• Nenhum resultado encontrado

Fig nº 16 Formas de uso da terra, da água e da floresta na várzea de Manacapuru-AM

CAPÍTULO 5 AS TERRITORIALIDADES AQUÁTICAS: O USO DA ÁGUA NA AMAZÔNIA

5.3. Os barcos motorizados

No final da década de 1940 e início da década de 1950, começaram a aparecer, na região, os primeiros barcos de pesca, movidos a motores a diesel e com caixas de gelo acoplado na parte central dessas embarcações. No estado do Amazonas, essas embarcações foram denominadas de “motores de pesca”, enquanto no Pará de “geleiras”. (Fig. nº. 48). As inovações tecnológicas na pesca, sobretudo no transporte e armazenamento a bordo, na Amazônia, inaugurou o período no qual Melo (1983) definiu de comercialização intensiva de pescado146. Este autor nos revela que no estado do Pará a introdução do motor na embarcação, no final da década de 40, ocasionou “intensa campanha contestatória por parte dos portugueses que então detinham o monopólio das geleiras de velas que transportavam o pescado”147. Por outro lado, não há

notícias, no Amazonas, de protestos conduzidos pelos portugueses, proprietários das poveras, com o surgimento dos barcos motorizados. Nesse estado, tão logo os barcos de pesca a motores a diesel surgiram, as empresas de canoa a remo e à vela foram paulatinamente deixando de sair para as viagens, sendo, em seguida, desativadas.

Com o advento dos barcos motorizados para a atividade pesqueira, em substituição as poveras e das inovações que os acompanharam, houve mudanças significativas ao nível da produção e da circulação no setor pesqueiro regional. A introdução do motor permitiu aos barcos, um deslocamento mais rápido, possibilitando alcançar lugares de pesca até então não explorado pela pesca comercial intensiva, assim como um maior tempo de permanência nas viagens. Além disso, essa inovação tecnológica permitiu a utilização de embarcações maiores, tornando possível um aumento na capacidade de captura, permitindo, assim, uma certa regularidade de desembarque de pescado para os principais centros urbanos da região. Uma outra mudança verificada com a introdução do motor nos barcos ocorreu no processo de trabalho. Além do proeiro e do largador de rede, já presentes nas poveras e geleiras à vela, surgiram novas funções como a de maquinista, gelador, cambiteiro, motorista, cozinheiro, dentre outras.

146 MELlO, Alex Fiúza. A pesca sob o capital: a tecnológica a serviço da dominação. Belém: UFPA, 1985. p. 42.

Assim, os avanços tecnológicos na pesca ocorrem simultaneamente com o crescimento da população urbana das cidades amazônicas e, por conseguinte, do aumento da demanda por peixe. As exportações de peixes para os mercados nacional e internacional, sobretudo os peixes de couro/liso, principalmente a partir da década de 1980, impulsiona ainda mais essa demanda148. A explicação para esse crescimento da demanda urbana por peixe reside no extraordinário aumento populacional observado nas principais cidades amazônicas nas ultimas décadas. A cidade de Manaus, por exemplo, teve um crescimento populacional sem precedente, passou de 175.000, em 1960, para 1.403.796 no ano 2001, tornando, portanto, o maior pólo consumidor de pescado da Amazônia ocidental.

Para atender a esse aumento da demanda urbana por peixes ocorre concomitante uma expansão da frota pesqueira embarcada e motorizada, tendo como base de apoio para as viagens os principais centros urbanos da região. Em Manaus, o crescimento da frota pesqueira, nas últimas décadas, foi significativo:

148 McGRATH, David G. et. al. Varzeiros, geleiros, e o manejo dos recursos naturais na várzea do baixo Amazonas. In: Cadernos do NAEA, nº. 11, novembro, 1993. p. 102.

Fig. nº. 48 – Barco de pesca movido a motor a diesel, denominado no estado do Amazonas de “motor de pesca”. Observe-se a caixa de gelo acoplada no convés, ocupando a maior parte dessa embarcação. Costa do Pesqueiro I, baixo rio Solimões, em 17 de março de 2007, estando as águas a 23,50 m acima do nível do mar. (Fotografia de Manuel de Jesus Masulo da Cruz).

passou de 135 barcos, em 1970149, para aproximadamente 1.200, em 1991150. Cerca de 80% dessa frota que desembarca na capital amazonense é composta de barcos de porte médio, 20 a 30 m de comprimento com capacidade entre 15/30 toneladas151.

