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Aproximações entre o ensino de ciências e Paulo Freire

8. RESULTADOS E DISCUSSÃO

8.1. O GRUPO DE ESTUDOS: Perfil e Concepções

8.2.1. Professora Helena

8.2.1.3. Aproximações entre o ensino de ciências e Paulo Freire

A tônica do CFC é a aproximação de algumas ideias de Paulo Freire para ressignificar o processo de ensino e aprendizagem da disciplina de ciências nos anos iniciais. Assim, neste item, apresentamos o acompanhamento da professora Helena relativo aos conceitos de Paulo Freire interpretados e discutidos durante os encontros e presentes na sequência das aulas ministradas.

Utilizamos a mesma organização do item anterior para facilitar o acompanhamento do processo, ou seja: i) primeiros encontros; ii) discussões no grupo; iii) replanejamento; iv) sequência didática (aulas) e v) reflexão final.

i) Primeiros encontros:

No início do CFC, as ideias de Paulo Freire são levantadas a partir do entendimento trazido pelas professoras. Assim, mostramos, neste item, as concepções da professora Helena logo nos primeiros encontros coletivos, bem como nos instrumentos de coleta de dados correspondentes a esta etapa do curso.

Sobre a leitura do mundo, a professora Helena sugere caminhos para aproximar os conteúdos da escola ao que pode ser vivenciado diretamente pelo aluno, em seu cotidiano:

[...] eu acho que Paulo Freire traz para a gente essa experiência que é muito boa, você vai trabalhar a questão dos moluscos? Córrego tem, lagoa tem... então por que que você não começa daqui? Toda cidade tem córrego, começa daqui, daí vai crescendo. Pega imagens, traz filme, quantos filmes trabalha o fundo do mar, Pequena Sereia, tem tanta coisa... então assim, por que que não traz, não faz um todo, começa da vivência dele e faz esse todo (Encontro 2, fala 325).

Dessa forma, concorda com Caniato (2003) ao declarar que é possível criar condições para os alunos ampliarem sua leitura do mundo, recorrendo a observações que viabilizem, por exemplo, a compreensão sobre o funcionamento da natureza. Todavia, pensando em sua experiência docente, reconhece que a leitura do mundo requer uma abordagem interdisciplinar, como a própria orientação dos PCN (BRASIL, 1997b):

Mas, para trazer a vida para a sala de aula só trabalhando com projetos, porque só assim é que dá para trabalhar com a vivência do aluno, com a leitura de mundo dele, porque quando divide tudo nas caixinhas, cada disciplina, tudo separadinho, fica mais difícil chegar naquilo que o aluno já sabe (Encontro 2, fala 93).

Além disso, ela destaca que a dificuldade do professor de procurar novas estratégias de ensino pode ser resultado de uma crença de que o conhecimento científico é constituído apenas por definições e fórmulas, como pondera na fala a seguir:

[...] o problema é que o professor, ele lê para o aluno a definição do que é que tem lá no fundo do mar e acha que isso é o suficiente para o aluno compreender como é que funciona lá. O professor acha que se o aluno entender as palavras corretas, ele vai entender o conteúdo (Encontro 3, fala 157).

Nesse sentido, a professora Helena traz à tona o que Freire define em resposta à pergunta de Shor como “dicotomia entre ler as palavras e ler o mundo” (FREIRE; SHOR, 1992, p. 164), justificando a necessidade de atender à leitura do mundo do aluno para que ele seja capaz de conseguir relacioná-la com a linguagem da escola. Do mesmo modo, no instrumento de coleta que solicita o posicionamento individual sobre quais aspectos das ideias de Paulo Freire são viáveis para o ensino de ciências, a professora responde:

A ideia de começar pelo conhecimento da criança, ou seja sobre o que ela já sabe, conhecimento de mundo, de corpo, de interação, incentivando o discente a pesquisar para ampliar seus conhecimentos. Porque o que normalmente é feito é ensinar para os alunos a nomenclatura correta e não se leva em conta conhecimentos que o aluno traz. (APÊNDICE G, questão 5)

Assim, nesse levantamento inicial sobre as ideias de Paulo Freire elencadas pelas professoras participantes do CFC, percebemos que a professora Helena recorre apenas ao conceito de leitura do mundo. Embora, não verbalize restrições aos demais conceitos discutidos nos primeiros encontros, ela não faz referência a nenhum outro.

ii) Discussões no grupo:

O conceito que mais aparece nas participações de todas as professoras quando se remetem à obra de Paulo Freire é a dialogicidade. Não obstante, a professora Helena tenha recorrido à ideia de um diálogo antiautoritário em poucos momentos durante o CFC,

entendemos que a percepção sobre sua importância parece dar a ele o status de uma premissa para o trabalho do professor, conforme trecho selecionado a seguir:

Na perspectiva freireana não tem como trabalhar sem o diálogo. E é um diálogo no mesmo patamar, né, sem ter um mais e um menos. O professor tem que ser um mediador, né? Ele não pode levar tudo pronto para o aluno. Assim, a aula não pode ser o professor falando e o aluno escutando (Encontro 4, fala 96).

