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2. UM PERCURSO PESSOAL 1 Os primeiros anos

2.2. O profissional do riso: O teatro ligeiro

2.2.1. Aprender com os mais velhos: 1936-

Regressado da sua primeira época no Teatro do Povo, Francisco Ribeiro ingressou na companhia encabeçada por Palmira Bastos e empresariada por José Loureiro. Esta companhia explorava essencialmente a popularidade daquela vedeta já vinda do séc. XIX, mas mantendo posição cimeira no universo teatral português. Francisco Ribeiro permaneceu neste agrupamento até meados de 1938.

A conjugação de factores como a Censura – particularmente apertada neste período, tal como já ficou registado –, a necessidade de economia de meios e de fazer brilhar a estrela da Companhia (à qual a crítica invariavelmente se vergava), bem como a exigência de assegurar receitas de bilheteira apresentando peças do agrado do público levavam a que a selecção do repertório a representar por este agrupamento incidisse sobretudo sobre teatro de expressão castelhana de autores coevos, como a parceria Adolfo Torrado e Leandro Navarro. A grande maioria destes textos já havia sido testada com êxito nos palcos do país vizinho antes da Guerra Civil ou em alguma grande cidade da América Latina. Estas peças, editadas na sua maioria em publicações periódicas como La farsa ou El teatro moderno, tinham residência quase obrigatória na casa de gente interessada em teatro. A companhia colocou ainda em cena sucessos passados de Palmira Bastos como O Rosário (apresentada em 1926 no Teatro do Ginásio), ou a opereta A Grã-Duquesa de Gerolstein, espectáculo que a actriz tinha interpretado com êxito em 1900 e que era despudoradamente recuperado quase quarenta anos depois, para que a actriz interpretasse exactamente a mesma personagem (FERREIRA 1985: 172).

Levando ao tablado comédias ligeiras, dramas sentimentais e operetas, este agrupamento actuava sobretudo sobre o «mercado» do «teatro para famílias» ou «teatro para senhoras e meninas»36, contrapondo-se, de alguma forma, aos espectáculos populares e brejeiros do teatro de revista, tão populares na época. Aliás, também a sala elegante e confortável do Teatro da Trindade – a funcionar, nesta época, alternadamente como teatro e como cinema – marcava a diferença em relação aos teatros do Parque Mayer. Tal como já se aludiu, o teatro era um espaço de socialização, um local onde se ia para ver os outros e para se ser visto; e o empresário José Loureiro,

nesta fase associado a António Macedo, explorava amplamente este aspecto através do local e do agrupamento em questão.

Nas suas memórias, Costa Ferreira definia da seguinte forma o repertório de Palmira Bastos:

Este repertório aqui apontado nas suas linhas gerais dirige-se a uma plateia pequeno-burguesa, a maioria do público em todos os países da Europa ocidental, e aceita esse mesmo público tal como ele é, com as suas convenções e as suas cobardias. (FERREIRA 1985: 172)

Ainda na mesma obra, é eloquente o testemunho deixado pelo memorialista acerca da actriz por aquilo que este traduz da necessidade – então sentida – de sujeição da artista às características e vontade do público:

[...] nunca esqueço a profunda pena que vi nos olhos de Palmira Bastos, quando lamentou que eu desperdiçasse as minhas qualidades naquele caminho tão difícil, que parecia querer encetar. «A primeira coisa para triunfar no teatro é pormo-nos de acordo com o público». Nunca mais esqueci a frase que, corrigida, exprime uma grande verdade de sociologia teatral.

O agrado, que Palmira procurava, era imediato e procurava-o passivamente, sem pretender modificar em nada o público a que se dirigia. Assim, sendo sem dúvida Palmira a actriz de teatro sério com mais prestígio popular, temos dificuldade em associar o seu nome a grandes peças do repertório mundial. (FERREIRA 1985: 171)

Estes espectáculos de cenografia pouco ambiciosa (que procurava retratar essencialmente interiores de habitações de diversas camadas sociais) eram geralmente encenados pela estrela da companhia. Os cenários e figurinos, quando sereportavam a ambientes elegantes e da alta sociedade, constituíam também um chamariz adicional para a «plateia pequeno-burguesa» referida por Costa Ferreira.

