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II. A SITUAÇÃO PERIFÉRICA DOS CIGANOS: CONTRASTES SOCIAIS,

2. Do reconhecimento da diferença à constituição de uma “questão cigana”

2.2. O dilema da diferença e o carácter indeterminado dos processos de integração

2.2.1. Arena pública e construção dos problemas

Colocar a temática da população cigana nas prioridades da agenda institucional tem sido um processo longo e com contornos diversos face aos diferentes níveis de decisão política: europeu, nacional e local. A longevidade deste processo e o formato que assume nestas instâncias são inseparáveis da forma como determinados problemas sociais se configuram em problemas públicos, pois inerente a esta configuração encontra-se as modalidades desejadas para o seu tratamento.

Como refere Cefaï, constata-se que contrariamente aos problemas sociais “les problèmes publics n’existent et ne s’imposent comme tels, qu’en tant qu’ils sont des enjeux de définition et de maîtrise de situations problématiques, et donc des enjeux de controverses et d’affrontements entre acteurs collectifs dans des arènes publiques” (Cefaï, 1996: 52). A característica crucial deste processo é a sua forma de publicitação que, no fundo, transforma as experiências individualmente vividas em recursos públicos utilizados para dar conta de um problema social na cena pública (Rinaudo, 1995: 83).

No entanto, é sabido que várias problemáticas estão em competição na arena pública e captar a atenção para o tema cigano parece assumir certas especificidades. Se centrarmos a atenção a um nível mais central de decisão política, e como bem refere Vitale, não são as características

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internas ao objecto problemático, nem a sua extensão e intensidade sobre a população designada que lhe permite aceder a algum nível de visibilidade, mas sim as formas como se mobilizam e interagem entre si os actores interessados em dar crédito público ao problema (Vitale, 2009a: 72). Se recuarmos, apenas, até meados dos anos 90 do século passado, altura da criação da figura de Alto-comissário para a Imigração e Minorias Étnicas71 e da publicação do

Relatório do Grupo de Trabalho para a Igualdade e Inserção dos Ciganos, constata-se a fraca visibilidade e impacto deste documento, nomeadamente pela não concretização da grande maioria das propostas apresentadas72.

Também no quadro das quatro gerações de Planos Nacionais de Acção para a Inclusão (2001- 2010) as medidas delineadas em torno da população cigana foram escassas, pontuais ou inexistentes e no caso do último PNAI, terminado em 2010, não se criaram as condições para o cumprimento de algumas das medidas enunciadas, como por exemplo, o “diagnóstico das experiências levadas a cabo no âmbito da habitação social”. A inclusão desta medida decorreu de uma preocupação política que ficou patente, pela intervenção do então Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades, na sessão de encerramento do Seminário internacional Ciganos, Territórios e Habitat, em Abril de 2008. João Ferrão referia: “sabe-se muito pouco sobre a relação comunidade cigana – habitação – habitat. (…) O que me parece faltar é uma visão comparada de médio prazo, capaz de sintetizar e avaliar as consequências das intervenções desenvolvidas nos últimos vinte anos. Na verdade, apenas análises rigorosas do ponto de vista técnico-científico, recorrendo a metodologias adequadas, permitirão evitar que sobre estas questões continue a prevalecer a emissão de juízos de valor demasiado marcados pela “achologia” (…) quando não pelo mero preconceito, negativo ou positivo. E esse rigor é essencial para informar políticas públicas eficientes (…) As comunidades-alvo deste seminário colocam, deste ponto de vista, uma questão de enorme relevância:

71 Decreto-Lei nº3-A/96, 26 de Janeiro, onde se estabelece que se visa promover a consulta e o diálogo com

entidades representativas de imigrantes em Portugal ou de minorias étnicas, bem como o estudo da temática da inserção dos imigrantes e das minorias étnicas (artigo 2.º).

