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Falar em referencial teórico evoca uma primeira preocupação que é sistematizar os argumentos, pondo-os em relação com as teorias que os fundamentam e dão sustentação científica. O uso de métodos, procedimentos, técnicas e instrumentos de coletas e análises das informações colhidas pelo pesquisador terão que ser capazes de revelar a maior ou menor pertinência de realidade contida nos dados e fatos, daí a importância do esclarecimento acerca do referencial teórico e da metodologia utilizados pelo pesquisador. Contudo, não podemos nos limitar a assimilar alguma fórmula, cujo protocolo nos leve a algum resultado inscrito nos limites de possibilidades de um método. Isto porque devemos ter o cuidado de não nos deixar seduzir por concepções e teorias que pré-formatam a pesquisa, o caráter investigativo e, consequentemente, seus resultados (FEITOSA, 2012, p. 5).

O referencial teórico precisa ser problematizado e colocado à prova a cada pesquisa. Para Laville & Dionneo (1999, p. 93), se o “valor de uma teoria é, primeiramente, explicativo (...), para o pesquisador seu valor é, sobretudo, analítico. Haja vista, que lhe servira para o estudo e a análise de outros fatos da mesma ordem”.

Tivemos o cuidado de observar que, apesar de termos uma formação que nos privilegia e nos instrui numa perspectiva histórica sequencial, cujo encadeamento, mesmo que permitindo interpretações diferentes, mostra-se lógico e, por isso, mesmo assimilável, não poderia nos colocar frente a uma única possibilidade de interpretação dos fatos, daí a busca por uma abordagem interdisciplinar, por considerarmos que a perspectiva interdisciplinar não significa jogar de forma assistemática os conceitos diversos, levando todas as hipóteses e conclusões a serem aceitas em nome de um suposto respeito à diversidade, onde tudo é permitido (FEITOSA, 2012).

Segundo José D’Assunção Barros (2012, p. 116),

Saberes e campos de expressão os mais diversos têm fornecido à história materiais para a sua renovação deste início do século XX, ou mesmo antes. O mesmo fenômeno tem ocorrido em outros campos de saber, como a educação, que também conheceu importantes diálogos interdisciplinares, inclusive com a própria Historia. [...] Os movimentos em favor da interdisciplinaridade constituem, de fato, um dos acontecimentos mais relevantes da ciência no século XX, e têm oferecido a mais efetiva contrapartida à tendência contemporânea para a especialização, ou mesmo para a hiperespecialização, nos diversos campos de saber.

Optamos em sequenciar os fatos, estabelecendo correlações e comparações a fim de melhor compreendermos o estudo apresentado. Dialogamos com autores das áreas de Educação, Economia, Sociologia, História, Antropologia e áreas que se afinam com nossa temática numa perspectiva interdisciplinar.

A forma de se pensar interdisciplinarmente é considerada por Marc Bloch (1886- 1944) como uma possibilidade de aproximação da história total. Ao posicionar-se contra os reducionismos e as compartimentações do conhecimento, Bloch insiste também que, ainda que tivéssemos uma história verdadeira, que fosse considerada única “universal”, os modos de estudá-la e interpretá-la seriam variáveis. Por essa razão, Bloch (2001) definiu a História enquanto “ciência dos homens no tempo”, logo, para começar, não caberia ao historiador se ater ao passado desvinculado do presente, visto que, como sujeito ativo na produção do conhecimento, este está no presente, caminha no tempo que vive, e tem como ação efetiva, um constante olhar sobre o presente. Para ele, devemos entender a História, como:

“Ciência dos homens”, dissemos. É ainda vago demais. É preciso acrescentar: “dos homens, no tempo”. O historiador não apenas pensa “humano”. A atmosfera em que

seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração. [...] o tempo da história, (...), é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade. Ora, esse tempo verdadeiro é, por natureza, um continuum. É também perpétua mudança. (BLOCH, 2001, p. 55).

A história é do presente e o tempo do historiador é o agora. Com esse posicionamento esclarecedor, podemos dizer que para Bloch, o positivismo com sua objetividade total e os documentos possuidores da fonte da verdade única não são as únicas formas de compreender os fatos, já que para se compreender a história seria também impossível compreendê-la fora de sua dimensão temporal, pois há um “eterno continuum, perpétua mudança” (BLOCH, 1991, p. 55).

Marc Bloch vai contrapor-se, assim, à concepção positivista da História, e busca criar um método a ser utilizado pelo historiador na construção de seu problema de pesquisa. Como ciência, a História deve buscar compreender e não se ater apenas a datas e fatos, assim como também entender o homem e seu relacionamento com o tempo, medido por concepções que o levem a superar reducionismos e a pensar para além do social e do econômico.

