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O aparecimento da malhadeira

Fig nº 16 Formas de uso da terra, da água e da floresta na várzea de Manacapuru-AM

CAPÍTULO 5 AS TERRITORIALIDADES AQUÁTICAS: O USO DA ÁGUA NA AMAZÔNIA

5.4. O aparecimento da malhadeira

Veríssimo (1970) não menciona no seu estudo do final do século XIX, a utilização da malhadeira pelos índios e camponeses-ribeirinhos na região. Bittencourt (1951) e Pinto (1956) não fazem referência a esse utensílio de pesca. Meschkat (1959), especialista da FAO-UNESCO em atividades haliêuticas, contratado pela SPEVEA para aperfeiçoar e desenvolver novas técnicas para a captura de peixes, principalmente as redes, observou o uso da malhadeira no final da década de 1950, por alguns camponeses-ribeirinhos. (Fig. nº. 49). Na várzea do município de Manacapuru, mais precisamente na Costa do Pesqueiro, uma das áreas da pesquisa, a rede malhadeira foi introduzida no início da década de 1960. O relato de um camponês-ribeirinho mostra, com detalhes, o momento em que apareceu a malhadeira nessa localidade:

Estava lá na ilha do Marrecão quando foi um dia o Sebastião foi pescar com um cara de lá, aí esse cara disse “rapaz, tu já viu esse material de pesca?”, aí o Sebastião ficou olhando, disse “não”. “Mostra aí pra mim como é que é”, aí ele suspendeu assim, aí o Sebastião ficou assim, aí ele botou aquilo no juízo né. Aí, quando nós viemos embora de lá ele comprou 1 quilo de fio e teceu uma logo. Mas ninguém sabia como era, fomos botar lá no lago Preto aí pronto, desde aquele tempo nós ficamos até hoje, quem começou aqui foi nós dois. Aqui nessa Costa, não tinha ninguém que sabia de nada. Naquela época era só caniço, tarrafa, espinhel, arpão. Na primeira vez que ele teceu a gente só enfiava na parte de cima da malhadeira, onde dá sustentação. Na primeira pescaria com a malhadeira, a gente fazia de punho fraco

153 DIEGUES, op. cit.: p.265.

não é como agora que é só nylon, quando pegava o peixe arrebentava tudo e lá ia aremendar de novo. Depois aprendemos a dar o nó como é agora. Nós mesmo tecia, porque a gente trabalhava com fio, nós tinha rede, nós trabalhava em pesca desde rapaizinho novo, a gente já era casado nessa época. (Senhor Milton Ferreira, 74 anos, camponês-ribeirinho).

Fig. nº. 49 – Malhadeira

Fonte: Meschkat, 1958.

O aparecimento e a rápida proliferação da malhadeira na Amazônia, segundo os moradores, foi um fator determinante para a diminuição dos recursos pesqueiros disponíveis nos diferentes ambientes aquáticos. O uso desse utensílio possibilitou, aos camponeses-riberinhos, uma maior poder de captura, principalmente no ambiente lago, do que outros instrumentos utilizados até então. A facilidade de seu uso, inclusive em áreas de igapó, onde os peixes se refugiavam da captura, aliada a um aumento da demanda por peixe nas cidades amazônicas, impulsionou sobremaneira a pesca, sobretudo aquela realizada nos lagos. Esse novo instrumento foi adotado tanto nas pescarias executadas pelos barcos pesqueiros como por muitos camponeses-ribeirinhos. O resultado tem sido uma redução acentuada dos estoques pesqueiros, sobretudo nos lagos de várzea. E importante ressaltar que desde a introdução da malhadeira, no início da década de 1960, os camponeses-riebrinhos na várzea de Manacapuru já reclamavam da

intensidade da captura desse novo utensílio de pesca, como comprova o depoimento a seguir:

Naquele tempo nos colocava a malhadeira aqui no lago Preto, pegava peixe e ia vender em Manacapuru. A gente pegava mais do que o pessoal, por que o pessoal ia pegar de anzol, tarrafa, quando a gente ia a porrada era segura. A gente ia vender e ficava tudo com inveja. Aí quando foi um dia eles deram parte lá na polícia pra pegar nós lá. Era eu e o João Silva, meu compadre. Quando nós chegamos lá em Manacapuru, vendemos e voltemos logo, quando a gente ia saindo o guarda foi até na beira, mas não pegou nós. Quem denunciou foi o pessoal daqui mesmo, que hoje em dia são os principais. (Senhor Milton Ferreira, 74 anos, camponês- ribeirinho).

