seu fabuloso vampyroteuthis infernalis iluminaram as longas milhas dessa jornada. Os gestos desse molusco (vide Vampyroteuthis Infernalis, [BEC e FLUSSER, 2011]) levaram aos inúmeros filosóficos gestos flusserianos, um a um conduzindo novas magnanimidades. Gestos que recorriam a Agamben. O italiano e o tcheco-brasileiro dialogando por meios de gestos: uma linguagem universal? Não, ainda que se comunicassem, culturas se confrontavam. Eis que surge Benjamin em um pequeno submarino com notas esclarecedoras. Mas o discurso ainda estava um pouco confuso, seria a pressão da profundeza do abismo?

Por meio de moluscos, algas e alguns seres indecifráveis, ecoou um certo Umberto e seus limites da interpretação. Eco veio de raspão, quase que por um equívoco do destino: o nome do livro era parecido e, no final, ele veio a ser um dos marujos responsáveis pela travessia dos sete mares. Eco, que outrora servira para esclarecer uma semiótica mal resolvida de Pierce, Greimas e Agostinho2, agora resolvia a dialética equivocada da comunicação fílmica. O recorte foi dado: um dos elementos que me atingiu em alto-mar: o gesto. Comecei a vislumbrar o gesto, descobrindo que ele é um dos elos mais fortes de uma comunicabilidade entre filme e espectador e, por assim dizer, os espaços, os suportes, os formatos.

Talvez nem todas as pessoas identifiquem o gesto como o elemento de maior intensidade na comunicabilidade fílmica, talvez eu esteja equivocado, mas entre o saber e o sentir, deixo o sentir tocar, pungir e o saber codifica-lo em tese. Gesto, pois, é conceito e ao mesmo tempo é corpo, é forma. Gesto é meio de comunicar que informa, deforma, conforma. Gesto é o que conta (GALARD, 2008). Gesto é a imensidão desse abismo. E essa tripulação leva consigo alguns marinheiros: Darwin, Ono, Lennon, Galard, Gil, entre outros que seguem comigo, em busca do gesto, ao som de Ringo Starr, “under the sea, in an octopus' garden in the shade”.

1 Abismo-Cinema: fora realizado um documentário desta pesquisa. In: https://vimeo.com/103842843 2 Pesquisa realizada em meu Mestrado.

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1.1. Notas sobre a Subjetividade

Terra à vista. De antemão, nesta jornada pelos oceanos gestuais, informo que para navegar nesta nave, considere: esta é uma pesquisa de caráter subjetivo. Uma metodologia subjetiva, a qual chamo de Metodologia do Abismo (vide subcapítulo 2.1.: Notas sobre Abismo). Mas o que é subjetividade? Como lidar com o fator subjetivo (e, portanto, pessoal e a priori fora da esfera objetiva)? Como investigar partículas (elementos fílmicos) no meio do oceano, se estas partículas não têm estrutura universal, e são para cada investigador uma possibilidade própria, particular? Pois bem, para entender o que é subjetividade, Flusser propõe “surpreender o fenômeno antes que ele se torne discurso e se cristalize [...]” (BERNARDO, 2002, p.190). Ou seja, investigar o fazer do fenômeno, na sua gênese. “É estudar os gestos de pintar e fotografar” (ibid), ou quaisquer que sejam os gestos. Quando um fenômeno se cristaliza, ele passa da esfera da subjetividade para a esfera da objetividade.

Esse é o perigo de se estudar fenômenos subjetivos, no caso, fenômenos em filmes. Uma vez que o discurso os traga ao campo da objetividade, esse campo, ainda que objetivo, deve caminhar atrelado ao subjetivo, pois, senão, extrair a subjetividade da objetividade se torna um mergulho em um abismo sem volta. Se filmes são subjetivos e se existem fenômenos que serão analisados nos filmes que, por vez, também são subjetivos, como tratar esses fenômenos como objeto de pesquisa?

Proponho, poeticamente, e como advertência desta pesquisa (esta é uma pesquisa que investiga elementos subjetivos, portanto uma pesquisa de investigação e conferência abstrata), enunciar esta tese como uma tese que não investiga objetos de pesquisa, mas que investiga

subjetos de pesquisa. Uma pesquisa que estuda subjetos por uma metodologia também

subjetiva, através da subjetividade do pesquisador (eu).

Mas enfim, o que é subjetividade3? Segundo Sartre (2015), subjetividade é a energia do artista, sua criatividade, sua emoção, suas sensações e, eu diria, também seu 'abstracionismo' cultural. Subjetividade é o julgamento de cada pessoa, ou seja, como cada indivíduo julga (interpreta) um fenômeno ou, ainda, cria (na esfera da imaginação) determinado fenômeno.

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Todavia, Sartre deixa claro que “subjetividade se projeta na objetividade” (ibid, p.96) e reciprocamente. Os aparatos utilizados pelo indivíduo para transformar subjetividade em objetividade devem, assim, ser considerados na análise de um fenômeno subjetivo, uma vez que interferem no modo como o fenômeno vai ser moldado e, portanto, apresentado a um outro indivíduo que irá, por sua vez, interpretá-lo subjetivamente.

Desse modo, esse outro indivíduo interpreta não o fenômeno bruto, mas sim o fenômeno objetivado. O malabarismo que Flusser propõe de analisar o fenômeno antes dele se objetivar (portanto, antes dele ser submetido à técnica) consiste em investigar sua poética. Todavia, é importante ressaltar, o olhar é sempre de quem está no periscópio. Quando Flusser nos apresenta seu ensaio sobre o gesto de pintar ou fotografar, o gesto que ele discursa é o gesto segundo ele próprio, o gesto segundo Flusser e não o gesto em si.

Assim, pode-se dizer que subjetividade é a construção do indivíduo – o 'eu' enquanto sujeito autônomo –, sendo assim, negaria o coletivo e, dessa forma, toda e qualquer cultura externa ao indivíduo. Aceita-se, nessa proposição, que subjetividade é a construção do 'eu' sujeito unicamente na esfera da natureza, sem, portanto, interferências culturais senão aquela formulada apenas pela percepção do indivíduo. Mas, uma vez que subjetividade e objetividade estão entrelaçadas, sujeito e sociedade não se desvinculam. Assim como o sujeito é constantemente bombardeado por culturas sociais, ele se manifesta nas mesmas com sua personalidade e, segundo Sartre (2015) – em seu questionamento sobre o que é subjetividade – o sujeito é impossibilitado de desligar-se de si mesmo.