Neste estudo, nos apoiaremos em Marc Bloch para fundamentar o uso da comparação como estratégia de investigação, sabendo que ele considera válida a História Comparada, e entende ser esta portadora de uma especificidade estritamente historiográfica. A História Comparada, na visão de Bloch, é antes de tudo uma “História Comparada Problema”, uma história que se constrói em torno de problematizações específicas e não de curiosidades ou meras factualidades. Sabidamente, segundo comentaristas de sua obra, Bloch teve grande importância como sistematizador do método comparativo de maneira geral, seja a partir de suas considerações teóricas – expressas em dois textos importantes (1928 e 1930)7 – seja a partir de suas realizações práticas (BARROS, 2007).

A História Comparada apresenta como característica um alto nível de complexidade, tanto no que se refere a um modo peculiar de observar a história como à escolha de um campo de observação específico, existindo um “duplo campo de observação”, ou mesmo, um “múltiplo campo de observação”. Situa-se, portanto, entre as abordagens que apresentam uma forma específica de observar os fatos ou de analisar as fontes8.

Transposta esta perspectiva para a História educacional, encontramos a preocupação de natureza subjetiva que nos remete à problemática dos sujeitos, muito mais complexa do que o pressuposto de constituição de meros “objetos” de investigação, segundo a

7

(1) BLOCH, 1928, p.15-50. (2) BLOCH, 1930 8Id.,

tradição positivista, onde se coloca ainda a dinâmica da interação social entre diferentes sujeitos.

Para António Nóvoa (1998, p. 83),

[...] é preciso que a Educação Comparada seja um meio de compreender o outro [...] a comparação em educação é uma história de sentidos e não um arranjo sistematizado de fatos: os sentidos que as diferentes comunidades dão às suas ações e que lhes permitem construir e reconstruir o mundo.

.

Nesse sentido, buscamos compreender e conhecer o processo histórico de uma instituição educativa, entendendo-a como um complexo simbólico e analítico que envolve vários aspectos. Estes, por sua vez, envolvem a análise da genealogia da sua materialidade, a organização, o funcionamento, os quadros imagéticos e projetivos, as representações, a tradição, as memórias, as práticas, o envolvimento, a apropriação (MAGALHÃES, 2004, p. 58). No caso estudado por nós, trata-se de uma instituição modelada por uma cultura escolar agrícola, materializada na forma de organização interna e nas atividades formativas prescritas nos documentos e relatórios consultados, pondo-os em relação, em comparação. Consideraremos, portanto, que “comparar” é uma maneira bastante específica de propor e pensar as questões. É, portanto, imprescindível mergulharmos na compreensão deste gesto fundador – a “comparação” – que dá o próprio nome e uma substância específica a esta modalidade historiográfica9.

A comparação como recurso de conhecimento do real tem sido uma marca de fundação das Ciências Sociais e Humanas. A organização da sociologia em sua feição francesa, no século XIX, permite entendermos o lugar da comparação nos estudos dessa área, a partir da definição do campo, de fatores sociais e de um método próprio.

A finalidade da Sociologia é revelar tais factores e influências. Para isso, emprega o

método comparativo que é “o equivalente para a ciência social daquilo que é a experimentação nas Ciências da Natureza.” Na obra Les Règles de la méthode

sociologique (1865), Durkheim define, pois, o método da nova disciplina, que ele aplica precisamente ao problema do suicídio (Le Suicide, Étude de Sociologie, 1897. (DORTIER, 2009, p.116)

A partir desse enunciado entendemos que é, pois, a comparação que torna possível a compreensão do social. Trata-se de uma operação que tem começo similar ao próprio senso comum, a partir de bases mais conhecidas e seguras daquilo que nos é apresentado como real, por meio da identificando semelhanças ou diferenças. O ato de comparar sendo visto dessa

9Id,

maneira é um gesto espontâneo do modo de conhecer humano que, em permanente relação com o mundo que lhe cerca, olha e tenta decifrar o que lhe circunda.

A comparação, diante do desafio ou da necessidade, impõe-se ainda como método. Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda esta prática comparativa dispõe-se a fazer analogias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades e a perceber variações de um mesmo modelo. (BARROS, 2007).