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Este grupo tinha como objectivos proceder a uma análise pormenorizada das dificuldades relativas à inserção dos ciganos na sociedade portuguesa e elaborar um conjunto de propostas que permitiriam contribuir para a eliminação de situações de exclusão social (Resolução Conselho de Ministros nº 175/96, 19 Outubro). Em 1997, aprova-se o Relatório produzido por este grupo e cria-se novo Grupo de Trabalho para acompanhar e concretizar as propostas, estabelecendo-se um ano para se apresentar o balanço desta actividade (Resolução Conselho de Ministros nº 46/97, 21 Março). Em 2000 mantém-se a necessidade de o manter no activo de “modo a possibilitar o acompanhamento das novas realidades e dos novos desafios que se colocam aos ciganos” (Resolução Conselho de Ministros nº 18/2000, 13 de Abril), mas após a publicação do referido Relatório desconhece-se a actividade desenvolvida, sabendo-se apenas que, desde o XV governo constitucional (2002), se encontra com a actividade suspensa, tendo- se registado até 2009 a elaboração de duas propostas de constituição de novo grupo por parte do ACIDI, e embora tivesse ficado contemplado no PNAI de 2008-2010 não se registou nenhuma deliberação neste sentido.

precisaremos de instrumentos de política especificamente formulados para as comunidades ciganas?” (Ferrão, 2008: 203-205).

De referir, no entanto, que alguns avanços se registaram face ao PNAI de 2006-2008 que foi totalmente omisso em termos de medidas e metas a alcançar com esta população, contrariando as orientações internacionais sobre esta matéria, mas também sendo alvo de críticas por parte do Fórum Não Governamental para a Inclusão Social73 (Castro, 2007: 80).

O reconhecimento, em 2008, da necessidade de “adoptar medidas adicionais, especialmente dirigidas para as comunidades ciganas” não parece ter sido um processo pacífico, exigindo uma mobilização por parte de alguns actores sociais. Situação que não é de espantar quando o Estado português declina um convite endereçado pela Década para a Inclusão dos Ciganos (2005-2015)74, admitindo que a nível nacional já existe uma estratégia. Mas mesmo em 2012

não existindo ainda uma estratégia politicamente aprovada, ao contrário do que existe por exemplo para os imigrantes75, interessa, no entanto, questionar a relevância de alguns

instrumentos, nomeadamente do PNAI, por ser o único documento oficial de âmbito nacional onde se menciona a população cigana: Qual a importância assumida no contexto nacional por este “instrumento de planeamento de coordenação estratégica e operacional das políticas que permitem prevenir e combater as situações de pobreza e exclusão”? Como garantir o compromisso no cumprimento das metas estabelecidas? Qual a relevância do PNAI quando se chega ao fim de dois anos de implementação e não se consegue fazer um balanço efectivo das acções realizadas?

À partida a existência destes instrumentos de planeamento estratégico, traduzidos em medidas concretas de intervenção permitiria estabilizar formas de acção colectiva e tornar mais previsíveis, e visíveis, os comportamentos dos actores, pois na sequência das medidas accionadas passariam a ter capacidades muito diferenciadas de acção. Mas a única avaliação externa que se conhece do PNAI76 em termos da capacidade dos ciganos acederem à segurança

73 Este Fórum, constituído em Março de 2006, nasce da resposta de diversas entidades não governamentais de

âmbito nacional a um convite por parte da Coordenação do Plano Nacional de Acção para a Inclusão (PNAI), com a finalidade de concretizar, em parte, o 4º Objectivo Comum do Processo Europeu de Inclusão Social – “Mobilizar o conjunto dos intervenientes” (cf. http://foruminclusao.no.sapo.pt/).

74 Esta iniciativa é um compromisso político de vários governos europeus (Albânia, Bósnia Herzgovina, Bulgária,

Croácia, República Checa, Hungria, Macedónia, Montenegro, Roménia, Servia, Eslováquia, Espanha) para promover a inclusão social dos ciganos, sobretudo nos domínios da educação, emprego, saúde e habitação (cf. http://www.romadecade.org/).

75 Desde 2007 que foram aprovados dois Planos para a Integração dos Imigrantes: 2007-2009; 2010-2013

(Resoluções do Conselho de Ministros n.º 63-A/2007, de 3 de Maio e n.º 10/2010 de 5 de Fevereiro)

76 Realizada em parceria entre o European Roma Rights Centre (ERRC) e a Númena abrangendo a República

social, à habitação social, a pensões do estado e a serviços de saúde públicos, aponta como problema transversal o “facto de conterem neles poucas ou nenhumas políticas concebidas especificamente para lidar com os aspectos relacionados com a exclusão social de grupos marginalizados tais como os ciganos” (ERCC/Númena, 2007: 14), mas também a “distância entre a política a nível nacional e local” que se traduz na dificuldade em traduzir os objectivos nacionais em objectivos locais a alcançar (idem:17-18).