Considerando um filme, com suas inúmeras culturas – ainda que culturas sociais façam o espectador entender desta ou daquela forma os signos fílmicos apresentados –, a primeira instância de observação do sujeito é através de sua percepção, da sensação (ou sensações) que ele tem ao entrar em contato com o filme. Desse modo, a primeira codificação que ele realiza depende somente dele, sujeito, indivíduo, e não de códigos sociais (esses surgem depois, na investigação desta ou daquela sensação). O primeiro contato do espectador com o filme, portanto, é através da subjetividade. E, estando o gesto, o tesouro que investigamos (e seus segredos mais obscuros), dentro deste conceito absorto em subjetividade, por que não dizer que o gesto é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo? Por fim, para uma primeira leitura, iniciarei esta tese estabelecendo esta definição de subjetividade (para suspendê-la, quando necessário):

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1.2. Subjetividade: conhecimento, arte, realidade e objetividade

[…] a arte é um discurso fechado […]. Ou seja, nunca pedimos a uma obra de arte informações objetivas a respeito de um período. Pedimos-lhe um tipo de informações mais complexas, que também não são informações objetivas, mas é a sua repetição de um período vendo a si mesmo com todas as suas cegueiras possíveis, com todos os seus preconceitos, mas, ao mesmo tempo, ele se vê, não é? Ela representa uma totalização do período sob a forma do indivíduo ou do grupo de indivíduos que a fez. Tomemos, por exemplo, D. Quixote: o que leva D. Quixote a permanecer? Há um aspecto histórico que poderia interessar apenas aos historiadores: é a liquidação de certa sociedade feudal. Na época em que as monarquias absolutas vão se constituir e, por conseguinte, no mesmo momento do Renascimento, assiste-se também à liquidação de uma ideologia feudal em proveito de outra ideologia, em um homem que vive essa contradição. A liquidação dessa feudalidade, a liquidação dessa feudalidade sob a forma de romances de cavalaria, em um homem que vai agora ser simplesmente soldado do rei e não cavaleiro errante, é uma coisa que interessa do ponto de vista estritamente histórico, se assim o considerarmos. Mas se lemos isso em um livro em que esse homem projetou tais contradições, damos com um personagem como D. Quixote, quase sempre ridículo e de vez em quando trágico, não é? Com essa espécie de estranha contradição que é a do próprio Cervantes. Nesse momento temos algo que nos interessa porque oferece toda essa sociedade como uma sociedade tão viva de contradições como aquela em que vivemos. Entendem o que quero dizer? A subjetividade de Cervantes é indispensável para tornar a obra D. Quixote ligada a nós e, precisamente, na medida em que Cervantes estava mal, muito mal consigo mesmo, pois assistia a essa separação dos dois mundos. De sorte que para mim — e também queria lhes dizer isso — não acho que um personagem histórico seja típico. Não creio que a “tipologização” seja de fato o objetivo — pelo menos um personagem romanesco típico —, seja o objetivo do romance. Acho que é mais a singularização do universal, o que não quer dizer típico. Isso quer dizer apresentar-nos um personagem que em si — como, por exemplo, D. Quixote — não é nada típico. Mas, na realidade, acho que é preciso representar personagens que tenham inicialmente certo grau de obscuridade, que é a sua individualidade, a sua personalidade, e nos quais pouco a pouco o leitor, sem nunca passar ao universal em si, consegue encontrar no concreto essa universalidade. Não sei se percebem o sentido que dou a isso. Aliás, é preciso que o personagem, como D. Quixote, por exemplo, seja um personagem cheio de manias, uma espécie de imbecilidade que, no início, espanta: ele se comporta primeiro como um ser original, um personagem entre mil. E depois é preciso que, sem ele deixar de ser esse tipo original, seja possível sentir nele todas as contradições de uma época. Então, vocês têm o fato que é constante, o fato real e individual da vida de cada um: que somos encarnações, isto é, somos a singularização de todo o universal dos sistemas nos quais vivemos. Somos isso, cada um de nós, e é isso que nossos romances oferecem. Se nos apresentarem como seres vivendo na clareza das contradições, não é verdade. Se, ao contrário, nos apresentarem como seres que não se reconhecem e nos quais as contradições estão meio ocultas, só parcialmente perceptíveis, então aí estamos no plano da obra de arte: encontramos — seja qual for o grau de esquematização ou de abstração — o personagem que somos cada um para nós mesmos e para os outros. (SARTRE, 2015, pp.128-130)

Âncoras atracadas. Expedição descendo. Certo. Defini o conceito que vou fazer uso da subjetividade. Pisamos em terra firme; uma terra ainda a ser descoberta. Como a subjetividade irá transcorrer? Como usar da subjetividade para analisar filmes, portanto, obras de arte?

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Sartre propõe que toda obra de arte é fechada. Fechada não no sentido de que ela tem códigos fechados e que, portanto, ela não possa se ressignificar. Não se trata de uma obra icônica. O termo obra fechada refere-se a ideia de uma obra que transpassa tempo e espaço.

Guernica representa uma época, um lugar, uma cultura e, no entanto, Guernica não é apenas

objeto histórico; a pintura de Picasso, independente da época e lugar em que é investigada, independente de quem a investiga (e de sua cultura), continua ressignificando.

Um filme é uma obra fechada quando transpassa os limites de tempo e espaço. Joana

D'arc (BESSON, 1999) não é um filme sobre o século XV, a guerra dos cem anos entre França

e Inglaterra e uma personagem da idade média, mas sobre uma mulher que, através de seus ideais e fé, defende toda uma nação. É um filme sobre a força feminina, sobre lutas de ideias, sobre uma heroína. Ou seja, a trama central, a mensagem que o filme pretende transmitir (ainda que estejamos lidando com uma mensagem subjetiva) não depende de tempo e espaço. A protagonista do filme de Luc Bresson é Joana D'arc, mas em sua representação (simbologia) pode ser Anita Garibaldi ou Indira Gandhi. Em Cervantes, Don Quixote representa um tipo de persona, não a época feudal. “[...]no plano da obra de arte: encontramos — seja qual for o grau de esquematização ou de abstração — o personagem que somos cada um para nós mesmos e para os outros” (ibid, p. 130).

Abstrair é por suposto, nesse contexto proposto por Sartre (ibid, pp. 128-141), elevar a obra de arte à esfera da sensação, à identificação pelas emoções e, pode-se dizer, pelos gestos. É com o gesto da guerreira, da mulher, da heroína que o espectador se identifica com Joana D'arc, e não com a personagem do século XV, da França medieval. Nesse contexto, um espectador do ocidente (do Brasil, por exemplo), do século XXI, irá criar identificação com o filme e será capaz de codificar o filme. Isso ocorre independentemente de ter códigos culturais referentes à época em que se passa a trama, pois os elementos que permitem decifrar um filme são elementos subjetivos.

Ainda que permeiem a subjetividade, os elementos subjetivos aparecem para o espectador através da imagem, ou seja, objetivamente, nos gestos. Portanto, por mais que sejam tramas fantásticas, os gestos e demais elementos objetivos são identificados por meio de formas e conceitos com as quais o espectador tenha afinidade, são signos que simulam a realidade.

