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D. Paz – Ai ! nem me fales em conferência de Yalta que daí para cá é que os meus sofrimentos se agravaram.

3. O GRANDE ARTESÃO : ENCENAR

3.2 Para a caracterização de um encenador 1 O grande marcador

3.2.3. O domínio sobre o trabalho de representação

A afirmação da figura do encenador passou também pelo recuo de um tipo de espectáculo no qual o actor vedeta assumia uma atitude centralizadora em relação a toda a produção. E se é verdade que Os Comediantes cederam frequentemente espaço ao sistema de estrelas, escolhendo peças que permitiam destacar este ou aquele actor224

223 Rascunho de carta dirigida a Alberto Barbosa datado de 17 de Setembro de 1939.

(PT/MNT/FR/196843)

224 Na correspondência de Francisco Ribeiro à guarda do Museu Nacional do Teatro encontra-se um

curioso bilhete atribuído a Peter Brook, com o seguinte texto que indicia a procura de um repertório que não só garantisse êxitos comerciais,como também possibilitasse desempenhos relevantes a alguns dos actores mais famosos dos Comediantes de Lisboa. Transcreve-se o seguinte :

Cher ami,

Voici quelques piéces qui on eu un grand succès commercial à Londres, et qui auraient peut-être quelque intérêt chez vous.

Il me semble, que dans Rebecca et Lottie Dundass vous trouverez dês bons roles pour Lucília Simões, et que Rope et

e/ou condescendendo mesmo com exigências de certos elementos do grupo dando, assim, continuidade a práticas enraizadas, é, em simultâneo, notório o esforço no sentido de evoluir para um teatro de conjunto, investindo na coerência e harmonia dos vários elementos em palco225. Este cometimento reverberava a influência das ideias dos homens de teatro franceses (Antoine, depois Copeau e Dullin) que, desde o final do século XIX, proclamavam o fim da sujeição do espectáculos aos monstros sagrados e ao seu cabotinismo. O desejo de um teatro sem estrelas n’Os Comediantes de Lisboa, consentâneo aliás com as ideias defendidas por António Lopes Ribeiro anos atrás e já citadas, era assumido publicamente por Francisco Ribeiro em curta entrevista dada antes da estreia do primeiro espectáculo daquela companhia:

- Conte-nos um pouco da história dos Comediantes.

- Há muitos anos que meu irmão António e eu sonhávamos com Os Comediantes de Lisboa – uma companhia sem vedetas…

- Sem vedetas? Já é ser exigente!

- É que para formar uma companhia sem vedetas, isto é de autêntico «conjunto»…são precisas muitas vedetas, quantas mais melhor! Por isso se contrataram os grandes artistas de teatro que tenho agora a honra de dirigir, e a quem estou gratíssimo pela forma como compreenderam a nossa ideia, e pelo entusiasmo com que a seguiram […]

«Os Comediantes de Lisboa dirigidos por Ribeirinho apresentam-se hoje no Trindade com a peça

Não o levarás contigo» in O Século (24/06/44)

É verdade que ao longo dos sete anos d’Os Comediantes, avulta uma certa admiração da crítica pela unidade e harmonia de conjunto do elenco e pela capacidade de tirar de cada actor o seu melhor, ao que não seria também alheio o facto de, como já ficou atrás referido, Os Comediantes de Lisboa serem um agrupamento constituído por uma parte dos melhores actores de então e por muitos deles já terem sido dirigidos por António Lopes Ribeiro no cinema:

Dá gosto ver assim dia a dia acentuar-se uma tão nobre compreensão da arte de representar. Uma vez mais se prova de forma iniludível que a matéria prima é boa, mas que carece de uma eficiente direcção artística. Ribeirinho realizou no Trindade esse milagre.

225O próprio espírito de equipa, tão elogiado, parece não ter surgido logo desde o início, como o indica

o crítico do Diário de Lisboa, quando analisa o primeiro espectáculo d’Os Comediantes de Lisboa:

Todos os tipos que enriquecem a comédia de Hart e Kaufmann foram desenhados a carácter e todos os intérpretes procuraram dar, com probidade, o melhor do seu esforço. A companhia sofre, no entanto, de falta de espírito de ‘équipe’, que não se pode, evidentemente, adquirir de um dia para o outro e que, muitas vezes, leva longos anos a formar.

