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LEGITIMANDO-SE COMO DOCENTE

“APRENDI A SER PROFESSOR NA EXPERIÊNCIA”

Tenho como objetivos nesse capítulo discorrer sobre os saberes que os bacharéis elegem como legitimadores da ação docente no Ensino Superior e discutir sobre a relação entre as atividades vividas como bacharéis e como docentes, evidenciando como as situações de trabalho se tornam essenciais para a elaboração, reelaboração e mobilização de saberes, que no cotidiano formam as teorias da ação.

Além dos sentimentos de prazer e desprazer, que fazem com que os professores diferenciem os sentidos de ser professor (ainda que considerando este como sinônimo de ensinar), outro aspecto que ressalto é o de pertencer à profissão, mesmo que não seja pelo viés da formação inicial. Dito de outra forma, essa noção de pertencimento refere-se à capacidade de basear nossas ações nas evidências da organização social considerada. Assim, nos servimos dessas como se fossem sistemas operadores de nossa prática e, nesse caso, deixamos de ter a necessidade de comprovar a cada instante que nossa compreensão da ação social se apoia no pressuposto de que esta é comum e partilhada a outrem (COULON, 1995, p.161).

Quando o docente explica que é “professor mesmo sem licenciatura”, esta afirmação se complementa com a noção de que a experiência é um momento de formação e de produção de conhecimento para a docência universitária. Isso pode ser observado na fala de Alexandre: “me fiz professor no dia-a-dia, vivendo as dificuldades e buscando superá-las”. Esta é perspectiva de Sophia ao afirmar que “só se aprende a ser professor ensinando”.

Partindo de falas como essas expressadas pelos professores e durante as leituras de Berger e Luckman (1985) percebo que a legitimação da docência, para eles, ocorre pelo viés da experiência profissional como bacharel e como professor de forma ambivalente.

Todavia, ressalto a importância de explicitar o que estou compreendendo como legitimação da docência, partindo do conceito de Berger e Luckmann (1985, p.127) em que os autores consideram como “uma objetivação de sentido de segunda ordem”. Para eles, o processo de legitimação produz novos sentidos vinculados a distintos processos institucionais. Sua função é tornar acessível e subjetivamente plausível as objetivações de “primeira ordem” que foram institucionalizas.

A legitimação, portanto, pode ser entendida como um processo de “explicação e justificação”, pois implica conhecimento dos papéis que definem tanto as ações “certas” quanto as “erradas” no interior da profissão. Para que ela se torne legítima, é preciso primeiro, que o indivíduo se sinta membro dessa profissão, conhecimento que chega até os professores por meio de uma tradição que “explica” o que é a docência de um modo geral, cabendo ao bacharel por sua vez, adaptar-se a ela de um modo particular.

Essas “explicações”, que podem ser tipicamente compreendidas como uma “história” da coletividade são tanto instrumentos legitimadores quanto elementos éticos da tradição. A legitimação não apenas diz ao indivíduo apenas por que deve realizar uma ação e não outra, diz-lhe também por que as coisas são o que são.

Compreendo que no caso dos bacharéis entrevistados a docência se torna legítima a partir do momento em que a experiência profissional auxilia a desenvolver saberes que o auxiliem agir como professor. Ela possibilita que eles “dominem” o processo de desenvolvimento desta atividade, de modo que subjetivamente seja plausível a forma como exercem a profissão: “já tenho trinta anos nessa atividade, não é possível que não saiba ser professor”, explica Isadora sobre ser docente universitária.

Isto me remete à relação entre a legitimação da docência como o saber ser e agir nessa atividade, com o conceito de membro e filiação de Coulon (1995), pois essa noção de membro não se refere apenas à origem social, mas diz sobre o domínio da linguagem natural, do domínio de formas de ser e agir na profissão. Como explica Coulon (1995) “tornar-se membro é filiar-se a um grupo ou instituição, e que requer o domínio progressivo da linguagem institucional comum”.

Diante disto, ser filiado a uma profissão requer conhecer, ou ser dotado de um conjunto de procedimentos e atividades, o saber agir que permite desenvolver os dispositivos

de adaptação que dê sentido a sua ação (COULON, 1995). Quando os bacharéis acreditam que conhecem os modos de ser e agir na profissão docente, eles se desenvolvem de forma segura, pois se sentem confortáveis no exercício da docência: “faz muitos anos que trabalho aqui e me sinto muito a vontade como professora, aqui é minha segunda casa”, afirma Luiza.

