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Para Gil, os gestos formam ‘frases’, ora mais legíveis, ora mais confusas. [...] Os gestos, assim como com as palavras, não possuem um sentido definido, muito menos único; tudo depende de uma gama de fatores que contextualizam sua apresentação. ‘(...) gestos, traços fisionômicos, ritmos de silêncio e de barulhos, vibrações de murmúrios, respirações etc. Tudo isso forma um ‘discurso’ (PERES, 2015, p.212)

O discurso do gesto é um sistema de códigos subjetivo, formam frases, “ora mais legíveis, ora mais confusas” (ibid.), porém, sempre na direção da interpretação e, portanto, regida pela criatividade. Ou seja, o gesto não tem uma definição concreta (sem sentidos derivativos ou figurados), ele é conotativo, exprime-se de acordo com as circunstâncias a que está submetido e a decifração de quem o descodifica. Os gestos no cinema se submetem a esse panorama e, sendo subjetiva sua interpretação, cada gesto no filme causa, desta forma, uma leitura distinta para cada espectador (e, ainda, um mesmo gesto, em diferentes situações, pode gerar interpretações distintas para um mesmo espectador).

Se as leituras são distintas, como comunicar de forma universal um mesmo dado? Talvez seja uma tarefa um tanto impossível, e talvez seja mais preciso afirmar e aceitar que filmes são subjetivos e, portanto, nascem comunicando pontos de vistas distintos. Essa é a dificuldade que a linguagem, no caso, do cinema, manifesta desde sua origem. Portanto, submetida a problemáticas comunicacionais, estão as problemáticas da interpretação fílmica.

Para entender como intercorre as interpretações fílmicas e os obstáculos da comunicação entre filme e espectador, em particular, os abismos na esfera dos gestos, é preciso compreender, conforme coloca Flusser em Língua e Realidade (2007), a distinção entre decifrar e traduzir para assim diferir o conversar do formar. Por ora, é possível dizer que gesto é conversa enquanto comunicação de cultura e forma enquanto aspecto, seu simulacro enquanto imagem fílmica. Assim sendo, enquanto conversa, ele está submetido ao processo da decifração; enquanto forma, ele é cabível de uma tradução, no entanto, traduzir o gesto não é, senão, confrontar sua natureza subjetiva.

A forma do gesto é apenas uma ferramenta de contorno que, no conjunto do ato, possa simulá-lo. Não é apenas a forma que comunica, ela é suporte para expressar, imageticamente, o conjunto de signos que irão ser decifrados.

Isto posto, como se procede a conduta de decifrar os gestos? Primeiramente, é preciso compreender qual o conceito de decifração está sendo aplicado nesta pesquisa. Considerando o abismo da subjetividade linguística, decifrar, a priori, é aproximar-se dos signos que são apresentados ao interpretante, enquanto sujeito, ou seja, criam-se pontes sobre os abismos, mas essa aproximação é exclusiva do decifrador em questão.

Díspar é a tradução que, pelo seu caráter denotativo, exprime-se coletivamente. E, se traduzir é dar forma, podemos dizer que decifrar é desinformar. Importante abrir parênteses para não gerar equívocos: ainda que a linguística trabalhe com o sentido de que traduzir é comunicar, pegarei emprestado de Flusser23 (2014) a ideia de que comunicar não é apenas

informar (como sinônimo de discursar), mas, sim, uma conversa bilateral (diálogo); se sujeito informa e receptor não retorna a conversa, não há, portanto, comunicação.

Decifrar é selecionar o conteúdo de seus recipientes. É um desdobrar daquilo que o cifrador recheou, dobrou e tornou implícito nesses recipientes. E isso não apenas ao nível das cifras isoladas, mas em todos os níveis da mensagem codificada. Se esses conteúdos foram rigorosamente dobrados […], então a decifração é um empreendimento que exige muito esforço. […] não apenas alguns conteúdos “ocultos” que lá estão no fundo dos recipientes podem nos escapar, mas também, e isso é pior, nós podemos ser iludidos pelo cifrador. (FLUSSER, 2010, p. 100)

Na teoria, decifrar é encontrar significância dos códigos apresentados através dos códigos de quem interpreta enquanto traduzir é manter-se fidedigno aos códigos do cifrador (reproduzir sem interpretar). Na prática, decifrar e traduzir utilizam da predileção do sujeito que decifra ou traduz, de modo que quem decifra é impulsionado por uma cultura linguística pessoal e quem traduz também, uma vez que o tradutor tem a liberdade de escolha das palavras as quais pretende utilizar para transcrever determinados códigos de uma língua à outra. Diferenciam-se, portanto, na esfera do receptor: na tradução, o receptor recebe passivamente os signos informados; na decifração, receptor ingere e regurgita os signos recriando seus significados.