Jorge de Faria «Trindade: Pedro, feliz» in Diário da Manhã (22/03/46)

[E] exigem dos intérpretes – já que põem em cena criaturas humanas, e não manequins sem vida – um total e constante esforço de identificação com a personagem interpretada.

Semelhante esforço foi inteiramente logrado pelos Comediantes de Lisboa – que ergueram ao serviço da obra de Cortez, um dos seus desempenhos mais homogéneos e perfeitos, senão o mais homogéneo e perfeito (...) um conjunto a cuja harmonia o dedo mágico de Francisco Ribeiro não foi estranho.

Luiz Francisco Rebello «Teatro: Batôn de Alfredo Cortez» in Mundo Literário (23/11/46)

N’Os Comediantes de Lisboa foi merecedor de aplausos da crítica o facto de grandes actores desempenharem pequenos papéis e de tal ser feito com grande profissionalismo, traduzindo-se num excelente resultado final:

Francisco Ribeiro, um grande actor, cuja cultura, consciência profissional e dignidade de processos lhe dão inteiro jus a um merecido reconhecimento é a alma deste magnífico conjunto artístico onde se assinala um espírito de equipe que infelizmente, não estamos habituados a ver. É de notar e acentuar o facto de primeiras figuras como Lucília Simões, Assis Pacheco, António Silva e o próprio Francisco Ribeiro, desempenharem nesta peça papeis secundários dando assim à representação um brilho que, de outro modo, nunca poderia ter.

R.V. «Miss Ba no Trindade» in Diário Popular (17/09/44)

Dignidade e seriedade são palavras que podem definir bem o conjunto interpretativo do drama de Tolstoi. Sabem Os Comediantes de Lisboa que o teatro é uma arte colectiva, em que o esforço individual visa sempre integrar-se num plano superior [...]. Grandes artistas se encarregaram de pequenos papeis e fizeram-no com uma honestidade que merece todos os elogios, sobretudo quando a comparamos às explosões de cabotinismo que infestam os nossos palcos.

Luiz Francisco Rebello «O cadáver vivo, de Tolstoi» in Mundo Literário (05/04/47)226

Este aspecto, que se integrava numa visão de conjunto do espectáculo, afigurava- se ser importante novidade na cena portuguesa na qual ainda pareciam imperar as grandes estrelas, como o atesta, por exemplo, o artigo de Pedro Serôdio (aliás, Avelino Cunhal) na Vértice,no qual, em 48, ainda lamentava:

Vai-se ver um actor, vai-se ver uma actriz, não se vai ver um espectáculo [...] Resultado? Representações desconchavadas. Desconchavadas nos tipos humanos e desconchavadas nas

226 Outros exemplos do elogio ao desempenho de pequenos papéis por grandes actores em «Noites de

estreia: São João: A Rosa enjeitada» in Jornal de Notícias (15/05/45) e Redondo Júnior «Teatro Avenida: Noé voltou ao mundo» in Rádio Mundial (12/05/48).

indumentárias (...) E então nos conjuntos as mais inconcebíveis aproximações de cores [...] O intérprete veste-se sem se preocupar com os tons dos salões onde vai figurar, ou com os longes dos fundos onde vai aparecer, ou com as gradações de luz que o há-de iluminar. [...] Para renascer o teatro tem de deixar de ser fetiche de estrelas.

«Teatro sem estrelas» in Vértice (03/48)

Devem no entanto mencionar-se aqui as considerações de Jorge de Sena sobre a falta de estilo próprio na companhia, que embora sejam as únicas deste tipo encontradas no conjunto de críticas consultado, ganham expressão por serem escritas por uma personalidade de grande vulto nas letras e no pensamento portugueses:

O arrebanhar de actores na disponibilidade para erguer uma peça não permite que o trabalho do ‘produtor’ crie um estilo, um ritmo de representação, uma unidade espectacular. A preparação de uma obra exige, de organizadores e intérpretes, uma consciencialização profunda do sentido da peça, que não é suprida pelos cenários adequados e os papeis sabidos. Embora mau, há no teatro Nacional, um estilo que, mesmo mau, falta no teatro da Trindade.

