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I. A MOBILIDADE ESPACIAL: CENTRALIDADE HISTÓRICA NOS ESTUDOS

4. A conceptualização dos modos de habitar em torno da mobilidade espacial

4.2. Mobilidades incorporadas, coercivas e hospitaleiras

4.2.3. Regimes de proximidade e distância

Entramos, assim, na forma como se processa o acolhimento de famílias ciganas ao nível dos contextos territoriais escolhidos para permanecer temporariamente ou para residir, o que implica abordar os fenómenos associados às dinâmicas urbanas e à fragmentação territorial, pois acolher a diversidade social e cultural remete necessariamente para as questões da gestão da ordem urbana.

As reflexões de Luca Pattaroni (2007) a este respeito são particularmente interessantes. O autor considera que colocar em discussão os processos de fragmentação implica ter presente a existência de diferentes processos dinâmicos de ordenamento das pessoas e das actividades que convergem para um princípio de unidade, para uma determinada ordem com vista à redução ou composição do pluralismo. A redução do pluralismo depende da existência de certos princípios/ “bens comuns” que fundam a legitimidade desta ordem. Compreender como as cidades dão lugar às pessoas nas suas diferenças e as ordenam, implica analisar a constituição destes bens e do seu impacto sobre o viver em conjunto. Pattaroni identifica, assim, as duas naturezas diferentes deste pluralismo: i) o “pluralismo horizontal da crítica”, em que sobressai diversas maneiras de conceber um mundo justo, mas onde um determinado modelo de justiça permite instituir uma ordem legítima entre as pessoas, já que se baseia sobre um princípio superior comum que permite compreender e avaliar entidades diversas para lhes atribuir um lugar reconhecido como legítimo; ii) o “pluralismo vertical dos regimes de envolvimento e a dimensão da experiência do mundo”, ou seja, as condições cognitivas e práticas que permitem certos tipos de comportamento e diferentes regimes de envolvimento. Partir desta dimensão torna possível, por um lado, apreender a experiência territorial e relacioná-la com a questão política da ordem urbana e, por outro, aprofundar a análise das dinâmicas dos conflitos territoriais pela inscrição de determinados valores no território.

Mas as formas que assume a redução ou composição do pluralismo não devem, no entanto, ser dissociadas da especificidade das dinâmicas urbanas ocidentais dos últimos anos. É, assim, relevante relembrar que o ajustamento estrutural das economias urbanas aliado à recomposição sócioprofissional das populações, à emergência de novos grupos sociais e à criação, por estes grupos, de novos quadros culturais de compreensão e formação da cidade em mudança fez com que certas políticas de intervenção na cidade, como a reutilização de espaços devolutos ou degradados e a reabilitação do edificado, aparecessem como verdadeiras oportunidades

lucrativas, já que determinados espaços passaram a estar disponíveis apresentando-se como localizações centrais estratégicas e economicamente acessíveis (Ferreira et al., 1997: 79). Estes processos de transformação da cidade existente deixam de se destinar apenas aos habitantes de um determinado bairro ou cidade, participando, sobretudo, num projecto mais alargado de promoção urbana e de novos estilos de vida, onde se evidencia a cidade como objecto estético, lugar de memória e de cariz internacional. Tenta criar-se um núcleo forte, dinâmico e visualmente atraente, capaz de captar novas actividades e populações (residentes e turistas).

Pode lançar-se como hipótese, tal como já salientaram Venturi (1994) e Sieber (1991), que a emergência de novos actores e a exigência de os envolver na gestão pública levou a pôr-se em causa os modelos e os objectivos precedentes das políticas urbanas, elaboradas "para o bem de todo o público". Como refere Pattaroni, o ordenamento do território, assente numa tradição liberal nos modelos de governação, passa a ser pensado para um utilizador particular dotado de competências que o permite envolver-se da maneira esperada. Ou seja, poder tomar um lugar na cidade pressupõe que um lugar lhe é destinado e, ao mesmo tempo, saiba estar como é necessário nesse lugar. Determinadas formas de apropriação dos espaços públicos podem assim traduzir uma ruptura da ordem e conduzir a uma certa fragmentação territorial, apelando-se a um trabalho de recomposição do pluralismo: recusa-se a ruptura (expulsão, punição, policiamento das coisas) ou estabelecem-se compromissos nas formas de organização que delimitam as boas maneiras de se envolver no território. A ordem urbana estaria, assim, fundada sobre a possibilidade de um duplo policiamento que controla a quantidade das pessoas e dos lugares (Pattaroni, 2007).