Assim como Luiza, Alexandre explica que “no começo tinha medo de não saber passar o conteúdo”, mas no decorrer de sua trajetória como professor, ele percebeu que “sempre procurei relacionar os conteúdos que estava dando com minhas experiências de trabalho, graças a Deus tive uma rica experiência”. Com base na relação entre o conteúdo da disciplina que ministrava suas aulas e sua experiência, o professor foi tornando-se mais seguro no que se refere a ser professor: “com o tempo vamos melhorando, observo onde errei e procuro melhorar”.

Com base nos argumentos de Alexandre, concordo com Porlan e Martin Del Pozo (1997) quando eles afirmam que os saberes, baseados na experiência, referem-se às ideias que os professores desenvolvem durante o exercício da profissão a respeito de diferentes aspectos que compõem os processos de ensino e de aprendizagem. Essas ideias não apresentam um grau de sistematização muito elevado, pois se manifestam como crenças explícitas, princípios de atuação ou mesmo imagens construídas do que seja uma prática docente eficaz.

Tal consideração me conduz ao embate de ampla discussão sobre a formação de professores universitários: a relação da teoria — das ciências da educação — e da prática — saberes da experiência — sendo discutida sob diferentes formas. Muitas vezes essas formas se apresentam quase que de uma forma messiânica de conceber a docência. Nesse sentido, defendem-se diferentes conceitos como primordiais: a experiência, a formação pedagógica, a formação reflexiva, dentre outras. A afirmação de Birmingham (2004 apud NOVOA, 2009, p.37) ilustra bem o que penso sobre estas discussões: “[…] não é possível escrever textos atrás de textos sobre a práxis e o practicum, sobre a phronesis e a prudentia como referências do saber docente, sobre os professores reflexivos, se não concretizarmos uma maior presença da profissão na formação”.

A formação de professores usualmente tem como principal referência situações que são externas ao seu trabalho (NÓVOA, 2009). Canário (1997), explica a necessidade de centralizar a atenção da formação continuada nas situações de trabalho do professor, pois eles

possuem condições de mobilizar os saberes aprendidos por eles nas suas situações de trabalho e de reutilizá-los nas suas próprias ações de forma ressignificada. A formação continuada pode ser considerada como reconstruções das situações de trabalho.

Esse debate educativo, marcado pela dicotomia teoria/prática, tem se ampliado a cada estudo e concordando, colocando a necessidade de instituir as práticas profissionais como lugar da reflexão e da formação. No caso de bacharéis que exercem a docência, acredito que haja a necessidade de formações que transformem a própria experiência como fonte de conhecimento, do contrário, ocorre o que explica Alberto sobre a formação oferecida na UFRN: “Esperei que como pedagogos o pessoal ensinasse a ensinar, mas nos últimos que fui, falava-se apenas de projetos pessoais e resultados de pesquisas”.

Não pretendo nesta tese adotar uma defesa praticista, pois concordo com Nóvoa (2009) de que não podemos incentivar as tendências anti-intelectuais e não científicas na formação de professores. Todavia, busco ressaltar a importância de observar a ação docente dos bacharéis para além da definição de transmitir um determinado saber ou de domínio de estratégias de aprendizagens, mas a essa docência deverá assumir um terceiro sentido. O que deve caracterizar a profissão docente é um lugar outro, um terceiro lugar, no qual as ações docentes são investidas do ponto de vista teórico e metodológico, dando origem a construção de um conhecimento profissional que tenha como eixo formativo suas situações de trabalho.

Sobre isto, Nóvoa (2009), conta uma experiência que teve ao observar alunos e professores do curso de medicina no decorrer das aulas de graduação de uma determinada universidade portuguesa, considerando quatro aspectos que podem servir de inspiração para a formação de professores:

A formação se realiza a partir da observação, do estudo e da análise de cada caso;

Na observação são identificados aspectos que necessitam de aprofundamento teórico, de modo que sejam feitas distintas abordagens de uma mesma situação;

Existe a reflexão conjunta sobre os casos, considerando os papeis de cada um dos que ali estavam presentes (professores, alunos, estagiários, etc.) buscando a mobilização dos conhecimentos desses profissionais em seus diferentes níveis de formação;

Existe a preocupação com questões sobre o funcionamento dos hospitais e a necessidade da introdução de melhorias de ordens diversas.