Depois da 3ª temporada do Teatro do Povo (no último trimestre de 1938), Francisco Ribeiro voltou para o Teatro da Trindade, até 1939. Os agrupamentos formados então pelo empresário José Loureiro para esta sala de espectáculos já não incluíram Palmira Bastos, mas contaram com Adelina Abranches, Brunilde Júdice e Erico Braga como primeiras figuras de cartaz e, para terminar o período agora estudado, Maria Matos. Sublinha-se nesta fase o convívio com o professor Carlos Santos, actor e professor do Conservatório em fim de carreira, que encenou quatro dos espectáculos apresentados. O repertório já não era tão devedor da produção contemporânea espanhola, embora se tivesse recorrido ainda a La Marimandona de

Ramos Martín (traduzida com o título de Cada um em sua casa), oferecendo com esta peça um papel a Adelina Abranches dentro seu emploi37 mais frequente, a mulher do povo. Estrearam-se mesmo duas peças de autores portugueses, Duas mães, de Ramada Curto, e Outono, de Manuel Fragoso. Continuou, no entanto a ser explorado o tipo de repertório «para famílias» e o estatuto do Teatro da Trindade como sala elegante e bem frequentada.

Torna-se notória a lassidão da crítica em relação aos espectáculos que pareciam replicar em muitos aspectos o espectáculo anterior da mesma companhia – testemunhos de um tempo cinzento para o teatro português. Assim o ilustram os seguintes comentários em tom morno do crítico d’O Século, a propósito respectivamente de A Papirusa e de O amor que chega tarde, bem como o comentário acutilante de Eduardo Scarlatti a propósito de Sete mulheres:

Na escolha, cada vez mais condicionada e difícil de repertório, que, satisfazendo as exigências da lei, consiga interessar o espectador, a comédia de Torrado e Navarro, [...] obtém um belo lugar pelo conjunto de predicados que reúne. [...] Ouve-se com agrado e interesse, sem ânsias nem sobressaltos, essa história que decorre num ambiente elegante, entre gente moça e bonita, que nos deixa bem-dispostos.

Cristóvão Aires «Representações: Teatro da Trindade» in O Século (05/11/36)

O teatro espanhol está sendo, mercê de várias e imperativas circunstâncias, a fonte quasi exclusiva a que podem recorrer, actualmente, as empresas, para organizar repertório traduzido ou adaptado. Amor que chega tarde é ainda uma peça desse filão, escolhida, sobretudo, porque tem um bom papel para Palmira Bastos.

Cristóvão Aires «Representações: Trindade» in O Século (16/12/36)

Como num «melodrama em surdina», lá estão a ingénua clássica, o cínico e todos os seus parentes – de saias ou de calças. Verdadeiramente, no Trindade e desde a primeira hora foram importadas várias peças distintas e um só drama verdadeiro, como espectáculo. Em toda a série de Papirusas os bem-afortunados alquimistas pegam num grupo familiar mais ou menos numeroso e jogam com os mesmos trunfos da vida burguesa. Mas os sentimentos agora na criada são em breve os da patroa; a seguir, os do mano são da mana, do bichinho e do papagaio…

(SCARLATTI 1946 : 198)

37 A expressão emploi significa o tipo de personagem que o actor pode representar com facilidade, pois

Nestes tempos, Francisco Ribeiro era ainda uma figura algo apagada e que se apresentava sempre desempenhando papéis cómicos e, em geral, sem posição marcante no evoluir do enredo. No entanto, à medida que nos aproximamos do final do período agora em apreço, observa-se que lhe vão sendo atribuídas personagens com cada vez maior importância no desenvolvimento da acção dramática e que o actor vai ganhando direito a posição de maior destaque na publicidade dos espectáculos (como por exemplo ao desempenhar Pantaleão em A Fidalga de Arronches em Março de 1939).