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A subjetividade em um filme é não se trata de outra relação senão a identificação emotiva com a realidade. Mas como definir realidade? Flusser (2007) coloca que realidade é modo de percepção4 do mundo, de acordo com os códigos culturais do sujeito que observa o mundo. Ou seja, realidade é ficção: o que, no senso comum, chamamos de realidade, é nada mais do que a subjetividade cultural de cada sujeito. Assim sendo, criar identificação fílmica com a realidade é criar afinidade com as inúmeras realidades de cada espectador. Modo de observação do mundo é pessoal, particular, mas uma vez que o sujeito está inserido num convívio social, muitas vezes o consenso social acaba suspendendo-se e dominando-o (o filme se trata disso ou daquilo que foi dito na mídia, ou no grupo social a que ele pertence e não daquilo que o sujeito codifica). E então o guarda do aquário acaba dando um pneu (que daria a um primata) para um molusco interagir, como ilustra Flusser na sua fábula Vampyroteuthis

Infernalis.

E assim o autor viu emergir seu parente no aquário de Banyuls: seu olhar odioso seguia os movimentos do observador Fascinado. Sua pele Cor de borracha virava de cinzento em azul e roxo, sobretudo em torno dos olhos. Seus órgãos de sucção ao longo dos braços se abriam e fechavam como válvulas, e seu jato na proximidade dos seus alicates sugava e expelia água. De resto, o bicho não se movia: estava de espreita. Mas notava-se nele violência reprimida, como se mobilizasse toda sua força bestial para não quebrar o vidro e lançar-se sobre o observador, a fim de esmagá-lo. O observador fascinado fica, ele também, paralisado. Não apenas por terror, mas igualmente por embaraço. O terror é justificado, porque sabemos o que aconteceria se o vidro do aquário cedesse: o nazismo nos ensinou isso. Mas igualmente justificado é o embaraço. As modificações da pele do bicho são prova quão desesperadamente ele procura comunicar conosco. Não sabemos como comportarmo-nos sem cometermos impropriedades. Não podemos bater com o cachimbo contra o vidro para convidá-lo a fazer gestos idiotas, como se ele fosse chimpanzé ou bebê no berço. Nem podemos estender-lhe a mão em gesto de paz que encerre com a guerra de vida e morte que travamos há incontáveis milhões de anos. Nem ainda podemos dar-lhe as costas num gesto de asco, gesto este que preferíamos, dada a nossa condição de burguês bem pensante que somos. O guarda do aquário, vendo o embaraço, toma atitude de especialista: "não se preocupe, isto aqui não passa de um molusco." E se perguntamos: "Porque o sr. deu para ele pneu para brincar, como se fosse chimpanzé, não molusco? O guarda engole exclamação de surpresa, diz coisa incompreensível, e afirma ser hora de fechar o aquário, conforme regulamento do sindicato ao qual pertence. (FLUSSER, 2011, pp.133-134)

4 Segundo Hegel (apud Hyppolite, 2003, p.115), “o ponto de vista da percepção é o da consciência comum e, mais

ou menos, das diversas ciências empíricas que elevam o sensível ao universal”. O que Hegel coloca é que a percepção que é do indivíduo, ainda que pessoal, como discursado anteriormente, sofre interferências da “consciência comum”, pois a formação dos códigos de cada sujeito é mediada senão, pelo seu contato com outros sujeitos (e que formulam assim códigos culturais comuns), através das instituições (família, escola, etc.), dos convívios sociais e dos meios midiáticos.

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1.3. Notas sobre a Criatividade

Mata adentro. Adentremos nesta terra misteriosa. Perigos surgem a cada instante. É preciso estar atento, vigilante, preparado, mas também é preciso saber improvisar, criar (e achar soluções quando as ferramentas que estão em mãos não são suficientes para resoluções). Criar. Criar é o instrumento talvez mais intenso que exista na subjetividade. Ao analisar um elemento fílmico, por exemplo, extraio signos, faço analogias, busco referências e crio minhas teorias em cima daquilo que me pungiu: a personagem tal fez isso porque ela queria aquilo – mas o filme não mostrou o que ela queria, foi minha ‘dedução’ –, eu crio uma história por detrás da história do filme, crio cenas, coloco imagens que não existem no filme, recrio o filme (vide capítulo 3.5: Recriação e capítulo 5: Ilusão-Gestual).

Mas por que falar de criatividade? Segundo David Bohm (1987, p.81), “nenhuma forma de conhecimento pode ser absolutamente fixada e aplicada indefinidamente, o que significa ser ilusória toda forma de conhecimento fixo absoluto, já que todo conhecimento é gerado pela dúvida, pela atividade mutante da percepção criativa”. Uma vez que esta tese, para analisar o gesto no cinema, obrigatoriamente se submete à subjetividade, é necessário firmar esta percepção criativa: subjetividade é, acima de tudo, criação.

Se é criação – e sendo criação, segundo Bohm (ibid), processo de ‘inventar’ segundo normas, regras e padrões determinados pelo inventor –, o gesto (os múltiplos tipos gestuais) que irei analisar é, portanto, tal qual minha mente enxerga, percebe e cria (codifica). Talvez essa seja a magia de toda esta expedição: gestos são meios comunicativos que discursam intimamente com o que cada sujeito está sentindo. Sendo assim, no caso dos gestos nos cinema, no caso desta pesquisa, de antemão é possível afirmar que a magia de um filme é que ele é pessoal, ele é a busca de cada sujeito de se encontrar no que vê, um espelho particular: cada espectador busca encontrar no filme o seu gesto e não um gesto universal (os gestos perdidos, segundo Agamben, 2015, podem ser os gestos de uma sociedade, de um nicho, de um indivíduo, mas não são gestos universais). Enfim, dentro desta metodologia do abismo, uma das regras é aceitar a criatividade como sub-método de análise. Sigamos em frente, trilhas em meio a este novo (velho) mundo5.

5 O estudo dos Gestos no cinema não são novidades, a novidade talvez seja a maneira como proponho reunir,

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Figura 2.

“Os gestos formam ‘frases’.”

(JOSÉ GIL)

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2. Introdução

Em meio às trilhas neste mundo dos gestos, eis que caminhos com armadilhas pegam de surpresa; buracos que conduzem de volta ao oceano, de volta ao abismo. Armadilhas são traiçoeiras, pegam-nos inesperadamente, mas são também acasos maravilhosos: são elas que nos tiram de um pensamento engessado, ou que está cozido, e nos colocam na suspensão, de modo que saímos desse enrijecimento e encontramos novas perspectivas. Inicia-se uma tese, minha tese, uma tese sobre os gestos no cinema (mas também sobre gestos no teatro, na dança, na performance, na vida).