Como se pode observar, o camponês-ribeirinho, na sua fala, menciona que os moradores fizeram denúncias junto à delegacia de polícia pelo uso desse apetrecho de pesca com alta capacidade de captura, pois naquele momento o poder público não dispunha de nenhum órgão responsável pela preservação do meio ambiente. Outras denúncias foram feitas para o delegado na cidade de Manacapuru, visando à proibição da pesca com a utilização da rede malhadeira nos lagos de várzea. Para os denunciantes, era necessário tomar providências urgentes, pois, segundo eles, os camponeses-riberinhos que adotaram esse novo instrumento estavam provocando uma destruição, sem precedentes, no estoque de peixes nos lagos.

O Januário, o Papai e o finado Chico Aguiar foram pra lá, pegaram uma malhadeira velha e levaram pra mostrar lá pra eles, porque estavam dizendo que era uma coisa que ia acabar com o peixe, pegaram uma malhadeira velha do Januário e levaram pra mostrar lá pro delegado. Aí chegaram lá, ele perguntou como é essa pescaria, até o delegado não sabia, como é isso dizem que vocês estão acabando lá com os peixes. Aí o Januário puxou e disse: olha lá essa rede como é aqui, o delegado ficou espiando e disse: isso aqui não pode acabar nada, entra aqui quem passar e aquele que não passar não entra nada e se botar numa parte que não tem nada não pega nada como o delegado disse, esse tipo que vai acabar o peixe como estão dizendo que está arrasando. (Senhor Milton Ferreira, 74 anos, camponês-ribeirinho).

Nota-se no relato que o delegado por não ter uma compreensão clara da capacidade de pegar peixes com esse utensílio, nada fez para impedir esse tipo de pescaria nos lagos. Assim, cada vez mais, essa rede de emalhar passou a ser adotada pelos camponeses-ribeirinhos nas suas pescarias. Na realidade, a introdução da malhadeira despertou entre os camponeses-ribeirinhos repugnância e curiosidade. Aquela foi manifestada porque esse novo instrumento, como já visto, possui um elevado poder de captura. Tão logo foi introduzido, os moradores perceberam a diminuição na quantidade de peixes disponíveis nos lagos, principalmente as espécies tambaqui e pirarucu. O segundo se manifesta no interesse em querer aprender a confeccionar esse novo aparelho e, certamente, a usá-lo, como ilustra o relato a seguir:

Todo mundo vinha espiar nas nossas, porque quem sabia fazer bem mesmo era nós, porque foi nós que comecemos. Todo mundo veio aprender a fazer pronto até hoje nunca mais esqueceram, além de que muitos roubaram da gente155 e aprenderam a fazer e começaram a pescar aí dentro do lago nunca mais pararam, tem deles que só vivem disso, da pesca, não trabalha, não faz mais nada, tem gente que não tem nenhuma roça não tem mais nada só que viver daquilo, da pesca. (Senhor Milton Ferreira, 74 anos, camponês- ribeirinho).

A difusão da malhadeira nas duas décadas seguintes a sua introdução, na Amazônia, foi impressionante. (Fig. nº. 50). Esse instrumento passou a ser utilizado na pesca profissional embarcada, voltada exclusivamente para a comercialização nos principais centros urbanos da região, como para a pesca executada pelos camponeses-ribeirinhos, esta destinada ao autoconsumo e/ou a comercialização. Petrere (1978) ao estudar a pesca comercial, executada pelos barcos pesqueiros e tendo por ponto básico de apoio para suas operações a cidade de Manaus, identificou a intensa utilização desse utensílio na década de 1970156. Smith (1979), no trabalho realizado no município de Itacoatiara, no rio

155 Segundo a fala do camponês-ribeirinho abaixo foi a partir do surgimento da malhadeira que começou a aparecer casos de furto na Costa do Pesqueiro: “Aí as pessoas foram vendo como faziam as malhadeiras, aí foi que começou ladrão aqui nessa Costa. Deus o livre, durante eu ter malhadeira eu fiz as contas, sabe quantas malhadeiras roubaram de mim? 58 malhadeiras, depois eu perdi as contas, eles achavam a modo difícil fazer uma e quando encontravam dando sopa levavam. Eu sofri muito”. (Senhor Milton Ferreira, 74 anos, camponês-ribeirinho).

156 PETRERE Jr., M. “Peca e esforço de pesca no Estado do Amazonas. II. lcais aparelhos de captura e estatísticas de desembarque”. In: Acta Amazônica, ano VII, nº. 3, Manaus, INPA, 1978.

Amazonas, também, observou o intenso uso da rede malhadeira entre os camponeses-ribeirinhos no final daquela década157.