Todavia, vale ressaltar que a preocupação se remete ao diálogo que pode ser estabelecido entre o professor e os alunos, deixando para segundo plano o diálogo entre os alunos ou entre os alunos e outras pessoas.

Nos primeiros encontros, destacamos que a professora Helena resgata, de seus conhecimentos sobre a obra de Paulo Freire, apenas a orientação de respeitar a leitura de mundo que o aluno traz para a escola como meio de facilitar novas aprendizagens. Nos demais encontros coletivos, ela ratifica essa expectativa, mas insere novos elementos às suas argumentações, como vemos a seguir:

[...] eu vi aqui que tem um monte de conhecimento que não é só ciência, a proposta aqui é desenvolver o aluno, não só ensinar o conteúdo. E isso é uma novidade na ciência para mim, porque, assim, a gente pode pensar nessa aula com outras ideias, inclusive de habilidades que a gente tem mais domínio do que tem na ciência, o próprio desenvolvimento do registro do aluno, de ele organizar suas ideias ou mesmo de ver um problema em casa, como é o caso aqui da plantação de cana, e ter outros conhecimentos para pensar sobre esse assunto. É isso que eu entendo como dar condições para o aluno fazer uma nova leitura do mundo (Encontro 6, fala 55).

Assim, ao analisar uma proposta de ensino de ciências em um dos encontros, a professora Helena percebe a possibilidade de organizar a aula de modo a favorecer novas leituras do mundo. Não obstante, ela ressalta sua expectativa sobre o desenvolvimento do aluno valendo-se de outras habilidades que, embora possam ser associadas ao ensino de ciências, são oriundas de outros campos do saber, facilitando o envolvimento do professor que, normalmente, sente-se distanciado do conhecimento científico, conforme defendem Lima e Maués (2006).

No entanto, nesta parte do CFC outro conceito da obra de Paulo Freire é destacado pela professora Helena, a curiosidade epistemológica, que vemos no trecho selecionado a seguir:

[...] essa atividade primeiro instigou o aluno para ele poder buscar, pesquisar, ela quis instigar porque se ela chegasse e contasse, logo perderia a graça, faria por fazer. Diante da dúvida, a gente corre atrás da resposta. Quando o aluno é colocado nessa situação ativa, que ele tem que participar, não apenas ficar lá sentado, esperando o professor falar, eu acho que ele se envolve mais com o assunto e acaba aprendendo mais. É diferente de quando os alunos ficam lá, tudo sentadinho, e o professor fica falando, falando, mesmo que ele faça pergunta que os alunos tenham que responder, não é o mesmo envolvimento do que quando ele está lá, fazendo, pensando,

buscando, entendeu? E isso é a base para a curiosidade epistemológica que tanto falava Paulo Freire, né? (Encontro 6, fala 74).

Assim, o desenvolvimento intelectual do aluno parece ser influenciado pelo tipo de atividade que lhe é proposta. De modo que, tarefas nas quais a participação do aluno é mais requisitada observa-se maior envolvimento e aprendizado, comparando-se àquelas em que o aluno é solicitado apenas para responder às perguntas do professor, pois não estimulam o desenvolvimento da curiosidade epistemológica, tão necessária ao processo de construção do conhecimento.

Da mesma maneira, em outro momento, salienta a importância de utilizar o conhecimento científico para motivar seus alunos, despertando sua curiosidade natural para a busca de novos conhecimentos, conforme notamos na resposta à questão “Na sua opinião,

quais devem ser os objetivos do ensino de ciências para os alunos dos anos iniciais? Dê exemplos e Justifique”, transcrita a seguir:

Acredito que o ensino de ciências tenha que despertar o interesse dos alunos, pois, nessa idade, eles são muito curiosos. Assim, uma boa aula de ciências tem que ter experiências, visitas, observações em geral. Porque é isso que leva os alunos a buscarem sempre mais. Porque os alunos são curiosos, mas se essa curiosidade não for alimentada, eles acabam desmotivados. (APÊNDICE J).