Sobre o que motivou esta pesquisa outrora, eu ensaiei no prólogo desta tese. Deixei esta introdução não para contar o processo que me levou a esta pesquisa, nem para introduzir ao tema em si, cada capítulo introduz a si mesmo (ao assunto específico dentro do tema Gestos), mas para orientar como esta tese está estruturada. Nesta jornada ao abismo, alguns assuntos que são dissertados6, a priori, parecem diluir ou esquivar do objeto principal (o gesto no cinema), no entanto, são pausas que faço para explicar temas (como abismo, cultura, etc.) que servirão de combustível e apoio para o discurso central.

Um prólogo foi inserido, na divisão de capítulos, para discorrer sobre alguns temas necessários – não para de fato (mas também para) entender o gesto mas para entender o processo metodológico desta pesquisa – para ajudar o leitor nesta jornada (como uma bolsa de provisões). E, na sequência do último capítulo (conclusivo), um posfácio e, novamente, não para concluir sobre “O gesto no Cinema”, mas para abrir diretrizes sobre as múltiplas possibilidades de aplicabilidade desta pesquisa e, desta forma, introduzir os dois apêndices.

Eles (que não coloquei como capítulos por serem ensaios sobre os gestos, mas não nos filmes) discursam sobre a apropriação desta pesquisa em outros meios: segue um pequeno ensaio sobre a relação gesto e corpo (ainda que este estudo permeie no miolo da tese) como reflexão para o ensaio sobre a aplicabilidade do gesto no roteiro, direção e atuação, no qual faço análise do processo criativo e exibição de uma peça de teatro multimidiática que elaborei e dirigi, como estudo prático desta tese.

Tenha um bom gesto de leitura.

6 Assuntos que surgiram durante a pesquisa inicial e que geraram uma websérie:

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2.1. Notas sobre Abismo

A investigação dos gestos no cinema é uma análise inevitável de escapar das problemáticas da interpretação fílmica (capítulo 3), um conjunto de questões que discorrem sobre as relações entre o filme e o espectador, ou seja, a maneira como esse irá interpretar os signos fílmicos.

Como dissertado anteriormente (capítulos 1.1 e 1.2), por ser essa interpretação subjetiva, não há como conferir ao gesto e a toda linguagem fílmica uma significação única, assim, cada espectador irá interpretá-los de maneira distinta. Deste modo, ocorre um abismo da linguagem. Esse termo emprestado, dentre outros pensadores, de Vilém Flusser (2007) se refere ao hiato que há entre dois elementos. Na linguagem, é a lacuna que causa desacordos entre dois sujeitos que se comunicam, ou entre um sujeito e o signo que está sendo comunicado, como se houvesse a tentativa de duas pessoas conversarem entre si, porém cada uma em uma língua distinta, sem que uma tenha conhecimento algum da língua empregada pela outra.

Uma vez que o cinema surge e se estabelece em um abismo, investigar o gesto no cinema é investigar o abismo do gesto. Esse, em síntese, nesta pesquisa, será considerado como uma expressividade corporal (ou ainda objetos que estendem ao corpo) que atrela em si significações múltiplas e que, porém, com seu próprio movimento revela em si todas estas significações como, por exemplo, o gesto de um cumprimento, o gesto de um olhar, o modo distinto de uma pessoa caminhar.

Outrossim, o gesto no cinema tem duas naturezas: pode aproximar o espectador do filme, criando afetos através de suas significações (quando o gesto fala a mesma ‘língua’ que o sujeito interpretante) ou pode criar um abismo entre espectador e filme (quando discursa com códigos os quais não pertencem ao ‘vocabulário’ do interpretante).

Sendo a análise do gesto no cinema uma tarefa subjetiva, toda e qualquer análise apresentada nesta pesquisa, para elucidar o estudo dos gestos, será, portanto, uma análise cujo ponto de vista é subjetivo. Por essa circunstância, aplicar, para este estudo, uma metodologia subjetiva, tornou-se imprescindível.

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Ela considerará, em todas suas instâncias de análise, que toda e qualquer observação ou conclusão apresentada está submetida ao abismo, ou seja, encontra-se sempre nesta multiplicidade de interpretações. Como coloca Flusser (2014, p.47) “o gesto da pesquisa demonstra ele próprio, serem sujeito e objeto sempre engrenados”, portanto, para poder traçar um pensamento (e direcionar observações para conclusões possíveis), a linha escolhida para ensaiar sobre filmes e, portanto, sobre os gestos nos filmes, é sempre a do “eu” pesquisador e, enquanto sujeito investigador, procurarei esmiuçar com melhor qualidade exequível cada signo fílmico analisado para que o leitor possa se aproximar do limítrofe de meus ensaios.

O abismo, deste modo, será o entremeio no qual decorrerá esta pesquisa: de um lado o filme, do outro o espectador – no conjunto, o cinema e o foco (objeto de investigação): o gesto. O gesto porque, dentre os diversos elementos fílmicos a serem analisados, não somente este me instiga mais, mas por emergir como um dos elementos que mais criam relações (analogias) entre espectador e filme. Assim, esta tese tem como um dos objetivos investigar como funcionam os gestos e, assim, como eles criam pontes ou abismos entre espectador e filme.

Não pretendo, no entanto, estabelecer se o gesto inserido no filme cria ponte ou abismo porque o roteirista desenvolveu-o desta ou daquela forma na trama, ou se foi problema da atuação ou se algum corte da edição seccionou o gesto. Tal pretensão compreenderia estudar, em cada filme, sua particularidade (pois em que etapa de cada filme acontece esse hiato), mas sim buscar elementos técnicos e subjetivos que ilustrem como gestos concebem, nos filmes, pontes ou abismos, analisando-o na sua forma postrema7.

Tal forma revela o gesto na sua relação de afeto com o espectador. É ela que fica assegurada na memória do espectador, seja por aproximação ou por relegação, pois, em ambos os casos, o gesto é compreendido, mas, por simpatia, ele pode aproximar ou distanciar o espectador do filme. Quando o gesto não apresenta códigos compatíveis com a ‘língua’ do espectador, ele cria abismos, ele se torna um signo estranho, ‘indecifrável’ e, portanto, ou cria curiosidade em querer decifrá-lo ou não é registrado na mente do espectador.

7 Considero a forma postrema do gesto como sendo a forma final na qual ele é apresentado ao espectador, ainda

que existam filmes em que é possível acessar os dados dos bastidores (entrevistas, making of, artigos e ensaios), não considerarei estes dados, exceto em casos específicos cuja dissertação requeira por algum motivo, analisando assim a etapa do gesto (e suas informações) que o espectador é exposto ao ver o filme.