Esses pontos observados por Nóvoa (2009) demonstram a importância de como as situações práticas são fonte de buscas teóricas e mobilização de saberes. Para ele, a formação de professores, seja inicial ou continuada, ganharia muito se partisse de situações concretas, para que os professores tivessem a persistência de procurar as melhores soluções em cada caso em que se encontrassem.

Apesar de não tratarmos especificamente nesta tese sobre a formação inicial de professores, acredito ser válida essa reflexão apontada por Nóvoa a discussão sobre que tipo de formação se deseja para os bacharéis que atuam como docentes no Ensino Superior. Existe lugar para uma discussão primordialmente teórica nos cursos de formação continuada, quando os bacharéis querem encontrar soluções a partir de suas vivências? Esse questionamento surge no momento em que Luiz explica que “minhas leituras sobre docência partem de minhas dúvidas, aí compro um livro sobre o assunto”, para o professor, estudar sobre docência é muito complexo e exigiria um curso de graduação “não tenho nem tempo de sair lendo sobre tudo que existe na área de educação”.

Em algumas leituras sobre docência no Ensino Superior, observei que se espera, muitas vezes, do bacharel estudos sobre a docência, envolvendo as dimensões histórica, filosófica, psicológica, sociológica, organizacional, curricular e didática, bem como o conhecimento das situações em que sua ação se desenvolve. Fico em dúvida sobre como proporcionar uma formação tão complexa e abrangente, na qual os próprios licenciados, em especial os pedagogos, passam anos dedicados a adquiri-la e que ocorra em momentos de formação continuada, lembrando que sua ocorrência acontece concomitantemente às demais atividades dos professores na universidade.

Tal preocupação decorre de reflexões empreendidas após analisar o que pensam os bacharéis sobre essas necessidades colocadas muitas vezes nas avaliações docentes e nos cursos de formação continuada, como pode ser visto, por exemplo, no que pensa Sophia sobre o assunto: “eu não penso em fazer o curso de pedagogia não: sobre educação e docência leio ou pergunto o que preciso”.

docentes? Luiz, assim como Sophia, expressa que seus estudos sobre a docência surgem das necessidades cotidianas de seu trabalho. Lia, por sua vez, afirmou que “uma vez comprei um livro sobre avaliação, até gostei”.

A iniciativa de comprar livro sobre um tema em que tem dúvida e buscar ler sobre a docência demonstra que alguns professores entrevistados buscam artifícios de melhoria de sua ação como professor a partir de suas experiências, o que se constitui como um processo de autoformação. Essa autoformação pode ser compreendida como um processo de busca de conhecimento no qual o individuo tem sob seu próprio controle os objetivos, os processos e os resultados que deseja obter, identificando suas necessidades profissionais nas relações de interdependência presentes em seu cotidiano (GARCIA, 1995).

Todavia, acredito que a autoformação deveria estar relacionada com a interformação, definida como “ação educativa que ocorre entre os futuros professores ou entre professores em fase de atualização de conhecimentos [...] e que existe com o apoio privilegiado no trabalho da equipe pedagógica” (GARCIA, 1995, p.20). Se o processo de autoformação decorre das necessidades surgidas das situações de trabalho dos professores, a interformação deveria partir dessas situações, intervindo e ampliando os conhecimentos que são necessários ao desenvolvimento da docência universitária e ao desenvolvimento do projeto político pedagógico do curso.

Ao entrevistar os bacharéis, percebi que muitos desejam melhorar suas ações como docentes, enquanto outros não percebem necessidade de melhoria porque muitas vezes não têm elementos suficientes nem mesmo para se autoavaliarem. Existe, por isso, a necessidade da ampliação do canal de comunicação entre eles e as equipes pedagógicas da universidade, uma atividade que pode ser bem desenvolvida por meio da coordenação de seus cursos.