Utilizaremos neste trabalho algumas categorias que deram escopo estruturante ao estudo realizado como: modernização agrícola, ensino superior agrícola, educação rural, extensão rural, ensino agrícola, capitalismo dependente e/ou associado, Estado ampliado, Estado restrito, desenvolvimento e outros, conforme surjam no decorrer do texto, cabendo atribuir a estas categorias os devidos créditos aos autores que a definiram. Utilizamos também aportes teóricos desenvolvidos por autores ligados às áreas da Sociologia, História, Pedagogia e outras ciências afins, de forma que tenhamos, no desenvolver do trabalho, um adensamento teórico que torne possível compreender e analisar as informações e evidências obtidas durante o trabalho de pesquisa.

Para grande parte da historiografia especializada na temática “ensino agrícola”, percebemos que se toma o conceito de “Estado” enquanto “sujeito” que está acima dos interesses de grupos sociais organizados em torno de aparelhos de hegemonia, subestimando, dessa forma, a dimensão de conflitualidade inerente à própria dinâmica de funcionamento do Estado, no tocante à configuração de suas várias políticas. Visto, no entanto, como lugar de tensões e disputas entre grupos sociais organizados na sociedade civil e aparelhados ou em vias de aparelhamento na Sociedade Política, o Estado ganha outra enverdadura. Gramsci (2002, p.47) considera sociedade civil e sociedade política como categorias operadas para fins principalmente metodológicos.

Daí considerarmos que uma análise efetiva do Estado, de alguma de suas manifestações e de suas políticas públicas deva tomar como ponto de partida a Sociedade Civil e os interesses dos grupos sociais organizados junto aos mais diversos aparelhos. O Estado, para Gramsci, não é apenas um monopólio político que ele chama de “Estado restrito”, mas é também uma teia de relações, onde se travam disputas e interesses os mais variados. O Estado é visto aqui não como sujeito ou objeto, nem como não uma junção de relações sociais, mas uma instância de poder que é atravessada pelo conjunto das relações de classe existentes na própria formação histórica, incorporando em si mesmo os conflitos vigentes na sociedade geral, em permanente interação e interconexão.

Sonia Mendonça (2013) nos esclarece como essas relações entre “sociedade civil” e “sociedade política” estão na base da construção das políticas voltadas para o ensino agrícola e rural, ao comentar as relações entre o Estado, o saber e o poder no Brasil, na análise que faz sobre os estudos acerca do ensino agronômico no Brasil.

[...] Os estudos sobre as origens e consolidação do ensino agronômico no Brasil costumam incidir em dois "vícios". De um lado, situam-se os que tratam do objeto sob um prisma laudatório, sobredeterminado pela própria extração sócio-profissional de seus autores e sua posição de classe. Trata-se de obras pautadas por um “discurso

de celebração”, com finalidades consagradoras e apologéticas elaboradas por ex-

alunos ou dirigentes de instituições escolares às quais se vinculam afetiva ou academicamente10. De outro, estão os trabalhos onde a temática é abordada a partir de viés assistencialista, enaltecedor desse novo técnico visto como capaz de

“resgatar” do atraso os trabalhadores rurais brasileiros. Em ambos os registros, duas

questões se colocam. (MENDONÇA, 2013)

A autora revela alguns dos vieses que caracterizam os estudos realizados sobre o meio rural e suas instituições, destacando uma tendência preconceituosa e de desvalorização, seja das atividades, seja dos diversos sujeitos que o compõem, bem como das instituições escolares voltadas para a economia agronômica. Isto para dizer que tais disposições também vão estar presentes nas justificativas técnicas de intervenção política nesse setor.

Em primeiro lugar, o fato de ser sempre em nome dos "desfavorecidos" que se erige a

retórica justificadora das propostas de intervenção junto ao campo e ao “homem rural”,

secundarizando-se, dessa forma, o seu próprio reverso, ou seja, o quanto esses atores sociais – pequenos produtores, arrendatários, posseiros, etc. - respaldam, sem disso ao menos terem noção, o duplo e simultâneo processo de ampliação da estrutura material do Estado no Brasil e de estatização crescente dos interesses de segmentos da classe dominante agroindustrial e seus porta-vozes. Já o segundo problema prende-se ao fato de a quase totalidade dos estudos dedicados às escolas superiores de agronomia tomaram-nas em estado “isolado”, independentemente das relações objetivas que as unem entre si, o que se configura, a meu juízo, na única dimensão capaz de propiciar o reconhecimento das propriedades pertinentes aos que são por elas diplomados, ou seja, seus distintos habitus11. (Idem).