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Mas ele está lá, e sendo subjetivo, mesmo que quando um espectador não o absorva, outro pode estar absorvendo. Quando ele não é ‘registrado’ (para determinado espectador), cria lapsos de memória fílmica e aquela cena, cujo gesto não foi captado, é ‘apagada’ da memória e, portanto, hiatos fílmicos acontecerão, o espectador (em questão) terá lacunas no momento de associar todos os signos do filme para então ordená-lo numa linearidade narrativa e decifrá-lo. Quando me refiro a lapsos de memória, não entro no conceito biológico do cérebro - que poderia abarcar a ideia de que se o indivíduo registrou a informação, mas seu cérebro a deletou, isso aconteceu por resultado de alguma falha física. Trata-se, na realidade, de um conceito subjetivo de que a imagem talvez nem tenha sido adsorvida, entendendo o lapso enquanto perda da memória adquirida por não haver afinidade cultural com o signo presenciado.

Por ora, atentarei à ideia de cultura enquanto memória8, no sentido de “lembrar e codificar lembranças ao mesmo tempo”, ou seja, construir imagens a partir de registros. No entanto, a dialética da memória, nesse contexto, só é permitida quando se considera essa fórmula proposta: lembrar e codificar ao mesmo tempo. Lembrar enquanto reativar as imagens (e registros de outros sentidos, olfato, tato, paladar, audição) de maneira bruta e codificar enquanto indagar essas imagens e [re]interpretá-las, de maneira a incorporar signos construídos pela imaginação e que, portanto, não pertencem à imagem registrada. Assim sendo, a memória é algo traiçoeiro e, desta forma, cria na própria mente uma ilusão-gestual9, sendo gesto “a exibição de uma medialidade, o tornar visível um meio como tal” (AGAMBEN, 2015, p.24), ou de uma maneira mais direta, ilusão-gestual seria a capacidade humana de construir imagens e incorporá-las a uma ação a qual elas não pertencem. É o que chamo de necessidade de

significação gestual – a necessidade da mente humana de preencher signos vazios. E, assim, a

criatividade (imaginação)10 entra em ação.

Esse abismo que há entre filme e espectador cria um distanciamento no qual o filme acaba por não pertencer ao espectador e o espectador ao filme, tornam-se estranhos. Ainda que essas lacunas sejam preenchidas pela imaginação do espectador, espectador e filme são estranhos um ao outro, pois uma lacuna, preenchida pelo espectador e não pelo signo presente no filme, pode conflitar com outro signo posteriormente informado no filme.

8 No subcapítulo 2.3 adentro em outros conceitos de cultura empregados nesta tese. 9 O termo Ilusão-Gestual será amplamente desenvolvido no capítulo 05.

10 Através da imaginação, “o homem passa a ser programador da história” (FLUSSER, 2011, p.2), “e sendo

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Segundo Flusser (2007, p.59), “O salto de língua a língua, atravessando o abismo do nada, cria no intelecto aquela sensação de irrealidade, tão aparentada à angústia existencial […]”. Essa angústia existencial se relaciona com o não pertencer e não se sentindo vinculado, incorporado ao filme, o espectador torna-se um estrangeiro perante à obra cinematográfica que está diante dele. Diante, mas ao mesmo tempo distante. Se gestos são movimentos pelos quais se manifesta uma maneira de estar no mundo, identifico, então, de anti-gesto11esse gerador da angústia existencial.

Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. (FLUSSER, 2011, p.52)

O abismo existencial que suga o espectador é o hiato cultural que o cerca. Ora, se ele não pertence ao filme (e o filme a ele), não há, portanto, uma relação gestual. Se gesto, segundo Flusser (2014, pp.16-17), “é o movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar [...] para o outro”, é possível dizer que o filme se oculta ao espectador e o espectador a ele. E assim, sendo gesto12 aquela parte da ação que se suspende e fica na memória de quem o testemunha, o gesto (ou gestos) afirmado em um filme com o qual o espectador não se identifica é o gesto que não pertence à cultura desse espectador.

Gestos não dependem das palavras, mas, assim como elas, são códigos, fazem parte da linguagem de uma determinada cultura. Mergulhar no abismo é distanciar-se do gesto. Mas seria o distanciamento gestual apenas uma ruptura cultural? Talvez esse mergulho no abismo seja parte da compreensão do próprio gesto. Se gesto é cultural e cultura está tão incorporada em nosso modo de ser, pois abre, segundo Agamben (2015, pp.22-23), “a esfera do éthos”13 - caráter moral: o conjunto de hábitos ou crenças que definem uma ‘comunidade’ sendo necessário, então, o afastamento para que possamos perceber a existência do gesto; olhar de fora (exteriorizar, olhar como estrangeiro) o gesto e investigá-lo. Todavia não é um afastamento totalmente desvinculado do mesmo, é necessário primeiro vivenciar o gesto – pois sem a vivência, ele não pertence a quem é apresentado – para depois sim distanciar-se.

11 Vide referência 7.

12 Aprofundamentos mais precisos sobre Gesto serão desenvolvidos no capítulo 04.

13 O gesto tanto representa esse caráter moral como pode moldá-lo (e recriá-lo), e ainda, pode ser rompido, numa espécie de 'anti-gesto', ou seja, o signo representado por meio de gestos que o espectador não é capaz de decifrar.

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Identifico três instâncias deste distanciamento: primeiro, a mais transparente, a instância do pós-filme, todo momento e, quanto mais longínquo em relação ao momento em que se assistiu ao filme, melhor auxilia na investigação do gesto; segundo, a instância parcial, quando o espectador identifica-se com parte do gesto, ele reconhece um olhar, um abraço, um modo de caminhar (cultura corporal), mas não com a cultura social que não lhe pertence. Penso, como exemplo, num brasileiro, assim como sou, assistindo um filme pertencente a um país do Oriente Médio, e me ocorre a cena de abertura de Freezone (GITAI, 2005), no qual a personagem está dentro de um carro, chorando, o seu rosto triste, a sensação de perda, ausência, saudade e medo, são evidentes, gestos com os quais posso relacionar-me, mas o que ela vive naquela região, perante a sociedade, a religião e a política, não me pertencem, é preciso algo mais para que eu possa me relacionar com aquela cultura. Por fim, o terceiro, o distanciamento metalinguístico, que pertence à esfera da cultura cinematográfica ex-film14, à exemplo de Freezone, no qual o espectador que assiste o filme pode carregar consigo referências da atriz Natalie Portman que, anteriormente a ele, atuou em O profissional, Starwars, Closer, dentre outros e, portanto, precisa se libertar dessas referências para afastar-se do gesto.

Arrisco-me, assim, a afirmar que abismo é a cultura estabelecida para qualquer relação entre dois elementos e é preciso adentrar nessa cultura (e desvincular-se de signos exteriores) para compreender o ponto (ou pontos) de partida que guia determinada correspondência. Se Flusser considera abismo como ‘falta de’ e ensaia sobre uma possível pausa15 enquanto suspensão no abismo, é possível dizer que quando surge um abismo entre filme e espectador é porque não houve pausa, desta forma, aconteceu uma ação16 (facere) e não um gesto (agere) e é, portanto, atemporal17.