Esta constatação parece, assim, ir ao encontro dos dramas políticos de sociedades em que a igualdade e o pluralismo são sua parte integrante e onde a designação e a descrição do problema para o resolver implica um processo de etiquetagem e de actividade colectiva (Minow, 1990; Cefaï, 1996; Dubois, 2009).

Nos últimos anos assistiu-se, a nível internacional e europeu, a um envolvimento institucional e político, sem precedentes, em torno da temática da população cigana, a que não será alheio o crescimento das desigualdades e da fragmentação social e o aumento dos fluxos migratórios numa Europa que se quer (ou queria) sem fronteiras. Se, como constatámos anteriormente, a manifestação daquelas desigualdades encerra em si alguns contornos étnicos, parece ainda estar por fazer uma avaliação rigorosa destas situações. No contexto europeu, paralelamente às várias resoluções do Parlamento Europeu77, o Conselho da Europa inclui a temática na sua

agenda e a Comissão desenvolveu uma série de medidas e um conjunto de mecanismos institucionais, importando referir as iniciativas mais recentes, nomeadamente a criação em 2008 da Plataforma Integrada para a Inclusão dos Ciganos. No seio desta plataforma foram estabelecidos, em Abril de 2009, os “10 Princípios Básicos para a Inclusão dos Ciganos”, no sentido de se ter orientações claras na forma de abordar o tema cigano através de políticas e recursos78. Alguns dos critérios adoptados surgem como uma novidade no tratamento do tema

a nível europeu, nomeadamente os princípios que enunciam a aposta em medidas explícitas, mas não exclusivas, no enfoque intercultural e na normalização e transversalidade79.

77 A Resolução de 2008 – Uma Estratégia Europeia relativa à população cigana – é especialmente significativa,

pois coloca o enfoque na necessidade de liderança europeia em torno da luta contra a discriminação. Argumenta-se que se trata de um problema estrutural que requer uma abordagem a nível europeu. Também a Resolução de Setembro de 2010 reforça a necessidade de ter uma estratégia comum para a população cigana.

78 Esta plataforma assenta num mecanismo de cooperação entre os Estados Membros, actores da sociedade civil e

de instituições europeias com o objectivo de apoiar iniciativas, a troca de experiências e contribuir para uma maior compreensão sobre a temática (http://ec.europa.eu/social/main.jsp?catId=761&langId=en). Estes princípios constituem um anexo às conclusões do Conselho da Europa de 8 de Junho de 2009: http://www.euromanet.eu/upload/21/69/EU_Council_conclusions_on_Roma_inclusion_-_June_2009.pdf

79 Ver a este propósito o recente alargamento da utilização do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional a

intervenções na área da habitação a favor de “comunidades marginalizadas” em todos os Estados-Membros, visando, explícita mas não exclusivamente, a população cigana. Aprovado em Fevereiro de 2010, encontra-se disponível em:

A Estratégia EU 202080, bem como o novo ciclo de financiamentos, são enunciados como

podendo trazer soluções específicas aos problemas de diferentes tipos de comunidades ciganas. Em Abril de 2011, a Comissão Europeia apresenta a estratégia a favor da integração dos ciganos, adoptada pelo Conselho Europeu a 24 de Junho, e que introduz normas vinculativas a todos os Estados Membros para garantir que a população cigana tenha um verdadeiro acesso à educação, ao emprego, à habitação e aos cuidados de saúde81.

Em Setembro de 2011, o Secretário de Estado Adjunto do Ministro Adjunto e dos Assuntos Parlamentares, Feliciano Barreiras Duarte, anunciava que o Governo estava a delinear a referida estratégia. A notícia dava conta de alguns dos seus depoimentos sobre os ciganos portugueses, nomeadamente os “vários problemas associados à sua própria maneira de viver: são muito nómadas, as crianças não vão à escola e há grandes défices de integração derivada da ausência de hábitos de vida associados à educação e ao trabalho". Mas também se enfatizava que “Portugal vai associar-se ao que se está a tentar fazer na Europa e procurar dar um contributo para que se retire muitas destas pessoas não só da marginalidade mas, acima de tudo, de alguma deficiência ao nível da sua estrutura económica e social" e, assim, poder no futuro "enfrentar um outro estilo de vida, nomeadamente ficar mais sedentária, o que lhe permite desenvolver um curso de vida diferente, desde logo apostando em alguns pilares como a educação, o trabalho e a própria habitação, por forma a ter uma vida normal" (Correio da Manhã, 9.09.2011). Também aqui para além de emergir o “nomadismo” como um traço caracterizador por excelência da população cigana, é ele que parece ser o principal obstáculo na construção de processos de integração social. Entre 28 de Dezembro de 2011 e 18 de Janeiro de 2012 esteve em discussão pública a estratégia delineada82, mas até Julho do mesmo ano ainda não tinha sido aprovada