É em torno das principais cidades amazônicas, portanto, que se consolidam esse tipo de pesca com estratégia itinerante, voltada exclusivamente para o abastecimento urbano e executada, cada vez mais, por pescadores profissionais embarcados, completamente diferente da pesca tradicionalmente realizada pelos camponeses-ribeirinhos, como teremos oportunidade de discutir mais adiante. Além disso, com essas mudanças na pesca, representado pela introdução do motor na embarcação e outras inovações, se estabeleceu definitivamente, na Amazônia, a comercialização do peixe fresco e congelado em detrimento do peixe seco-salgado. Esta última forma era muito presente ainda no período das poveras e das geleiras à vela.

No porto de desembarque, em Manaus, desenvolveu-se uma rede de intermediários, na qual o “despachante” aparece como a figura mais importante, uma vez que exerce todo controle sobre a produção. Este negocia o pescado ainda nos barcos e garante aos seus proprietários, armadores de pesca, uma venda segura e rápida, possibilitando, desse modo, o retorno quase que imediato aos lugares de pesca. Os despachantes controlam, ainda, a distribuição para a cidade por meio de venda facilitada aos feirantes, os quais podem liquidar seus débitos em 24 horas, ou seja, no início da venda realizada diariamente à noite, às 22 horas no porto da Panair – rio Negro.

Muitos proprietários de barcos de pesca tornaram-se despachantes, assim como muitos despachantes investiram parte do seu capital na aquisição de barcos que são equipados para a pesca.

A forma de pagamento na pesca profissional embarcada itinerante, em Manaus, é realizada pelo sistema de partes. Este sistema está condicionado a quantidade de peixe a ser capturado que, por sua vez, induz o pescador a se empenhar, cada vez mais, no processo de captura, não tendo limite de jornada de

149 JUNK, Wolfgang J. As águas da região amazônica. In: SALATI, Enéas. Amazônia: desenvolvimento,

integração e ecologia. São Paulo: Brasiliense; CNPq, 1983. p. 74.

150 COMISSÃO PASTORAL DA TERRA – AM/RR. Os ribeirinhos: preservação dos lagos, defesa do

meio ambiente e a pesca comercial. Documentos. Manaus: Mimeo, 1991, p. 07.

trabalho. Além disso, essa atividade pode ser realizada em qualquer hora e em qualquer situação: à noite, com chuva ou sol. Como se pode ver, os pescadores ao sair para as viagens, são afetados ideologicamente, pois os mesmos têm a ilusão de que numa boa pescaria terão certamente ganhos maiores do que outros trabalhadores em terra. Entretanto, não muito diferente de outros trabalhadores, os pescadores são na atividade pesqueira mal remunerados.

Mais recentemente, principalmente a partir da década de 1980, quando a maioria dos despachantes deixou de financiar a armação do barco, os custos das viagens de pesca foram inteiramente assumidos pelos proprietários dessas embarcações e sua tripulação. Na armação de um barco pesqueiro, por exemplo, entram custos como lona nova, peças de reposição do motor, gelo, combustível, lubrificantes etc, que correspondem ao capital constante. Além do rancho, ou seja, os mantimentos para a permanência nas viagens, que corresponde a parte variável do capital. Ambas as situações constituem as despesas comuns, ou seja, pescadores e armadores assumem despesas que, em outro setor, seria exclusivo do capitalista. Este empreendimento comum

... é uma forma de repartir os riscos com a tripulação, protegendo-se melhor da aleatoriedade da captura e do mercado, que poderia ser fatal sobretudo para o pequeno armador. Para esse, se a tripulação fosse remunerada por salários, uma série de viagens consecutivas sem bons resultados poderia significar a falência”152.

Nesse processo, os pescadores assumem diretamente as responsabilidades da armação do barco, assim como os prejuízos decorrentes de uma pescaria mal sucedida. Caso isso ocorra, é aceito com naturalidade pelos pescadores, pois os mesmos acreditam nessa forma enganosa que é o empreendimento comum. Quanto ao armador, proprietário do barco, sua situação é mais cômoda, pois, por pior que seja a pescaria, ao menos uma parte do capital constante e variável será reproduzido153. Em outras palavras, o barco e a tripulação estarão aptos (armados) para outra viagem, uma vez que antes da distribuição do faturamento da pescaria, retira-se a despesa para a próxima viagem.

152 ZOETHEY apud DIEGUES, A ntonio Carlos S. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São Paulo; Ática, 1993. p.260.

O sistema de remuneração por parte, ao contrário do salário fixo, é “aquele que melhor responde às necessidades do capital num estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas, levando a uma intensificação e a um prolongamento da jornada de trabalho” 154. Entretanto, a desproporcionalidade das partes como forma de pagamento da pesca embarcada itinerante, em Manaus, é elevado e injusto, mostrando o quanto os pescadores envolvidos nesse setor são explorados pelos proprietários dos barcos pesqueiro e pelos despachantes de pescado.