Agamben (2015) reforça a ideia que o gesto está além da imagem, ainda que seja representado por ela. Dessa forma, o que o torna atemporal não é a imagem (ainda que essa seja o simulacro na mente interpretante), mas sim sua carga significante.

14 Ex-film: todos os signos cinematográficos externos ao filme, que estão incorporados dentro do filme, atores, cenários, objetos etc.; como por exemplo a presença do diretor Hitchcock em cenas de seus próprios filmes, ou no caso do filme Adaptação (JONZE, 2002), em que o ator Nicholas Cage faz papel do roteirista do próprio filme e ainda percebe (a personagem que ele interpreta) que o que ele escreve (ação da personagem) reflete na própria 'realidade' dele: ou seja, a personagem escreve o filme que o espectador está assistindo. Relações estas que o espectador faz por mediação de seu conhecimento exterior ao filme (conhecendo os bastidores da produção, referenciando atores, ou até mesmo acontecimentos e personagens).

15 O termo Pausa será distendido no subcapítulo 4.2..

16 Distinções entre Ação, Movimento e Gesto serão distendidas no subcapítulo 4.1.. 17 Facere e Agere: vide subcapítulo 2.2.

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O abismo rompe a atemporalidade, não há espaço para o gesto: no breu do abismo, não é possível identificar o gesto ou ainda se há um gesto. Eis uma primeira observação técnica de como lidar com esse abismo: destarte, gesto sendo cultura, no cinema, para suprir o abismo, é possível criar-se cultura (habitus: formação de público) - educar sobre determinado gesto – e, para elucidar, basta lembrar do gesto de saudação de Spock, em Jornada nas Estrelas (RODDENBERRY, 1966) interpretado por Leonard Nimoy.

Figura 3. Frame de Jornada nas Estrelas, temporada 2, episódio 1 (BUTTLER e RODDENBERRY, 1966)

Rematando, abismo no cinema é a lacuna de significação, a fissura na comunicação que há entre espectador e filme. Nesta pesquisa, o estudo do abismo, focado no objeto de investigação, o gesto, serve para diagnosticar as manifestações do na sua incumbência comunicativa, quais signos fazem com que ele crie pontes entre espectador e filme e quais signos criam esses abismos. Esta análise não pretende investigar casos específicos, no que diz respeito aos gestos fílmicos, como por exemplo, um gesto particular de uma personagem e os motivos que conduzem esse gesto a aproximá-lo ou distanciá-lo do espectador que o observa. Deveras, o que proponho averiguar ao ensaiar sobre o abismo na esfera do gesto são possíveis teorias que, tecnicamente, são empregadas como recurso de comunicação. No exemplo acima, do gesto de Spock, não examino a forma física da sua saudação e os costumes de sua raça, mas sim como ele confere aproximação com o espectador sendo incorporado no vocabulário do mesmo (quais recursos linguísticos são empregados para que esse gesto se torne concernente ao espectador).

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2.2. Notas sobre Poiesis e Práxis

Imaginar é fazer com que aparelhos munidos de teclas computem os elementos pontuais do universo para formarem imagens e destarte, permitirem que vivamos e ajamos concretamente em mundo tornado impalpável, inconcebível e inimaginável por abstração desvairada. (FLUSSER, 2008, p.60)

Iniciar este capítulo com um ensaio sobre o imaginar (imaginação) é uma tentativa de discutir o processo de construção da imagem subjetiva, defrontando o conceito de imagem técnica (e icônica). Imaginar deriva de imagem (imago: aspecto, forma, aparência). Imaginar: produzir imago. Imaginação, imaginari, é formar a imagem mental da imago. Imaginar, poiesis; imaginação, práxis. Imaginar é instrumento subjetivo, é a capacidade de abstrairmos de códigos preestabelecidos e criarmos uma nova comunicabilidade: novos códigos e nova cultura. Uma cultura que é resultado da ingestão de culturas impostas pelo filme, pelo mundo, em que o indivíduo se encontra, e pela sua memória-corporal, que, depois de processada, é submetida à capacidade do indivíduo de imaginar e conferir novos significados (aquém daqueles predeterminados).

Elementos não explicáveis nos filmes (refiro-me aos signos que o próprio filme não codifica em ícones) encontram-se nessa esfera, o que, numa primeira instância – da observação imediata do filme –, pode parecer uma falha informativa. Numa perspectiva outra, percebe-se que esse signo, aparentemente indecifrável, pertence à subjetividade do espectador, um discurso aquém da imagem, como é o caso do monólito de 2001: Uma odisseia no espaço.

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Poiesis e Práxis se relacionam de forma mútua e integrada. Poiesis está inserida na práxis e a práxis na poiesis. Sendo poiesis a capacidade de produzir alguma coisa e práxis o ato

(livre da teoria), podemos elucidar desta maneira: poiesis: vocação, práxis: ato de fazer. Assim, sendo, imagine a elaboração de uma cadeira. Podemos até dizer que o designer que a projeta situa-se na poiesis, o operário da indústria, que apenas segue um tutorial, na práxis. Quando pensamos em arte, estamos lidando com vocação e ato simultâneos. É que o fazer gera o conhecimento que permite à criatividade explorar determinados códigos e a criatividade permite que a prática se desenvolva. Pensando no cinema, a prática (associada à ciência e, por sua vez, a imaginação através da ciência) da fotografia gerou a câmera filmadora e, por sua vez, a linguagem do filme, que abre as portas para a capacidade de produzir cultura dentro dessa linguagem. Produzindo linguagem, o cineasta faculta (pela necessidade de se reproduzir algo inusitado ou para solucionar problemas técnicos) o desenvolvimento de novos instrumentos (como o plano subjetivo, realizado pelo manuseio da câmera na mão, cuja linguagem pretende assimilar o locomover da personagem e gerou o invento do steadcam18).

