• Nenhum resultado encontrado

Do nomadismo à mobilidade espacial: uma inflexão epistemológica nos “estudos

I. A MOBILIDADE ESPACIAL: CENTRALIDADE HISTÓRICA NOS ESTUDOS

2. Do nomadismo à mobilidade espacial: uma inflexão epistemológica nos “estudos

longo dos últimos anos para a irrelevância da distinção nomadismo /sedentariedade. Estudos mais recentes salientam que esta distinção é sobretudo utilizada por actores institucionais (Williams, 2006; Brazzabeni, 2012), reflectindo um trabalho de categorização perante uma realidade que se apresenta mais complexa do que as próprias definições administrativas e burocráticas e onde o apelo ao nomadismo surge como uma incapacidade social e institucional de lidar com manifestações de mobilidade espacial (Brazzabeni, 2012).

De facto, desde os anos 90 do século XX que estas categorias vêm sendo questionadas, evidenciando-se que a distinção nomadismo /sedentariedade tende a não ser esclarecedora de modos de vida, sobretudo, quando os conceitos permanecem vagos e arriscando-se a perder a sua função analítica de interpretação da realidade para se revelarem noções valorativas, muitas vezes assentes numa perspectiva evolucionista do caminho que deve ou não ser percorrido. A designação global de grupos ciganos por termos que evocam uma exterioridade social (itinerante, semi-itinerante, sedentário, sedentarizado) não é significativa do seu estado e tendem a dizer muito pouco da relação que mantêm com a itinerância e a sedentariedade (Provot, 1995), pois as fronteiras são difíceis de estabelecer, não possibilitando dar conta da realidade dos modos de inserção urbana das populações ciganas (Robert, 2007: 169). Ao longo de um determinado período, pode alternar-se entre momentos de mobilidade e de fixação mais ou menos prolongados, não existindo, assim, um processo de transição unívoca. Como diria Piasere, ainda que estabilidade e mobilidade constituam os pólos de um continum de situações de vida, é impossível individualizar uma fronteira nítida (Piasere, 2004: 10) ou, dito de outra forma, enraizamento e circulação são ideias esfumadas dentro de uma linha contínua de significados (Brazzabeni, 2012).

Esta proposta de Brazzabeni enquadra-se no seio de uma reflexão desencadeada por Stefania Pontrandolfo e Paola Trevisan sobre o imaginário europeu relativamente à oposição destas noções, já que esta oposição tende a estar na base do processo de fundação de identidades nacionais e da identidade europeia com repercussões ao nível da não consideração dos ciganos como autóctones. Através de um conjunto de artigos etnográficos de antropólogos italianos e franceses, Pontrandolfo e Trevisan consideraram necessário desenvolver uma reflexão crítica destas noções, no sentido de individualizar instrumentos interpretativos capazes de representar da forma menos ambígua possível a complexidade do real (Pontrandolfo e Trevisan, 2009: 7). O enraizamento traduz-se, assim, através do vocabulário de uma continuidade de presença histórica num dado território, mas também em termos de uma continuidade de relações mantidas a nível local com certas categorias de pessoas. Por outro lado, a circulação é descrita através de grandes migrações internacionais, da itinerância regional relacionada com certas actividades económicas, da mobilidade urbana associada à ambiguidade das políticas sociais relacionadas com a habitação ou à própria ausência da mobilidade (idem, 7-8).

De facto, este tipo de reflexões e conclusões assentes em trabalhos de cariz etnográfico parece ter tido início no final dos anos 80, do século passado, onde vários autores têm vindo a reforçar a ideia de que nomadismo e sedentarização não são conceitos mutuamente exclusivos, traduzindo “modos de vida conjunturais” que obedecem a factores externos e à dinâmica social cigana (Reyniers, 1989; Castro, 1995; Sama, 2003, Robert, 2007, entre outros).

Já em 1995, quando estudei os ciganos residentes no Bairro da Malagueira, concluí que a viagem era algo a que se podia recorrer independentemente do grau de fixação dos indivíduos a determinado território, das expectativas que revelavam face à casa e da temporalidade e motivos dos seus percursos (Castro, 1995). Não é, pois, possível afirmar que os ciganos viajam sem qualquer finalidade. A mobilidade tem sempre um motivo para ser desencadeada, mas a viagem não lhes retira uma inserção territorial efectiva. O enraizamento num dado lugar relaciona-se quase sempre com uma rede de relações densa e complexa. Como refere Cristophe Robert “La mobilité n’est en aucun cas incompatible avec un ancrage local et l’habitat mobile ne présage en rien de la mobilité des populations tsiganes. L’opposition que convient de retenir ne repose pas sur la question de la sédentarisation ou de l’itinérance mas bien, sur la question de la fixation ou du passage, de sorte que l’on peut affirmer que l’itinérance et la sédentarité sont les deux facettes d’une même réalité ” (Robert, 2007: 182). Independentemente da ligação ou permanência relativamente estável num dado território, os ciganos podem a qualquer

momento retomar a viagem e é neste sentido que C. Robert (1999), seguindo Liégeois (1989 [1985]), afirma que o termo sedentarizado é mais adaptado do que o de sedentário.