23 Comunicação: Flusser em Comunicologia (2014, pp.49-50) define que “diálogo é o método graças ao qual

informações que estão dispostas em duas ou mais memórias são trocadas para conduzir a novas informações”, e que “discurso é o método graças ao qual as informações que estão dispostas em uma memória são transmitidas a outros. O diálogo produz informações, o discurso as mantém”; assim sendo, “discurso e diálogo devem estar acoplados para que a comunicação aconteça” e que “discurso é o método graças ao qual as informações que estão dispostas em uma memória são transmitidas a outros. O diálogo produz informações, o discurso as mantém”; assim sendo, “discurso e diálogo devem estar acoplados para que a comunicação aconteça”.

Percorrendo as obras Os Limites da Interpretação de Eco (2015), Escritos sobre Mito e

Linguagem de Benjamin (2013) e Língua e Realidade (especialmente no capítulo Limite da tradução) de Flusser (2007), é de comum sapiência que o homem nasce e se consolida decifrador24. Uma vez sendo da natureza do homem decifrar, no espaço fílmico a função ativa

do espectador é senão decifrar os códigos fílmicos. Para tal, precisa retomar a sua natureza decifradora e abdicar da necessidade imposta, de ser tradutor, ou seja, denotativo. Ainda que numa primeira instância o espectador possa apenas ser passivo diante das imagens, abstrair-se de significações e relacionar-se apenas no sentir, é inegável que, por mínimo esforço que possa a vir acontecer, o espectador irá de alguma forma decifrar o que está sentindo, pois, na natureza humana, decifrar e sentir caminham de mãos dadas. Se sinto, quero saber o que sinto, porque

sinto e para que sinto. O papel da imagem fílmica, ou seja, da forma, é, portanto, espelhar o como sinto25 – ou seja, o gesto. Talvez seja isso que Agamben queira transmitir quando diz que

“no cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos procura reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao mesmo tempo, registrar a perda” (2015, p.21).

Conversar é comunicabilidade, é código cifrado, decifrado e re-decifrado. A imagem do filme está colocada em pauta, ela se forma, eu observo a imagem, sinto, recepciono os códigos cifrados e depois codifico-os, decifro-os. A priori, o sentir abstrai-se da tradução. No entanto, forma é tradução e é a natureza humana: o corpo traduz as sensações, é fenômeno biológico; o cérebro decifra os códigos da percepção. E, como se sabe, a percepção humana não capta apenas os gestos humanos, mas toda esfera de signos que cercam o corpo. Esse espelho cinematográfico não apenas reflete o gesto representado pelo corpo e os instrumentos que se estendem ao corpo, mas, também, os fenômenos que ocorrem fora do corpo, como a chuva de

A Bela da Tarde (figura 8). Ao observar a cena em questão, não quero apenas decifrar o gesto

da personagem, mas quero saber qual o significado dessa chuva que sinto ao ver Séverine olhando pela janela.

24 Um pai ou uma mãe precisam decifrar o gesto do bebê para compreender o que ele está comunicando (para diferenciar, por exemplo, diferentes tipos de choro). Da mesma forma, o bebê decifra o mundo que o cerca, os gestos do pai ou da mãe em relação direta com ele, para descobrir novas formas de comunicar-se. No entanto, por processos culturais, o ser-humano se submeteu a uma universalidade de significação, tirando-o da esfera da decifração, tornando-o tradutor.

25 Como discursado anteriormente, o diálogo entre espectador e filme é feito por signos fílmicos com os quais o espectador se identifica (captados através dos seus sentidos), por meio de seus sentimentos em uma primeira instância e depois, numa segunda instância, os codifica.

Figura 8. Frame de A Bela da Tarde (BUÑUEL, 1967)

Para Flusser, imaginação é “a capacidade de fazer e decifrar imagens” (2011, p.21). O espectador, ao ver Séverine observar a chuva cair sobre a janela, também observa a chuva; sendo uma cena cujo contexto conduz para a reflexão psicossocial da personagem e sociedade a qual o filme investiga, não é apenas sobre as questões que envolvem Séverine que o espectador imagina, mas sobre janela e, por sua vez, a chuva, pois a imagem fílmica não engloba, nesse caso, apenas o gesto da personagem. Estando o gesto dentro de uma composição imagética que envolve outros signos, para decifrar o gesto é preciso decifrar todos os signos que compõe essa imagem. É preciso decifrar a chuva.

