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2.4. As Transformações da Modernidade

2.5.3. Apropriação do espaço público

A apropriação, concebida de forma mais simples, significa “tomar posse de algo” através da territorialidade. Ao “apossar-se” afetivamente e simbolicamente de um espaço o sujeito cria as condições para o surgimento de um sentimento de pertencimento. Esse processo de transformação de um espaço “vazio de significados” a um “lugar significativo” é o que se pode chamar de apropriação (Pol,1996), condição necessária para o surgimento da identidade de lugar. O sentimento de pertencimento, a identidade, quando partilhados, constituem a base para o surgimento do universo de significados representado pela cultura, expressão da identidade coletiva.

Além de tornar significativo um espaço indefinido, a apropriação contempla um sentido de continuidade do sujeito no tempo. “A apropriação contínua e dinâmica do espaço dá ao sujeito uma projeção no tempo e garante a estabilidade da sua própria identidade” (Pol, 1996, p.43).

116 Na atualidade, com todas as transformações a que estão impostas a subjetividade e a identidade humanas, seria, todavia pertinente, tratar a apropriação como um processo que dá ao sujeito uma projeção estável no tempo? A identidade do sujeito estaria relacionada aos espaços físicos por quanto tempo? A noção de tempo cada vez mais fluido, cada vez mais rápido, não estaria igualmente marcando e transformado os conceitos a ele vinculados, como é o caso da apropriação?

Alguns estudos procuram entender as mudanças no apego ao lugar a partir do aumento da mobilidade na atualidade (Vidal, Valera & Peró, 2010), outros fazem um apanhado teórico da “construção não localizada dos vínculos pessoa-lugar” em virtude da mobilidade (Di Masso, Vidal & Pol, 2008). A dinâmica da sociedade atual nos leva a pensar que o apego ao lugar e por consequência a apropriação podem estar sendo transformados por dois aspectos da atualidade: o primeiro é efetivamente a possibilidade ampliada de mobilidade por questões de trabalho, estudo, melhoria e rapidez dos meios de transportes e comunicações; e o outro seria pela transformação dos espaços em mercadoria, mesmo aqueles que, em um passado próximo, eram adquiridos para a vida toda, como a casa.

Entende-se que a apropriação é um processo fundamental para a constituição da identidade e do simbolismo do espaço, o que pressupõe uma relação afetiva com os espaços nos quais ela se manifesta. Entretanto o que parece se fortalecer, na atualidade, é uma visão mais utilitária e provisória do espaço, tanto no âmbito privado como no público. Nesse sentido Bauman (2006) trata vários aspectos da vida enquanto processos “líquidos”: medo líquido, amor líquido etc. A ideia do consumo de bens parece ter se expandido às relações entre as pessoas e, porque não supor, igualmente ao espaço. A apropriação na “modernidade líquida”, não estaria também marcada pela característica da fluidez? Pode-se pensar numa apropriação líquida?

Da mesma forma que o ser humano se adapta, transforma e constrói um processo de vinculação aos lugares, o contexto muito mais dinâmico da vida na atualidade, o estaria “forçando” a elaborar processos de apropriação cada vez mais provisórios e mutáveis. Aprender a lidar com a “fluidez” da vida, das pessoas, das coisas e dos lugares, adaptar-se a novos valores poderia ser uma forma de proteção à identidade, que passaria a ser constituída por um mosaico

117 de lugares e pessoas que estão “de passagem”, mas que, mesmo assim, dão sua contribuição na constituição desse sujeito.

Um apego ao lugar mais provisório foi descrito por Mc Andrew (1993 como citado em Amérigo, 2002) que destaca duas modalidades de apego: 1) quando o indivíduo tem uma “dependência mais genérica do lugar”, estando satisfeito em vários locais diferentes tanto tempo quanto esses lugares possuam características adequadas e 2) “dependência geográfica do lugar”, um forte apego a um lugar concreto. O autor descreve a possibilidade de diferentes intensidades de apego, que podem variar entre os indivíduos. Pode-se supor que a intensidade do apego de um indivíduo ao lugar varia em função do tempo de ligação, das vivências e da própria personalidade do sujeito.

A ideia aqui defendida é que esta ligação é também influenciada pelo

“espírito da atualidade”, que acelera o tempo, dinamiza a vida e não mais se encanta com o “antigo” e “obsoleto”. O que fica flagrante na frequente

“generalização dos lugares urbanos”, lugares padronizados e desconectados da cultura local, construídos a partir de conceitos uniformes de planejamento urbano (Wheeler, 2004; Mohammed Abdullah, 1998 como citado em Shamsuddin & Ujang, 2008). O lugar é construído para ser consumido como uma mercadoria qualquer.

O consumo de lugares diferentes, novos e mutantes, onde a apropriação por um lugar específico não tem tempo o suficiente para se manifestar, construindo-se assim apegos cada vez mais fluidos e funcionais. O que poderia ser ilustrado pela frase: amo meu lugar até quando ele me for suficientemente útil. O desenvolvimento de apegos fluidos e mutáveis pode reduzir o compromisso de alguém com “seu lugar”. Afinal o lugar deve “servir-me” e não o contrário. Poderíamos explicar dessa forma o pouco interesse pela vida coletiva, relacionada à dificuldade de apropriação dos espaços públicos.

Ao tratar do problema de construção de vínculos na cidade, Soczka (2005) explica que o ser humano, apesar de ser uma espécie única, tendo total capacidade de comunicação, constrói “pseudo-especializações de natureza cultural, que se não impedem, dificultam esta comunicação” (p.108). As subculturas são de natureza grupal, associações de poucos, como família, amigos, colegas, vizinhos mais próximos. A fragmentação em redes sociais de apoio com valores próprios permite ao ser individual o pertencimento a um

118 espaço reduzido de relações, o suficiente para fugir da anomia, mas insuficiente para um contato coletivo mais amplo. Assim os urbanitas, vivem “...

com universos perceptivos e mapas cognitivos que constituem mundos próprios com parcas franjas de comunicação entre si” (p.110).

A vida urbana na atualidade acelera o tempo e fragmenta os grupos sociais, estes dois aspectos precisam ser levados em conta na análise da natureza da apropriação dos espaços públicos que, em sua concepção, devem ser produzidos para uma coletividade ampla e tomados, a princípio, como uniforme.