pelo Conselho de Ministros.

Todos os desenvolvimentos acima descritos tendem para uma abstracção da historicidade inerente à complexa diversidade de situações locais, parecendo alimentar a ideia de uma http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TC+P7-TC1-COD-2009-

0105+0+NOT+XML+V0//PT

80 Trata-se da estratégia de crescimento da União Europeia delineada para os próximos 10 anos que reúne os

objectivos a alcançar e as medidas a adoptar (cf. http://ec.europa.eu/europe2020/index_en.htm).

81 Este documento – “Um quadro europeu para as estratégias nacionais de integração dos ciganos até 2020”, COM

(2011) 173 final, Bruxelas, 5.4.2011, – encontra-se disponível em http://eur-lex.europa.eu.

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O documento que foi submetido a consulta pública pode ser consultado no site do ACIDI (http://www.ciga- nos.pt/) e da Comissão Europeia (http://ec.europa.eu/justice/discrimination/roma/national-strategies/index_en.htm).

minoria massivamente marginalizada, homogénea e dificilmente integrável. Olivera (2010, 2011) questiona, assim, se a luta contra as discriminações ou invocar a “inclusão” são as acções certas, quando parece ser a forma como o sistema funciona que produz os seus marginais e etniciza a pobreza. O autor conclui que não são definitivamente os ciganos que teriam necessidade de uma política europeia voluntarista e coordenada, pois uma parte deles estão bem inseridos nos seus meios e apenas precisam de viver a sua vida sem estar aprisionados numa categorização unívoca, imposta do exterior. Para aqueles que se encontram numa situação de maior vulnerabilidade apenas políticas sociais fundadas sobre a ideia de redistribuição poderiam melhorar a sua condição (Olivera, 2011). No fundo, alguns autores têm vindo, nos últimos anos, a alertar para os efeitos perversos dos processos de etnicização da pobreza que na ausência de enfoque nos condicionamentos sociais e contextuais acabam por fazer com que a etnicidade e a raça ditem as condições de vida e a localização no espaço da população cigana (Belton, 2005: 107).

É neste sentido que Michael Stewart refere: “while the language of ‘ethnicity and ‘ethnic relations is a popular as ever in social scientific explanations as in the folk management of social conflict, labeling a phenomenon as ‘ethnic’ or as a matter of ‘ethnic relations’ adds precisely nothing to social analysis since the meaning of ‘ethnic’ is internally contradictory” (Stweart, 2010: 7). A etnicidade é, pois, um conceito que pode remeter para uma certa artificialidade, quer por parte dos actores sociais ao (in)conscientemente o manipularem, quer por parte das ciências sociais, na medida em que corresponde a uma construção teórica de factores que na realidade são mutáveis. Steve Fenton defende que, embora não sendo uma categoria descritiva nem corresponda a uma reificação do significado da cultura de um grupo e, portanto, ser em grande medida uma construção, não podemos afirmar que não existe algo a que possamos chamar etnicidade. Existe mas não é adquirido, nem as vidas das pessoas são governadas por algo chamado etnicidade. De acordo com este autor, esse algo remete para a organização social da cultura e da descendência, situada num determinado contexto, ligado a circunstâncias, muitas vezes políticas. Por isso conclui que uma teoria da etnicidade “as to be a theory of the contexts under which it is activated” (Fenton, 2003:2).

Temos de esperar para ver que tipo de repercussões esta europeização da temática cigana vem trazer a Portugal, pois se o conhecimento, como constatámos, é pouco sustentado, ao nível da forma como esta temática se coloca nas prioridades da agenda institucional apresenta lacunas e impasses que importa analisar.