Mas, no discurso sobre decifrar e traduzir, imaginação atua exclusivamente no contexto da decifração? Ou traduzir, ainda que tenha como finalidade ser algo objetivo, produzir significados denotativos, apresenta-se no âmbito da imaginação? O problema da tradução talvez seja esse: quem traduz, traduz segundo os códigos que lhe pertencem, fazendo uso, desta forma, de sua subjetividade. E, ainda, quando, ao acessar seus códigos, depara-se com mais de uma possibilidade de significação, é o tradutor que escolhe qual é a tradução que deseja conferir, ou seja, ao tradutor é concedida a liberdade da tradução.

Benjamin (2013, p.116) insere-se nesse conceito de tradução e discursa sobre a liberdade do tradutor, não somente na escolha das palavras (e com isso das diretrizes dos significados: códigos), mas na escolha do que traduzir. Em primeiro lugar, se o objeto raiz, que ele decide traduzir, abarca mais de uma versão (rascunhos, esboços, edições), o tradutor é livre para escolher com qual volume irá trabalhar; em segundo, se esse volume menciona, em citações e observações, referências externas ao objeto em questão, o tradutor pode ou não acessar essas indicações. Por último, pode o tradutor reorganizar a circunscrição do objeto raiz, a exemplo de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (Benjamin) que tem seu original Das

Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (1936) publicado pela primeira

vez, em alemão, como parte integrante da revista do Instituto de Pesquisas Sociais (Frankfurt, Alemanha), mas que fora reescrito (republicado) outras vezes pelo próprio Benjamin em outras línguas. Além da liberdade da (auto)tradução, o autor ainda se deu a liberdade de atualizar o conteúdo de seu ensaio26.

Diferentes versões, cada qual com suas particularidades de significância, cada qual publicada em um veículo distinto, influenciada pelos textos que recheiam o volume em que se encontra. A versão a qual tomo como leitura, por exemplo, tradução de Marijane Lisboa, dialoga, pois, com Estética e anestética: uma reconsideração de A obra de arte de Walter

Benjamin, de Susan Buck-Morss, capítulo pertencente ao mesmo livro. Na tradução de Lisboa

(BENJAMIN, 2015, p.26): “A realização de um filme, particularmente de um filme falado, oferece um espetáculo que no passado seria inimaginável”; na tradução de José Lino Grünnewald (BENJAMIN, 1980, p.25): “A confecção de um filme, sobretudo quando é falado, propicia um espetáculo impossível de se imaginar antigamente”.

Inimaginável e impossível de se imaginar têm significados distintos. Numa decifração que melhor se aproxima de uma definição denotativa (ainda que seja minha codificação),

inimaginável significa aquilo que não pode ser imaginado por determinada circunstância,

pensado; enquanto impossível (de se imaginar) é aquilo que não pode ser imaginado por

nenhuma circunstância. Mesmo assim, ambas as traduções são admitidas, cada uma de acordo com o original referenciado.

26 O que torna o artigo em cada publicação, um novo artigo, até mesmo tendo uma publicação pelo próprio Benjamin, em 1955, em que em notas justificava a atualização de Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen

[…] A liberdade da tradução consolida para si uma nova e mais alta legitimidade. Essa liberdade não deve sua existência ao sentido da comunicação, do qual justamente a fidelidade tem a tarefa de se emancipar a tradução. Mais do que isso, essa liberdade se exerce, em nome da pura língua, na própria língua. A tarefa do tradutor é redimir, na própria, a pura língua, exilada na estrangeira, liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação […]. (BENJAMIN, 2013, pp. 116-117)

No cinema, esse panorama pode ser visto tanto quando se fala em dublagem ou legendas, ou quando lidamos com transcrições (sejam elas: resenhas jornalísticas, em ensaios acadêmicos ou áudio-descrições). O problema que a tradução, neste contexto, confere, é a do espectador, através das imagens, decifrar um filme em sua mente e ser contrariado com o discurso de outro filme gerado pelos elementos tradutores.