Tendo em vista apenas esta etapa do CFC, percebemos que a professora Helena utiliza em suas argumentações apenas três dos conceitos que elegemos como importantes para o ensino de ciências, são eles: leitura do mundo, dialogicidade e curiosidade epistemológica. Os demais conceitos, embora tenham sido objeto de leituras e discussões no grupo, não são empregados pela professora nem nos encontros coletivos, nem nos instrumentos de coleta de dados.

iii) Replanejamento:

Ao questionarmos o motivo que levou a professora Helena a estabelecer a sua primeira proposta (Quadro 8.2.1.1), ela explica que seu principal interesse foi estimular o envolvimento do aluno, com vistas ao desenvolvimento da curiosidade epistemológica, como vemos a seguir:

É por isso que eu quero levar os alunos a provar sensações, trabalhar assim, porque se os alunos estiverem acostumados a só copiar as coisas ou só ficar escutando o professor, eu acho que não vai desenvolver aquela curiosidade epistemológica que a gente tem discutido, não vai motivar o aluno a buscar novos conhecimentos e eu espero que os alunos gostem da aula, se envolvam, entendeu? (Encontro 9, fala 162).

Assim, a professora demonstra sua preocupação em trazer o aluno para o centro do processo, pois como afirma Caniato (2003), as crianças, nessa faixa etária, são curiosas e gostam de saber como funcionam tudo que conseguem observar. Além disso, deixa clara sua expectativa com a execução de seu plano, esperando que, ao “provar sensações”, os alunos sejam despertados a querer saber mais, a buscar novas respostas (FREIRE, 2008).

Já na explicação sobre a segunda versão do plano (Quadro 8.2.1.2), a professora Helena destaca a importância da valorização da leitura do mundo, como vemos na resposta a seguir:

As crianças têm conhecimentos da vida delas, a aula tem que resgatar isso. Por isso, o plano de aula precisa valorizar a leitura de mundo que os alunos trazem. Mas, tem que fornecer novas informações, tem que instigar o aluno para também começar a ler o mundo com outros olhos. (APÊNDICE M, questão 5).

Aliado a isso, a professora argumenta que a escola pode ir ao encontro das demandas da sociedade acerca da necessidade de as pessoas continuarem aprendendo, mesmo fora do ambiente escolar, conforme trecho selecionado a seguir:

[...] está tudo mudando, tudo precisando, exigindo cada vez mais das pessoas. E a escola precisa dar as condições para que as pessoas aproveitem essa exigência de uma forma positiva, assim, para que as pessoas encontrem o prazer de aprender e que percebam como é importante aprender para a própria vida, porque uma pessoa que sabe mais acaba sendo mais, como diz Paulo Freire: ser mais! Então, ela vai acabar buscando coisas melhores para si (Encontro 10, fala 297).

Diante dessa declaração sobre a importância da valorização da vocação ontológica do ser humano em ser mais, a professora confere certo significado à escolarização que não havia aparecido anteriormente nas suas participações no CFC. Assim, “a busca deve ser algo e deve traduzir-se em ser mais: é uma busca permanente de si mesmo” (FREIRE, 1983, p. 14), emancipadora. Todavia, essa preocupação não está explícita nem na última versão do plano de aula (Quadro 8.2.1.4).

Na discussão sobre a versão final do plano (Quadro 8.2.1.3), a professora Helena detalha como espera realizar a interação com seus alunos, conforme trecho a seguir:

Eu coloquei essas perguntas aqui para ficar mais claro o que eu quero que os alunos respondam. Porque assim fica bem detalhado como eu quero o diálogo na sala de aula. Eu estou pensando assim: eu vou perguntando e os alunos vão interagindo, de acordo com as respostas deles, eu posso ir direcionando as minhas (Encontro 11, fala 35).

Assim, a professora considera a possibilidade de adequar sua aula ao retorno que consegue de seus alunos, dinamizando-a a partir do conteúdo trazido para a sala de aula (FREIRE, 2002). Dessa forma, nesse momento do CFC, a professora Helena considera a

dialogicidade, a vocação ontológica em ser mais, a curiosidade epistemológica e a leitura do mundo como requisitos para suas aulas.

iv) Sequência didática (aulas):

Neste item, procuramos selecionar episódios que explicitem como as aproximações com as ideias de Paulo Freire aparecem durante as aulas ministradas pela professora Helena. Começamos pela leitura de mundo e a dialogicidade:

P: Pessoal, eu queria saber de vocês, para que serve a visão? A7: Para ver.

A12: Olhar.