Jorge de Sena «O cadáver vivo, de Tolstoi» in Seara Nova (19/04/47)

Neste ponto não é demais insistir-se na ideia de que os resultados de Francisco Ribeiro seriam sobretudo fruto de intenso labor solitário e prévio aos ensaios. Nesta fase da sua vida, não teria ainda forte presença o trabalho sobre a direcção de actores. Na verdade, a maioria dos artistas d’Os Comediantes era muito mais experiente do que ele e, seguramente, não demonstraria grande disponibilidade para dar atenção às indicações provenientes de um jovem vindo do Parque Mayer e do Teatro do Povo, colocado numa posição de destaque somente por ser irmão do director da companhia227.

Sobre este aspecto é interessante notar que para o crítico do Diário de Lisboa que comenta a apresentação de A Dama das Camélias, a falta de unidade, observada no desempenho dos actores, não se devia ao encenador, o que poderá também concorrer para atestar algum desconhecimento da função do encenador que deverá também incluir a direcção de actores de forma a conferir coerência ao espectáculo:

De uma maneira geral, olhando-se o conjunto da representação, pode dizer-se que nem tudo esteve harmonioso, isto é, que houve idades e processos em choque [...] divergências na técnica de representação. Houve quem fosse romântico, houve quem fosse realista, houve quem fosse

impressionista... A culpa não coube, por certo, ao realizador do espectáculo, isto é, a Francisco Ribeiro que, uma vez mais, deu boa prova da sua inteligência [...]

M.A. «A Dama das Camélias, no Teatro Apolo» in Diário de Lisboa (23/12/49)

Não escapou também o jovem encenador a frequentes reparos relativamente à distribuição, o que se prenderia provavelmente, com exigências tanto de alguns actores, como do empresário que escapariam de alguma forma a Francisco Ribeiro. Segundo a crítica, nem sempre o aspecto físico dos actores e o seu emploi (incluindo o do próprio Francisco Ribeiro) pareciam adequados às personagens que interpretavam, especialmente no que toca ao elenco feminino e a Maria Lalande em particular que Francisco Ribeiro parecia querer, pelo menos nas primeiras épocas d’Os Comediantes, sempre nos primeiros papéis228, em qualquer que fosse a peça:

Maria Lalande, ao que se afigura, errou completamente o papel. Se Fanny é, pela sensibilidade e pelos sentimentos, superior à sua condição de vendedeira de ostras, deve-lhe restar, no entanto, qualquer característica da classe a que pertence [...] Tendendo a fixar-se num tom declamatório, todas as figuras que estejam fora da órbita dos seus dotes naturais, resssentir-se-ão fatalmente dessa tendência. [...] Também Lucília Simões me não parece exercer uma observação muito aturada sobre as figuras populares que é chamada a desempenhar.

João Pedro de Andrade «Trindade: Fanny» in Seara Nova (10/04/45)229

A partir d’Os Comediantes, Francisco Ribeiro foi procurando, nos seus projectos mais relevantes a constituição de elencos essencialmente estáveis, contribuindo dessa forma para um estilo de representação mais homogéneo que se deveria impor mesmo com a inclusão de novos elementos, como será visível na segunda fase do Teatro do Povo e também no TNP. E se é verdade que a coesão dos elencos foi frequentemente elogiada n’Os Comediantes de Lisboa, pode dizer-se que o trabalho de direcção de actores por Francisco Ribeiro só começou verdadeiramente a ser feito a partir da sua aproximação a actores mais novos.