Figura 5. making of de Birdman19(câmera na mão) Figura 6. making of de A Arca Russa20(steadcam)

Há uma linguagem da escultura, da pintura, da poesia. Assim como a linguagem da poesia se funda – se não unicamente, pelo menos em parte – na linguagem de nomes do homem, pode-se muito bem pensar que a linguagem da escultura ou da pintura estejam fundadas em certas espécies de linguagens das coisas, que nelas, na pintura ou na escultura, ocorra uma tradução da linguagem das coisas para uma linguagem infinitamente superior, embora talvez pertencente à mesma esfera. (BENJAMIN, 2013, p.71)

18 Steadcam: “Consiste de um sistema onde a câmera é acoplada ao corpo do operador através de um colete onde é instalado um braço dotado de molas, e serve para estabilizar as imagens produzidas, dando a impressão de que a câmera flutua.” (In: http://www.inovartebc.com.br/blog/2011/08/18/o-incrivel-uso-do-steadicam-e-seus-operadores/ - acessado em: 14/12/2015)

19 Birdman (IÑARRITU, 2014). In: http://collider.com/birdman-alejandro-inarritu-emmanuel-lubezki-interview/ - acessado em: 14/12/2015

20 A Arca Russa (SOKUROV, 2002). In: http://www.oocities.org/mushkah3/Russian-Ark.htm - acessado em: 14/12/2015

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Benjamin discursa sobre a linguagem das coisas e a linguagem do homem estarem entrelaçadas: homem comunica sobre as coisas e as coisas falam sobre os homens (são representações da cultura do homem, portanto, enquanto natureza, falam do caráter moral, enquanto instrumentos, falam do corpo).

“A realização de um filme, particularmente de um filme falado, oferece um espetáculo que no passado seria inimaginável. Ele abarca um conjunto de atividades que não pode ser observado de um ângulo do qual o observador possa excluir todos os elementos estranhos à representação, como as máquinas de filmagem, os aparelhos de iluminação e o grupo de técnicos (isso só seria possível se sua pupila coincidisse com a câmera). Mais que qualquer outra, essa circunstância torna superficiais e irrelevantes as comparações entre a cena do estúdio e a cena do palco. No teatro, a localização do palco nos faz reconhecer o caráter ilusionista da encenação. Essa localização não existe no cinema. Sua natureza ilusionista é de segunda ordem e está no resultado da montagem. Ou seja: no estúdio de cinema, a máquina penetrou tão profundamente na

realidade que o aspecto aparentemente puro desta última, sem o corpo estranho da máquina, resulta de um processo especial, ou seja, a filmagem por meio de uma máquina fotográfica própria e a montagem com outras tomadas do mesmo tipo. Aqui,

a realidade aparentemente despojada de máquinas é a mais artificial das realidades. No país da técnica, a visão da realidade pura é uma flor azul. (BENJAMIN, 2015, p.26)

No cinema, as coisas falam sobre uma outra natureza imagética. Uma esfera na qual o espectador se insere, mergulha, e é transportado, do mundo 'fora' do filme, através da imagem técnica para a imagem poética, para o mundo 'dentro' do filme. Não há mais limiar entre real e ficcional, e talvez por isso Flusser considere que tudo é ficção (FLUSSER, 2000). Sendo a cultura ficção, e, portanto, criação, ela situa-se assim, na esfera da poiesis, articulada através da

práxis, mas não na práxis em si, pois não é mais objeto tangível. A cultura no cinema está,

portanto, na esfera do imaginário. Na imaginação, a flor pode ser a princesa que se transformou em uma angiospérmica; na superfície da imagem técnica, portanto, da percepção técnica, ela é apenas uma flor azul.

Desse modo, não se fabricam imagens fílmicas no campo subjetivo sem a elaboração poética. No campo da imagem técnica, apenas se reproduzem. Considerando sua estrutura de elaboração, observaremos que a imagem técnica é antecedida por uma estrutura cuja capacidade de fazer e decifrar imagens concebeu os códigos dessa imagem que já vem assim, codificada – o roteiro (manual), ou ainda, o conjunto de signos que inspirou o roteiro –. Ou seja, o filme nasce da criatividade (poiesis), perpassa o roteiro (o manual) e é produzido (práxis).

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Se a poiesis depende da práxis e vice-versa, o sujeito que pensa a ideia do filme precisa conhecer os códigos de fabricação fílmica para criar. Igualmente o ensaísta: para que se possa ensaiar sobre determinado aspecto de um filme, é preciso saber as condições técnicas a que o filme se submeteu (conhecer a maneira como o filme foi feito), evitando assim um discurso que suponha determinados elementos tenham sido criados dessa ou daquela maneira para depois serem confrontados com um registro de backstage do filme. Ainda que haja a liberdade da recriação – ensaístas têm a liberdade subjetiva de criar determinadas reflexões –, se digo que determinado diretor filmou em preto e branco para criar uma estética noir, por exemplo, preciso me certificar que ele não fez isso devido à verba que tinha para realizar o filme, que não cobria o negativo colorido, e sim porque propôs criar uma áurea noir. Compreender a máquina (instrumento: técnica) é compreender como essa máquina re-produz o mundo. “O que caracteriza o cinema não é só a forma como o homem se representa diante da máquina, mas como ele representa o mundo graças a essa máquina” (ibid, p.28).

A comunicação humana é um processo artificial. Baseia-se em artifícios, descobertas, ferramentas e instrumentos, a saber, em símbolos organizados em códigos. Os homens comunicam-se uns com os outros de uma maneira não ‘natural’: na fala são produzidos sons naturais, como, por exemplo, no canto dos pássaros, e a escrita não é um gesto natural como a dança das abelhas. Por isso a teoria da comunicação não é uma ciência natural, mas pertence àquelas disciplinas relacionadas com os aspectos não naturais do homem, que já foram reconhecidas como “ciências do espírito” (Geisteswissenschaften). A denominação americana ‘humanities’ expressa melhor a condição dessas disciplinas. Ela indica na verdade que o homem é um animal não natural. Apenas nesse sentido pode-se chamar o homem de um animal social, de um ‘zoon politikon’ (FLUSSER, 2007, p. 89).

E como se comporta o gesto nessa relação entre poiesis e práxis? Não adentrarei no processo criativo do gesto, pois cada gesto em cada filme está inserido numa condição específica. A abordagem nesta esfera se resumirá a analisar o gesto de modo geral, diante das conjecturas proferidas ao longo desta pesquisa. Em suma, pode-se dizer que o gesto, sendo comunicador de subjetividade, está inserido numa poiesis: ele se situa numa esfera interpretativa, pois gesto representa modo de agir e pensar, de se inserir dentro de uma cultura, representação de conceitos (pré-determinados ou recriados). Porém, gesto para ser comunicado imageticamente depende de forma (corpo e instrumentos que se estendem ao corpo), senão ele deixa de ser gesto e se torna apenas discurso e, segundo Galard (2008, p.82: questão que ensaio mais precisamente no capítulo 4), palavras prolongam palavras, enquanto gestos bastam.

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Na práxis, o gesto necessita se manifestar imageticamente. No entanto, são gestos ‘artificiais’, uma vez que o processo de comunicação do homem é artificial (FLUSSER, 2007, p.89), assim sendo, o gesto humano é, por assim podemos dizer, inventado pelo próprio homem. Ainda que haja movimentos instintivos (expressões impulsivas) do homem que possam se assemelhar à condição de gesto, não o são pela simples condição de não comunicarem, apenas informarem. Somente quando os meneios humanos se comunicam, deixam de ser movimento e tornam-se gestos.