Se a cultura no filme para ser incorporada pelo espectador precisa ser decifrada, então é possível dizer que a cultura fílmica é uma cultura regida pela liberdade e pelos limites27 da interpretação.

Dentre os muitos elementos que conduzem os abismos linguísticos no cinema, tomei a liberdade de escolher/recortar cinco hiatos que posso compilar perante a fenomenologia como as principais instâncias obstrutoras da interpretação28 no cinema.

27 A analogia entre liberdade e limite se refere ao fato de que cada espectador tem seus próprios códigos de interpretação, ou seja, é regido pela subjetividade, e desta forma, ao se deparar com um filme, irá decifrar, de maneira particular e livre, os signos fílmicos nele presente, porém será limitado pelos limítrofes de sua cultura, quando lhe são apresentados signos os quais ele não tem códigos capazes de propor algum tipo de decifração. 28 Uma vez que, ao longo desta tese, ora uso o termo decifrar, ora o termo traduzir, ora o termo interpretar, é preciso fazer um adendo sobre as dissemelhanças entre estes termos. Os termos decifrar e traduzir se encontram elucidados no presente capítulo. Por vez, o termo interpretar é empregado como sendo a comunicação entre duas estratégias discursivas, dois discursos que se entrelaçam, e não entre dois sujeitos ou sujeito e objeto. Enquanto o decifrar é conotativo e o traduzir denotativo, o interpretar é conotativo e denotativo simultaneamente. Ou seja, interpretar, nesta pesquisa, é disposto como sendo o ato de decifrar um signo e transformar essa decifração subjetiva em um código objetivo, ainda que este código final, estabelecido venha a ser, por sua vez, decifrado e depois traduzido em outro código objetivo e assim, numa incessante via de decifrações, estar sempre se ressignificando. No cinema, o espectador que discursa a outrem sobre seu ponto de vista de determinado signo fílmico, está ora usando, ora interpretando este signo (ele entrou em contato com o signo, captou pelos seus sentidos, decifrou e depois traduziu para outro sujeito). É importante ressaltar, que uso e interpretação são duas ações distintas (ECO, 2015, p. 18-19). Usar é ensaiar de modo livre um filme ou parte do mesmo, por exemplo, em um artigo sobre o filme, estando, por essa anistia, desobrigado de assinalar elementos (visuais ou sonoros) presentes (por meio de simulacro) no filme; enquanto interpretar é recriar o filme no ponto de vista de quem discursa sobre ele, no entanto, empregando elementos presentes (por meio de simulacro) no filme. Em relação ao gesto no cinema, ainda que, usar e interpretar sejam, ambos, instancias abstratas (ibid.), usar o gesto em um ensaio posterior ao filme é, poder, reinventá-lo e desprende-lo de qualquer referência que haja sobre ele no filme ou em materiais acerca do filme, enquanto interpretar, ainda que seja uma tarefa subjetiva e permita ao interpretante recriar, a ação de interpretar está atrelada a ação buscar as designações deste gesto diante do contexto cultural da trama do filme e ainda da autoria do filme. Interpretar não é apresentar panoramas próprios e exclusivos do decifrador, isto é usar o filme (decifrar sem traduzir); interpretar o gesto no filme é decifrar e traduzir ao mesmo tempo. É buscar registros que ‘certifiquem’ possíveis significações deste gesto.

Essas são as cinco problemáticas da interpretação fílmica propostas para tal análise:

autoria: relação entre o autor do filme e o tradutor (storyteller/diretor/espectador);

ausência cultural: códigos que existem em uma cultura e não tem equivalência noutra;

confronto de significação cultural: quando um mesmo código tem significado díspar;

gesto em relação a forma e a conversa: o hiato imagético e o hiato corporal (e subjetivo);

recriação: através da imaginação (criatividade).

Embora algumas destas problemáticas apresentem-se ao longo dos capítulos 1 e 2, considero necessário retomá-las nesta etapa, para melhor aprofundamento, assinalando questões que sustentarão com mais precisão as articulações linguísticas do gesto no cinema (capítulo 4) e suas relações com motivos que inferem o gesto tais como o abismo, uma vez que

as problemáticas da interpretação fílmica são nada mais do que abismos linguísticos

cinematográficos, e a cultura, por conseguinte, o abismo cultural29.

29 Sendo cultura “o dispositivo graças ao qual as informações adquiridas são armazenas para que possam ser acessadas” (FLUSSER, 2014, p.45), o abismo cultural no cinema pode ser entendido como a falha de comunicação entre dispositivo (cultura presente no filme) e espectador (que é quem vai acessar o dispositivo).

