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2.4. As Transformações da Modernidade

2.5.1. Territorialidade e privacidade nas calçadas

Qualquer que seja o espaço – quarto de dormir, casa, bairro ou a cidade como um todo – ele é passível de sofrer intervenções conforme seja de domínio público ou privado. Isso ocorre porque a construção e transformação dos espaços de vida é uma forma privilegiada de inscrição da subjetividade humana, seja individual ou coletiva. Assim sendo, a calçada, como espaço público, pode igualmente ser marcada.

A inscrição da subjetividade humana no espaço é estudada pelo conceito de territorialidade. Inicialmente investigada no âmbito animal, a territorialidade revela um caráter biológico e instintivo, apresentando-se como uma necessidade inata de defesa dos espaços para reprodução e alimentação, sendo realizada por marcações com urina ou secreções.

Nos seres humanos, seres culturais e simbólicos, as manifestações de territorialidade apresentam-se de forma mais complexa e sofisticada, a subjetividade se inscreve no espaço, por exemplo, a partir dos estilos de construções públicas, ou de forma individual por pichações, marcas em árvores, formas de decorar, organizar e proteger a própria casa.

Valera e Vidal (2002), a partir dos estudos de Altman (1975), entendem e descrevem a territorialidade como “um padrão de conduta associado à posse ou ocupação de um lugar ou área geográfica por parte de um indivíduo ou grupo, que implica na personalização e defesa contra invasores” (p.136).

112 Na personalização o ser humano busca a distinção, a diferenciação do todo. A personalização do espaço leva à percepção de extensão do “eu” ao lugar. É por assim dizer uma extensão da própria identidade do sujeito, forma de expressar sua identidade no espaço. A defesa de um território está relacionada à posse de uma área geográfica e proteção do espaço em benefício próprio ou do grupo ao qual pertence, levando à possibilidade de regular o acesso dos outros ao lugar, ou seja, à construção de espaços de privacidade.

Os estudos clássicos sobre privacidade e territorialidade classificam os espaços, segundo o grau de privacidade oferecida e os territórios segundo o nível de controle por parte do usuário. Essa classificação se torna bastante útil e reveladora no que toca o entendimento da percepção dos espaços por parte de seus usuários. Com maior grau de privacidade e controle mais exclusivo e permanente estão os espaços privados ou territórios primários. Os espaços ou territórios públicos, ao contrário, podem ser utilizados e ocupados por todos, o que leva a um grau mínimo de privacidade. Entre os dois estão os espaços semipúblicos ou territórios secundários, que não possuem regras fixas de controle e por isso mesmo oferecem privacidade relativa e compartilhada entre algumas pessoas (Valera & Vidal, 2002).

Nesse sentido e se usamos como metáfora as camadas de uma cebola (Moles & Robmer,1998), o núcleo seria a parte mais privativa do espaço, à medida que avançamos em direção às extremidades entramos em espaços cada vez mais públicos. Assim pode ser entendida a casa em relação à rua.

Quanto mais interno é o espaço, mais privativo, como o banheiro e o quarto de dormir, à medida que nos expandimos encontramos a sala de estar, a cozinha, espaços compartilhados pelos moradores de uma casa. Avançando mais chegamos ao jardim, muitas vezes aberto à rua e, portanto, com privacidade extremamente reduzida. Por fim chegamos à calçada.

A calçada é um espaço público, mas apesar da lei determinar suas normas de execução, o particular, expressa na construção, o seu estilo ou gosto pessoal, deixando visível, pelos materiais utilizados, inclusive o seu nível econômico. A falta de obediência dos proprietários e a ausência de cobrança pelo cumprimento da lei, por parte do poder público, transformam o espaço público em um mosaico de subjetividades, onde cada proprietário constrói

113 como quer ou como sua condição financeira permite. A forma de construir são marcas de territorialidade, obtendo pela personalização da calçada, uma

“privatização” do espaço público que pode servir inclusive como forma de defesa e proteção contra prováveis violadores da privacidade da “calçada da casa”.

A calçada só pode ser compreendida em sua relação com a casa e vice-versa. No estudo dos ambientes residenciais torna-se fundamental contemplar os ambientes próximos. Esses ambientes são tomados em seus elementos físicos e sociais. Assim, ao estudar a casa, deve-se ampliar o nível de análise ao bairro, dois ambientes físicos interligados. Ademais os elementos sociais representados pela vizinhança perpassam e interferem nos elementos físicos (Amérigo, 2002).

Uma das dimensões importantes nesse estudo ambiental é o que determina o grau em que a residência está “aberta/fechada” aos estranhos.

Esta dimensão é semelhante ao gradiente público/privado (Rapoport, 1978 como citado em Amérigo, 2002), que determina o nível de privacidade, ou seja, quanto mais aberta, mais pública, quanto mais fechada, mais privada. O nível em que os espaços residenciais são mais abertos ou fechados é determinado por fatores culturais, posição social e posição adiante/atrás em relação à parte externa da casa. Semelhante a Molles e Robmer (1998) que tratam dos espaços mais internos como mais íntimos, Rapoport (1978 como citado em Amérigo, 2002) afirma que os espaços mais íntimos são os que se encontram mais afastados da rua, o que determinaria uma maior privacidade.

É interessante perceber que a personalização da calçada pode tentar obter uma maior privatização do espaço próximo à rua, que normalmente deveria ser público e uniformizado. Ocorre, portanto, uma inversão de valores quando encontramos espaços públicos personalizados. Assim Rapoport comenta que:

O que para uns é público, para outros é completamente privado, o que pode dar origem a conflitos no uso do espaço. Comportamentos que certos status sócios culturalmente baixos realizam diante de suas casas, são considerados completamente privados por status mais elevados (1978 como citado em Amérigo, 2002, P.175).

114 Os valores culturais e a posição social dos proprietários das casas podem influir consideravelmente na forma e função das calçadas e nas interações que ocorrem nas calçadas em Maracanaú.