Pode-se de fato fazer (facere) algo e não atuá-lo (gerere), como o poeta que faz o drama mas não atua (agere significa também recitar): ao contrário, o ator atua o drama, mas não o faz. Assim o drama é feito pelo poeta, mas não atuado, e pelo ator é atuado, mas não feito. Ao contrário, o imperator (o magistrado investido de poder supremo), com relação ao qual se usa a expressão res gerere, nisso não faz nem age, mas gerit, isto é, assume e sustenta (sustinet), termo transferido daqueles que levam os pesos, na medida em que os sustentam21.

Gestos comunicam cultura. Cultura no sentido de plantar (facere e gerere), colher ideias (práxis) e no sentido de dar atenção (poiesis), dar importância, configura o conceito de gesto (vide capítulo 4) como algo que oferece informação e colhe (emprestando o termo de Flusser) dúvidas, enquanto oferece destaque do processo que se estabelece nessa comunicação. O gesto destaca os signos que o compõem, o gesto destaca a cultura empregada a ele, o gesto suspende-se no ato (vide subcapítulo 4.2). Assim, ele só é possível para quem faz algo e atua, caso contrário, ator se torna mero reprodutor do drama feito pelo poeta; só é possível a quem cultiva (faz e gera ao mesmo tempo). E cultivar é ato de gerar cultura.

21 VARRÃO. On the latin language, cit.,6,77, p.245, apud AGAMBEN, Giorgio. Opus Dei: arqueologia do ofício. São Paulo: Bomtempo Editorial, p.89.

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2.3. Notas sobre Cultura

Discursar sobre cinema é, senão, falar em cultura. Permitir-me-ei, neste instante, um hiato para revisitar os conceitos anteriormente dissertados, entrelaçando-os, para, ao aprofundar no gesto do tecer desses pensamentos, reencontrar (e reencontrar-me) nessa trama elementos que possibilitem dialogar sobre os conceitos que se seguirão no capítulo 4 (Gestos) e capítulo 5 (Ilusão-gestual) e os dois apêndices. Conceitos estes que são como fios de outros novelos que surgem entrançados e infiltram-se nesta trama. E todos estes fios são livres para se desenrolarem e entrelaçarem-se bem como pretenderem, pois, “a cultura, enquanto natureza do homem, é o campo da liberdade” (FLUSSER, 2011, p.74).

Sugiro, dentre os múltiplos conceitos de cultura, atentarmo-nos à cultura no seu âmbito produtivo: cultura enquanto cultivo – ato de cultivar (e dialogar assim sobre suas antagônicas definições: conversar/formar). Conversar enquanto falar por meio de uma linguagem – se sendo a mesma língua entre as duas pessoas que dialogam, há comunicação, se não é a mesma língua, há abismo –. Dialogesthai (através do discurso). Conservar enquanto gesto de comunicação (tornar comum), gesto bilateral. Formar enquanto ato de dar forma (aspecto,

aparência, molde).

Conversar é gesto expressivo, formar é gesto informativo. A priori, parece uma analogia um tanto equivocada.

Clarificando: enquanto uma primeira leitura e compreensão, gesto informativo parece ser aquele que transmite conteúdo, desta maneira, cultura enquanto modo de viver, (in) formar, é, na verdade, dar forma, forma não enquanto conteúdo da mensagem, mas a apresentação (estética) da mensagem; conversar é comunicar conteúdo, de modo que a interpretação se faz presente, ou seja, expressar (explicitar).

Conversar é comunicação subjetiva do gesto, formar é imagem técnica.

Desta forma, é possível dizer que a imagem técnica, quando situada na esfera do comportamento, transmite cultura; quando está fora deste campo, é informação imagética pura. O gesto encontra-se na associação formar + conversar.

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Em A Bela da Tarde (BUÑUEL, 1967), a imagem de Séverine (Catherine Deneuve) olhando a chuva pela janela (figura 08) situa-se, numa primeira percepção, no campo estético. Senso comum, imagem “convencional”: a chuva na janela. Todavia, sua mão apoiada sobre a janela e seu olhar distante (nota-se que o olhar dela não se direciona para nenhum objeto ou personagem e muito menos para a câmera) demonstram a mulher frágil e ao mesmo tempo íntegra, uma mulher entregue ao éthos, mas ao mesmo tempo imoral. Uma mulher que abandona as tradições sem deixar de vivê-las.

Séverine é uma mulher da alta-sociedade, casada, que, entediada com a vida que tem, resolve trabalhar em um prostíbulo (e assim assume o nome de guerra de Bela da Tarde). Para Séverine, é apenas uma fuga de seus costumes, de sua rotina. É, portanto, um modo terapêutico dela lidar com suas relações convencionais. O modo como ela se apoia na janela e o modo como deixa seu olhar distante confirmam essa dualidade emocional: uma mulher que tudo tem, mas, ao mesmo tempo, sente-se como se nada lhe pertencesse. Não veste sua casa, suas amigas, seu marido, sua classe social. Encontrou uma fuga, mas a fuga não lhe fez jus (a Bela da Tarde se mistura com Séverine, não sabemos quem é quem, as duas faces desta mulher se fundem). Gesto. Ainda que ela apenas contemple a chuva22.

Cultura não é questão de chuva (seja controlada e programada ou não), mas é questão da sensação que provoca nos que a observam pela janela. Em outros termos: se observo a chuva pela janela, vejo que a única justificativa de engajamento em cultura é aumentar o terreno da liberdade (aumentar a sala a partir da qual observo a chuva). A chuva ensina que a dignidade humana não se resume na luta contra a natureza. Há, entre natureza e cultura, uma região eticamente neutra, mas potencialmente perigosa, a região da programação isenta de valores. (FLUSSER, 2011, p.44)

Conversar acontece entre a chuva na janela e quem a observa, formar está no como essa chuva, esteticamente, é composta no enquadramento da cena. Chuva é código de aproximação e de reforço, ou seja, elemento que aproxima o espectador da atmosfera da cena, reforça, portanto, o gesto. Só a chuva e Séverine, sem meneio algum, seriam apenas personagem e ação da natureza. Com o gesto, chuva deixa de ser ação da natureza e transforma-se em emoção (medo, angústia, tristeza, saudade), podendo significar o feminino... muitos signos propostos por diferentes diretrizes de pensamento. Chuva transborda da imagem técnica para a linguagem subjetiva. Quando um elemento se transporta de icônico para metafórico, ele se torna cúmplice da personagem e do espectador.

22 Segundo DYLAN: “Uns sentem a chuva, outros apenas se molham” (DYLAN, apud TOCCI, Bianca Reis

Castaldi. Ocorrência e coexistência de cianobactérias diazotróficas no Canal de São Sebastião-SP com o aumento

da pluviosidade. 2016. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo). Sentir a chuva seria o gesto com toda sua

Referências

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