Uma breve passagem pelos conceitos de civilidade e sociabilidade poderá ajudar à compreensão daquilo que também está em jogo quando se fala de coexistência e se relaciona com as dinâmicas urbanas acima identificadas. Lévy considera relevante fazer a distinção destes dois conceitos, referindo que civilidade abarca a “competência simbólica mediadora da comunicação social e reguladora da sociabilidade” (Lévy, 1997:26). Trata-se, no fundo, dos diversos saber-fazer relativos aos comportamentos que modelam as interacções quotidianas em público (normas de conduta, regras de conveniência, formas de cortesia), mas também de um dever-fazer, ou seja, de uma ética que prescreve os comportamentos possíveis e desejáveis e os limites a observar de acordo com o código de civilidade (Lévy, 1997:24). A sociabilidade, por seu lado, provém da prática, e pode ser definida como “uma performance que corresponde à

execução de um código de civilidade, é uma actualização da competência pela execução de regras de conduta em determinada situação particular” (Lévy, 1997:24).

É possível, pois, afirmar que associado à especialização funcional do espaço se verificou um declínio dos “lugares de compromisso de civilidades”, já que o sentido da urbanidade se perde pela impossibilidade do encontro, conhecendo-se o Outro através de estereótipos32. Remy

apela, assim, à necessidade de se instaurar um regime complexo de distância-proximidade, de lugares de separação e de agregação, para a urbanidade traduzir uma relação de transacções sociais entre protagonistas com recursos e oportunidades desiguais (Remy, 1998: 173).

A inadequação entre os conceitos e a prática do planeamento urbano e o modo de ocupar e habitar o espaço por parte de algumas famílias ciganas parece ser, pois, uma marca das últimas décadas na maioria das cidades europeias. Lugares que eram tolerados, em ocasião de feiras, na proximidade de hospitais, tribunais ou prisões, estão cada vez mais atribuídos a funções específicas, sendo os ciganos “atirados” para localizações mais periféricas. De facto, como salienta Humeau, as dinâmicas espaciais da sociedade dominante não deixam grandes alternativas às populações ciganas. Por um lado, podem sobreviver salvaguardando a sua identidade através de uma inserção geográfica que conduz a uma invisibilidade social, embora autorize a expressão limitada de particularismos culturais e de modos de vida. Por outro lado, os ciganos podem permanecer em formas herdadas de uma mobilidade permanente de habitat, no entanto, o seu carácter funcional dificilmente encontra vias de realização e o recurso à mobilidade resume-se ao quadrado obrigatório dos lugares de estacionamento públicos (Humeau, 1995: 387).

Como referem Baptista e Pujadas aspira-se a reforçar a ideia de cidades hospitaleiras, de fazer das cidades espaços de hospitalidade para os visitantes, mas de uma hospitalidade selectiva vinculada ao consumo, “(...) que transforma o visitante abonado em alvo de uma hospitalidade ilimitada no circuito dos lugares turísticos e o residente desfavorecido num alvo das políticas policiais e sociais no circuito dos lugares de exclusão (Baptista e Pujadas, 2000: 301). Seria assim importante, como refere Anne Gotman, que a hospitalidade, na sua dimensão meramente temporal, se traduzisse no “conjunto de itinerários que é necessário reconstruir para permitir àquele que se desloca encontrar o seu destino, voltar a partir ou permanecer” (Gotman, 1997: 84).

32 Esta tem sido a constatação de vários autores, tais como Remy, 1998; Ferreira, 2000; Bassand et al., 2001; Hilly,

Mas a hospitalidade implicando partilha de espaço e reconhecimento de pluralismo cultural, trata-se de um exercício perturbador, custoso e cansativo que exige, por um lado, alguma organização e, por outro, o reconhecimento do hospedeiro “como alguém que traz qualquer coisa” e não apenas como alguém que interfere. Esta reciprocidade impõe, contudo, na maioria das situações, um trabalho de mediação, já que uma das formas modernas da hospitalidade é a passagem da reciprocidade à não reciprocidade, com consequências inevitáveis ao nível das relações estabelecidas. De facto, a hospitalidade unilateral é portadora de tensões e de ressentimentos quer daquele que recebe, quer do que é recebido. É este aspecto moderno da hospitalidade que conduz, segundo Olivier Schwartz (1997), à transposição desta problemática inter-individual para as instituições e para as entidades políticas, cabendo muitas vezes ao Estado a mediação daqueles que circulam num dado território e a introdução de determinados graus de liberdade consoante as normas. Existe, no entanto, um paradoxo ligado à temporalidade da hospitalidade pelo facto desta poder ser vista como um processo de passagem e de transição ou de longa duração, implicando a intervenção de dispositivos e regulamentações públicos com a inevitável mudança de significado da própria hospitalidade33.