P: Certo, para ver, para olhar, mas que tipo de coisas vocês estão acostumados a ver? A3: Televisão.

A15: Carrossel.

A6: Eu gosto de desenho.

P: Certo, quer dizer que a visão serve só para assistir TV? A gente não enxerga mais nada?

A (vários): Enxerga!

P: Que mais que a gente pode enxergar, então? (Aula 2, Episódio 2).

Tendo em vista todos os episódios em que os dois conceitos aparecem ao mesmo tempo, percebemos que a professora Helena dá voz a seus alunos para conseguir resgatar as ideias que eles trazem para a aula (FREIRE, 2002), levantando suas concepções. Assim, a inserção de novos conhecimentos que permitam ampliar e ressignificar tal leitura (FREIRE; SHOR, 1992) não parece ser a tônica das aulas.

Todavia, inferimos que a abordagem realizada não permite explorar o diálogo entre os alunos, visto que a professora acaba centralizando todas as respostas e, embora considere praticamente tudo que os alunos falam, não cria condições para que os alunos ouçam uns aos outros, avaliando a pertinência de cada argumento.

Outros conceitos também aparecem simultaneamente em episódios específicos, como ser mais e autonomia, como vemos pelo trecho a seguir:

P: Pessoal, nesse papel vocês vão desenhar, do jeito que vocês quiserem. A (vários): Eh!

P: Então, mas, o que eu quero que vocês desenhem? A4: Uma casa?

A8: A escola?

P: Não gente, eu não quero que vocês desenhem a casa, o que vocês usam para ver? A (vários): Olhos!

P: Muito bem, os olhos, né? Nós vemos por causa dos olhos. Então, é isso que eu quero que vocês desenhem, combinado?

A4: Professora, pode desenhar uma casa?

P: Pessoal, o A4 perguntou se pode desenhar uma casa, o que vocês acham? A (vários): Pode!

P: Então não pode, combinado? Então, aqui nessa folha vocês vão desenhar os olhos, mas cada um vai fazer o desenho que quiser, depois a gente vai colocar aqui para ficar bem bonito, porque vocês sabem desenhar muito bonito, que eu sei, combinado? (Aula 2, Episódio 4)

Nesse caso, como nos outros episódios que apresentam essa mesma característica, percebemos que a professora Helena se preocupa em proporcionar “experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade” (FREIRE, 2002, p. 67). Todavia, tal decisão, além de ser limitada a critérios estreitos, não favorece o surgimento de novas perspectivas.

Do mesmo modo, o desenvolvimento da vocação ontológica do ser humano em ser mais aparece de forma pontual, nos momentos em que a professora valoriza as produções do aluno, como uma possibilidade de levá-lo a “refletir sobre si mesmo e colocar-se num determinado momento, numa certa realidade” (FREIRE, 1983, p. 14). No entanto, a ideia do inacabamento do ser, que justifica o aprendizado ao longo da existência, não é elencada durante as aulas.

Já o engajamento do aluno em sua própria aprendizagem é visto nos episódios em que os alunos demonstraram envolvimento com a proposta da professora. Entretanto, não aparecem direcionamentos que conduzam os alunos a buscarem o aprendizado fora da sala de aula, limitando o alcance da proposta de aprendizagem atrelada ao engajamento, sobretudo com situações do cotidiano (FREIRE, 1983).

Ao mesmo tempo, a abordagem das aulas instiga os alunos com perguntas do tipo: “O que será que tem aqui? Será que vocês conhecem esse gosto? Quem pode me dizer que cheiro é esse?”. Porém, tais questionamentos remetem os alunos a darem respostas sem a devida reflexão, como se fosse uma brincadeira de adivinhação. Nesse sentido, percebemos que, embora algumas aulas tenham tangenciado o desenvolvimento da curiosidade epistemológica, torna-se imprescindível aprimorar e instrumentalizar a curiosidade natural da criança para que se desenvolvam condições de superar o “nível de mero eu acho que” (FREIRE, A. 2001).

Já a criticidade aparece apenas em um episódio por conta das questões reflexivas que a professora Helena trouxe para a aula, conforme vemos a seguir:

P: Pode falar A5, você fala muito bem.

A5: É porque quem não consegue olhar as coisas, pode fazer que nem a gente, pode pegar com a mão, pode provar.

P: Quer dizer, que a pele, o nariz, a boca podem ajudar uma pessoa que não enxerga? É isso?

A5: É.

P: O que você acha, então, uma pessoa que não consegue ver é uma pessoa igual a gente?

A (vários): É.