3.1. Autoria

A autoria fílmica é uma questão costumeira de debates: quem é que deve assinar o filme? De comum acordo, o diretor é postulado como autor do filme, pelo caráter de sua função: ele é o maestro no cinema. Maestro assume postura de autor, pois, assim como os maestros das grandes orquestras, é ele quem dá a forma da obra. Mas não necessariamente é ele quem cria a história (story) que está sendo narrada, ou seja, não necessariamente é ele o storyteller. Se houver outro sujeito assumindo esse encargo e sendo ele, então, o sujeito que redige a trama, seria então o autor indicial do filme? Essa questão se torna, desse modo, uma problemática linguística, no campo da produção do filme, quando temos a cultura do diretor (e dos atores, cinegrafistas, editores etc.) interpretando (e assim tendo sua liberdade de codificar) a cultura do storyteller. No campo da recepção fílmica, o espectador é quem estará decifrando, ou seja, a mensagem 'final' que se estabelece para o espectador não é outra senão a mensagem que ele estabelece com seus códigos particulares: ele se torna recriador do filme. Assim, surge, por conseguinte um abismo cultural: qual é a cultura que está sendo expressada no filme?

O problema da autoria fílmica remete à questão dos códigos, pois, sem saber em qual contexto os códigos fílmicos estão sendo empregados, o espectador irá modelar esses códigos exclusivamente através de sua imaginação, irá usar os signos fílmicos e não, portanto,

interpretá-los. Quando o espectador é informado da autoria (neste instante, deixo de lado a

questão sobre quem é o autor do filme), ele desenvolve uma relação com a cultura deste autor e, assim, irá interpretar (e.g. este gesto da personagem remete a isto e não aquilo porque o autor do filme é desta região, desta religião, desta etnia, etc.). A autoria do filme é, portanto, a autoria dos gestos que nele se manifestam. A relação entre autor do filme e espectador, mediada pelo gesto, conflita-se e gestos se tornam estranhos ao espectador. Assim sendo, reconhece-se o gesto, em seu simulacro, mas não há códigos capazes de decifrá-lo.

Destarte, seria melhor aceita a formulação que Umberto Eco traz em Os Limites da

Interpretação (2015) e em A Obra Aberta (2013) de que toda obra (no caso filmes) deve ser

avaliada por sua integridade e, assim sendo, pela cultura do conjunto da obra e não particularidades de um ou mais autores.

3.2. Ausência Cultural

Um filme estabelece uma cultura e com ela determinados códigos. São códigos que pertencem ao filme, cultura provinda de quem o fez. Como cada sujeito se estabelece em uma cultura particular, cada sujeito tem seus próprios códigos e nem todos eles estabelecem equivalências. Isso causa o que chamo de Ausência cultural: a chuva em A Bela da Tarde, que significa, para mim, a dualidade da personagem principal da trama (Séverine/Bela da Tarde), por uma questão de Confronto de significação cultural, para outra pessoa pode significar a melancolia (conforme alguns ensaios em livros de críticos de cinema), para outra a transformação, para outra ainda, pode ser apenas a chuva, por faltar códigos para ver a chuva além do fenômeno natural (natureza). A Bela da Tarde não é mais o filme de Buñuel, mas diversos outros filmes: cada qual com seus códigos e significação. Eis a problemática da significação cultural. O salto de língua para língua.

Mas a Ausência cultural não é somente fenômeno subjetivo, no sentido de significação abstrata das imagens, das narrativas, dos gestos; é também delimitação histórico-geográfica, étnica. Às vezes a informação transmitida no filme é discurso direto, icônico, porém depende dos códigos daquela cultura em que se encontra para comunicar exatamente aquilo que pretende. É necessário conhecer o dicionário da língua matriz de quem informa determinado ícone, caso contrário, o “quer dizer isso” torna-se o “eu imagino que queira dizer isso”. É como se um francês, por exemplo, falasse com um brasileiro, cada qual em sua língua matriz, sem ter domínio algum da língua do outro. Não haverá conversa, comunicação, serão dois estranhos que não se entendem, estrangeiros (subcapítulo 2.1) um ao outro.

A diferença entre Ausência Cultural e Confronto de Significação Cultural é um tanto tênue e se estende à reflexão no tópico a seguir sobre Confronto de Significação Cultural.

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