228 Maria Lalande, naquela altura companheira de Francisco Ribeiro, representou vários primeiros papéis

n’Os Comediantes, como Rosa em A Rosa Enjeitada de D. João da Câmara, Elizabeth Barrett em Miss

Ba, Fanny em Fanny de Marcel Pagnol, Eliza em Pigmalião de Bernard Shaw, Nacinha em Batôn de Alfredo Cortez, Electra em Electra, a mensageira dos deuses de Giraudoux, Margarida Gautier em A

dama das camélias de Alexandre Dumas, filho. Foi em Miss Ba e Pigmalião que colheu os maiores e mais unânimes elogios.

229 Para além do exemplo registado indicam-se outros dois : «Primeiras representações: Sá da Bandeira»

in Primeiro de Janeiro (10/01/46) e A. B. «Comentários a Batôn, a notável peça de mestre Alfredo Cortez», in O Século Ilustrado (16/11/46).

Com efeito, na sua segunda incursão no Teatro do Povo e também no TNP foi sendo realçada a homogeneidade do elenco, o trabalho de equipa e a disciplina, mesmo por críticos tão austeros como Jorge de Sena (SENA 1988: 171). Os espectáculos que mais unanimemente foram aclamados pela crítica nesse aspecto particular foram Noite de reis230 e 12 homens fechados231 no TNP.

Mas a luta por equipas homogéneas e disciplinadas não significava que Francisco Ribeiro não destacasse actores que reconhecia mais talentosos, que ofereciam excelência aos espectáculos e (quanto àqueles que já tinham conquistado fama) contribuíam para a boa saúde das bilheteiras. Tal é visível, por exemplo, no caso do TNP, em que Francisco Ribeiro é o único empresário, com realce dado a Eunice Muñoz e ao o próprio Francisco Ribeiro, colocados em destaque nos cartazes de Noite de reis.

Nenhuma ambiguidade deve aqui ser apontada: no trabalho do encenador moderno deverá existir sempre lugar para o actor de talento desde que este aceite fazer parte de uma visão de conjunto definida pelo primeiro. Por outro lado, o encenador deverá estar disponível para conceder o espaço de liberdade necessário à superioridade do trabalho de um artista com uma chama que o distingue dos outros. Esta relação actor/encenador só será viável se ambos estiverem disponíveis para encontrar um equilíbrio.

Nas entrevistas em anexo a Ruy de Carvalho e a Cármen Dolores confirma-se que Francisco Ribeiro concedia a alguns actores esse espaço de liberdade, não obstante o seu perfil dominador e autoritário enquanto encenador.

A recusa de construir o espectáculo em equipa foi também uma característica de Francisco Ribeiro assinalada por Luiz Francisco Rebello232 e por João Lourenço (LOURENÇO 2003: 257). Neste aspecto, em particular, Francisco Ribeiro distanciava- se de duas das suas referências - Charles Dullin (SUREL-TUPIN 1985: 248) e de Jean Vilar (SIMON 2001: 25).

230

Dois exemplos: Redondo Júnior (REDONDO JÚNIOR [1957?] : 9) eJorge de Faria «Shakespeare no Trindade» in Diário Popular (28/11/57) .

231 Referências valorativas a este aspecto particular da encenação de 12 homens fechados no Trindade

encontram-se por exemplo em: Heitor Roque «Teatro em Lisboa : Garcia Lorca e Reginald Rose num grande espectáculo apresentado pelo Teatro Nacional Popular» in Democracia do Sul (15/12/59); Armando Ferreira «12 homens fechados e Amor de D. Perlimplim no Trindade» in Diário Popular 13/12/59; Pedro Bom «Amor de D. Perlimplim com Belisa em seu jardim» in Diário Ilustrado (13/12/59).

Ainda segundo Fernando Gusmão, o enquadramento pouco favorável, encontrado por Ribeirinho no desenvolvimento da sua actividade profissional, havia-o tornado um homem ensimesmado que se negava a qualquer discussão ou explicação de aspectos de uma encenação, dando pouco espaço ao actor enquanto ser pensante e elemento participativo na construção do espectáculo (GUSMÃO 1993: 117). Todavia esta opinião é em parte contrariada com o testemunho de Ruy de Carvalho