Esses anseios são expressos quando muitas vezes se busca, nas escolas dos filhos ou nos colegas, elementos de superação de suas dificuldades como professor, como é o caso de Cesar, que conta que sempre conversa com a professora de seu filho: “eu sempre vou nas reuniões e apresentações do meu filho, eu converso com os professores sobre como eles fazem e tento também trazer algo lúdico pra minha sala de aula”. Ainda que seu filho esteja na educação infantil, Cesar conta com orgulho uma dessas inovações que descobriu através da observação de uma atividade de seu filho: “numa turma fabrico sorvete, em outra, pizza, vou ao Parque das Dunas, não para nos divertir, mas pra tentar tornar mais maleável minha

disciplina, que é muito dura”. Partindo dessas inovações, o professor conta que: “o que tenho feito de diferente faz com que eles se interessem mais por finanças, que é muito difícil quando não se tem boa base em matemática”.

Sophia, por sua vez, também busca explicitar, enquanto fala sobre como desenvolve suas aulas, algumas buscas por inovações para chamar mais a atenção dos alunos: “eu procuro utilizar uma linguagem clara com os alunos, parto de situações que trago do mercado pra discutir e achar soluções”. A professora afirma que “fazer consultoria faz com que eu tenha segurança de dizer ao meu aluno como realmente está o mercado e não como os livros o descrevem”.

A professora critica professores que se baseiam em experiências descritas nos livros, ou em pesquisas não atuais, e não estabelecem relações do conteúdo com sua prática na atualidade: “o mercado é dinâmico e os livros não acompanham. Eu critico o professor que não sai da universidade nem para pesquisar. Tem uns que mandam os bolsistas para o campo coletar dados e só fazem as análises”. Como a professora também faz consultoria no setor do turismo em diferentes instituições, ela procura trazer situações problemas por ela elaboradas, ou levar os alunos a discutirem situações reais: “só assim eles saberão relacionar o conteúdo da aula com uma situação do mercado atual”, analisa a professora.

No decorrer da análise das entrevistas, percebi que existe a preocupação em uma grande parcela dos professores entrevistados de buscar meios que melhorem a aprendizagem do aluno, seja na troca de experiências com outros professores, seja através de situações de trabalho internos e externos à universidade. De diferentes formas, desenvolvem no seu cotidiano “teorias de ação” sobre o ensinar e o aprender no Ensino Superior.

Essas teorias da ação pressupõem significativos conhecimentos distintos dos produzidos cientificamente. São conhecimentos extraídos da ação docente no qual está implicada a mobilização do saber como e porque, possibilitando versatilidade ao professor em relação aos elementos básicos dos processos de ensino e aprendizagem (SACRISTAN, 1995).

Esse saber como e saber porque tornam-se elementos de legitimação da docência para os bacharéis, pois a legitimação não consiste apenas em uma questão de valores, mas também de conhecimentos que servem de referências de condutas e modos de agir. Constitui-se ainda como um conjunto complexo de conhecimentos orientados para a prática que exige, tanto

e resolver problemas práticos através da integração inteligente e criativa do conhecimento e da técnica.

As teorias da ação se aproximam do conceito de saberes da práxis social e pedagógica (TARDIF; LESSARD, 1991), ou saberes de experiência que se constituem a partir do cotidiano da profissão os quais "formam um conjunto de representações a partir das quais os docentes interpretam, compreendem e orientam” sua ação em sala de aula (TARDIF; LESSARD, 1991, p. 215) Para Therrien (2000), são saberes que possuem natureza dinâmica e interativa, nos quais pode ser percebida a presença da pluralidade do saber docente, saber esse que se constitui a partir das inter-relações dos indivíduos com suas coletividades, sendo por isso dialéticos e heterogêneos, tanto nas suas constituições quanto nas suas formas de legitimação.

As teorias da ação podem ser consideradas ainda como saber alicerçado em vivências, orientados para a ação. Resultam de julgamentos e decisões em momentos de intervenções pedagógicas, que podem ser apreendidos tanto no fazer cotidiano quanto por meio da transmissão oral de outros professores, sendo adquiridos pela prática e pelo confronto de experiências, ligados ao modo pessoal e profissional de agir do professor, como pode ser visto a seguir.