É plausível o argumento em favor dessa diferenciação e entre escolas regulares e escolas agrícolas, o que contribui para o isolamento dos estudos realizados. Logo, quando vamos refletir sobre a construção social dos agrônomos e dos técnicos agrícolas no Brasil que concluíram seus estudos nas instituições de ensino agrícola até a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação brasileira em 1961, se faz necessário mostrar o jogo das disputas políticas inerentes à construção do Estado brasileiro, em razão de termos, nos agentes

10

Cf. Capdeville, Guy (1991). O Ensino Superior Agrícola no Brasil, Viçosa: Imprensa Universitária. 11

4 Cf. Gramsci, Antonio (1986). Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, 3. ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

e nas agências que refletem a participação da sociedade civil, a expressa maioria de representantes oriundos da classe dominante agroindustrial do país.

Estamos diante do fenômeno de formação de uma nova “elite rural”12

, que apresenta aspectos reveladores da diferenciação havida na sua composição, na colônia, império e república. Nesta última, em função da organização político-administrativa do Brasil que se moderniza, será aberto um espaço para a emergência de uma elite, que se fortalece por meio de políticas dirigidas ao setor agrário-agrícola, reguladas de forma crescente por ações racionais e legais que visam ademais a formação de um corpo técnico capaz de colocar a economia agrícola nacional em patamar similar ao que esta ocupa, por exemplo, nos Estados Unidos da América. É no interior dessa problemática que faz sentido para este estudo ressaltar a emergência de uma “elite rural”, cuja base de sustentação social alia interesses das classes proprietárias e de um corpo técnico especializado, portador de um conhecimento mais científico sobre as atividades rurais.

O mesmo vai acontecer quando se pensa o nível de ensino profissional voltado para a assistência e a formação dos trabalhadores para atuarem na agricultura. A lei Orgânica do Ensino Agrícola de 1946 reflete essa dualidade ao mostrar que tivemos uma diferenciação quanto aos níveis de estudos oferecidos. Existia uma orientação que direcionava segmentos para os que possuíam os meios de produção (proprietários de terra) e os que detinham apenas a força de mão-de-obra para o trabalho no campo (não proprietários). Mais adiante analisaremos os contextos, político, econômico e social em que surgiu a Lei Orgânica do Ensino Agrícola no Brasil em 1946 e suas reverberações na educação.

Para tratarmos a dimensão deste estudo ligada ao jogo da dependência do Brasil em relação ao capital internacional, no contexto econômico e tecnológico, que o levou ao estado de subordinação internacional – desde a colônia, chegando assim ao século XXI, apesar de termos tido, aqui e ali, alguns avanços rumo à autonomia desejada como nação soberana – vamos nos apoiar em Florestan Fernandes (1973), que cunhou um conceito de capitalismo dependente, o qual continua a ser, de certa forma, atual.

A autora Mirian Limoeiro Cardoso (2005) considera que, na obra de Florestan Fernandes, se encontra uma problemática nova para pensar a sociedade em que vivemos na

12

Por se tratar de uma abordagem polêmica, que divide a sociologia, quanto à análise da estrutura de classes e estamentos hierarquizados de sociedade, o conceito de elite rural aqui utilizado parte da noção desenvolvida pela sociologia política, a exemplo da abordagem de Bottomore, Tom. As Elites e a Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar,1965, iremos circunscrever a questão ao mero delineamento instrumental do conceito, querendo significar um lugar social ocupado por segmentos escolarizados de nível superior e portadores de um saber técnico especializado e bem remunerado, que os distingue dos demais componentes da estrutura social, porque implica em poder de planejar ações que operam mudanças setoriais e/ou mais abrangentes na sociedade em essas ações que estão inseridas.

especificidade que a caracteriza como parte do mundo capitalista, ou seja, nos termos da sua teorização e do seu conceito de capitalismo dependente.

Pensar a agricultura brasileira e as políticas destinadas ao campo social, seja da educação seja de investimentos financeiros, requer um olhar estrangeiro. É preciso colocar o modelo concreto do capitalismo que irrompeu e vingou na América Latina, o qual lança suas raízes na crise do antigo sistema colonial. Segundo Fernandes (1973), por mais de três séculos (XVI, XVII e XVIII) esse modelo se estendeu ao Brasil e tinha como característica uma forma complexa de relações entre as diferentes dependências que se estabeleceram tanto do ponto de vista social quanto econômico.

Outros autores participam e contribuem para a compreensão do objeto que aqui estudamos, são eles: Celso Furtado, a partir das obras Mito do desenvolvimento econômico

(1974) e Formação Econômica do Bra sil (1995), com suas análises e reflexões sobre o processo histórico da formação econômica brasileira; Caio Prado Junior que também nos auxilia a pensar alguns dilemas econômicos da sociedade e do estado brasileiro com a obra

História Econômica do Bra sil (1997), onde ele descreve as características geográficas do Brasil e o caráter inicial da formação econômica brasileira.