Parece, pois, existir uma diversidade de situações, muito ancorada nas condições económicas e nas relações familiares (Provot, 1995), que se reflecte numa complexa relação com o espaço. Insiste-se, assim, na impossibilidade de identificar um “nomadismo tipo”, enfatizando-se a necessidade de compreender a especificidade e a diversidade de modos de vida que se apoiam numa relação particular com o território e com o habitat, mas também com determinadas formas de subsistência e práticas económicas. E é colocando o enfoque nesta última dimensão que alguns autores têm centrado a sua atenção. É o caso, por exemplo, de Thomas Acton que defende o nomadismo como fenómeno económico que dá origem a culturas, mas relembra que não é em si mesmo uma continuidade cultural. A ascensão ou regressão do nomadismo traduziria, assim, uma exploração das descontinuidades espaciais e temporais de oportunidades económicas, sempre variáveis em função dos diferentes estágios de desenvolvimento tecnológico. Por contraste, os modos de vida sedentários envolvem uma produção contínua num dado lugar (Acton, 2010).

Também Reyniers fala da mobilidade entre ciganos como a tradução da exploração de um nicho económico particular, caracterizado pelo fornecimento de mercadorias, serviços e mão- de-obra, onde a oferta e a procura são irregulares no tempo e no espaço, coincidindo muitas vezes estes territórios com os espaços das relações familiares e sociais (Reyniers, 1993: 41). Para o autor pode falar-se do nomadismo dito peripatético entre os ciganos, na medida em que não se trata de explorar directamente os recursos oferecidos pela natureza.

Pesquisas destes autores têm permitido constatar que os mesmos indivíduos, ao longo das suas trajectórias de vida, vão mantendo uma diversidade de relações com o território que parece ancorar-se na ideia de um “actor plural” (Lahire, 2003), socializado em contextos múltiplos e heterogéneos, que mobiliza esquemas de acção interiorizados consoante o sentido da pertinência dos momentos e dos contextos. Importa, pois, realçar a incongruência de se considerar a população cigana como uma unidade social homogénea, com traços concretos e distintivos que por si só seriam reveladores da sua etnicidade.

A abordagem de Humeau (1995) vem enriquecer o conhecimento sobre a itinerância dos ciganos, uma vez que assume a impossibilidade de se abordar esta questão sem se ter em conta a multiplicidade de contextos socio-espaciais que são atravessados pelas famílias. Humeau

designa de “polígonos de vida” os territórios onde se exerce a mobilidade cigana, ou seja, o conjunto de lugares que constituem o espaço percorrido por uma família ou grupo familiar num dado período de tempo. A configuração dos lugares percorridos não corresponde a uma figura geométrica fixa, pois não se tratam de itinerários regulares. Cada pólo do polígono corresponde a uma função no quadro de uma dinâmica familiar, pelo que as mudanças de lugares procuram assegurar uma dada função. A construção de polígonos de vida torna-se possível quando se apoia sobre vários pólos permitindo formas de instalação variáveis de acordo com as funções necessárias à vida das famílias.

Para este autor, a noção de “polígonos de vida” é pouco rígida e permite uma maior aproximação à realidade dos modos de vida da população cigana. Por um lado, dá conta da multiplicidade de transformações familiares e da sua possível evolução, possibilitando escapar a classificações demasiado redutoras ou pouco fidedignas (“famílias sedentarizadas”, itinerância regular ou fraca, “estradas ciganas”…). Por outro lado, permite uma maior compreensão por parte daqueles que percepcionam os comportamentos sócio-espaciais dos nómadas. Para o observador sedentário, a visibilidade dos comportamentos das famílias ciganas resume-se ao que estas deixam transparecer em cada um dos pólos. Desta forma, cada grupo familiar cigano apenas dá uma imagem fragmentada da realidade do seu polígono de vida. Esta realidade não se limita ao que se passa num determinado lugar, mas participa de uma dimensão geográfica mais ampla que implica o ajustamento permanente da relação entre grupos ciganos e uma diversidade de comunidades locais. A noção de “polígonos de vida” tem, ainda, a capacidade heurística de modular diferentes escalas de observação e de realizar um vai-e-vem entre as diversas inscrições locais das famílias (Humeau, 1995: 255-256).