Impõe-se, assim, uma reflexão sobre as estratégias espaciais de localização e o estabelecimento de regimes de proximidade e distância, pois este tipo de procedimentos ocorre a partir do momento em que é necessário nomear e qualificar as diferenças, os seus efeitos e de as controlar (Lussault, 2007). A tipologia analítica das identidades culturais proposta por António F. da Costa (2002) é a este propósito ilustrativa, pois para além de contemplar as “identidades experimentadas”34, considera também as “identidades designadas”, que se reportam a

construções discursivas de entidades colectivas e as “identidades tematizadas” como estratégias deliberadas e reflexivas de colocação pública de uma situação social de forma a atingir uma dinâmica de acção social. E é neste contexto que o espaço surge como fonte e instrumento de poder, pois as modalidades de controlo do seu uso são decisivas para fazer dele um meio de liberação/subordinação, de igualdade/diferenciação (Signorelli, 1996).

33 A reflexão em torno da noção de regimes de “hospitalidade” foi iniciada, há cerca de quinze anos, por Anne

Gottman no âmbito de um programa de investigação do Plan Urbanisme, Architecture et Urbanisme. Este Programa surgia após a aprovação de uma lei que pressuponha pôr em prática acções de mixité urbana e questionava a possibilidade de impor pela lei uma verdadeira miscigenação, assente no respeito pelo outro, se não existisse, a nenhum outro nível, um sentimento de hospitalidade capaz de sustentar a acção pública. Recorrendo à legislação francesa sobre o acolhimento dos “gens du voyage”, que prescreve aos municípios com mais de 5000 habitantes a obrigação de se equiparem com áreas de acolhimento, a autora ilustra a ambivalência da hospitalidade. A hospitalidade sendo um valor universal tende a ser preterido a favor do direito, menos aleatório e mais igualitário. A ambivalência da hospitalidade pública surge, assim, da necessidade simultânea de protecção do estrangeiro e da entidade que o acolhe e é neste sentido que os Estados e as entidades territoriais se reclamam do direito (Gottman, 1997, 2004, 2007).

34 Trata-se de representações cognitivas e sentimentos de pertença que um conjunto de pessoas partilha a partir das

Michel Agier é um dos autores que aborda as ideologias subjacentes às fragmentações urbanas (fontes da não-cidade, da inexistência de espaços de reencontro e de trocas), bem como as formas que assumem as respostas desencadeadas por aqueles que são colocados à distância ou à margem. Uma das causas avançadas da distância física e do fechamento territorial consiste no medo ao Outro. Nestes medos fundadores da não-cidade existe uma conjunção entre disposições vitais e determinações contextuais ou conjunturais que conduzem ao sentimento de uma ameaça que precede o estado do conhecimento do outro e pretende justificar atitudes que o colocam à distância (Agier, 1999: 84-88). O autor conclui que, em graus diversos, os cidadãos manifestam uma resistência à instauração de uma cidade fechada e que exclui – a não-cidade -, criada com ou sem raças, mas com uma diversidade de fronteiras, e onde a violência pode impedir a existência de espaços de reencontro e de trocas. No entanto, certas respostas permitem esbater as fronteiras mais rígidas e levantar a possibilidade da sua eliminação, o que permitiria, assim, às comunidades e identidades encontrarem o seu carácter relativo e inconstante e o seu desaparecimento seria o signo, não de uma exclusão ou violência, mas de uma abertura ao mundo dos outros (Agier, 1999: 90). No entanto, embora o espaço público possa ser um modo de aprendizagem de outras formas de sociabilidade e da própria diferença, não implica que o confronto com o Outro produza necessariamente um sentimento de conivência e reconhecimento. Tornando as diferenças palpáveis, o confronto pode conduzir a uma exacerbação dos preconceitos e a tensões conflituais.

Pensando na população cigana com fortes mobilidades espaciais dois fenómenos são de destacar: i) a instalação num dado território pressupõe a ocupação não convencional de um espaço para aí permanecer ou residir; ii) as mudanças de contexto tendem a ser mais frequentes, alterando-se as forças que agem sobre os actores. Na primeira situação, tal como considera Tarrius, o conhecimento e a experiência dos itinerários migratórios dá-lhes a capacidade de ignorar as múltiplas fronteiras do urbanismo local e de questionar determinados modelos de dominação onde legitimidade local e imobilidade residencial coincidem (Tarrius, 1992). Na segunda situação, se aquelas forças exigem dos indivíduos coisas que eles não podem dar, então, e seguindo a proposta de Lahire, existem três alternativas: i) continua-se a viver no mesmo contexto (adaptação mínima); ii) muda-se de contexto (fuga); iii) transforma- se radicalmente o contexto (reforma, revolução) (Lahire, 2003: 77). Também Agier refere a fuga como a manifestação de uma resposta de confronto por parte daquelas que são colocados à distância face à existência de fronteiras rígidas impostas entre os cidadãos. Mas a procura de soluções noutros lugares ou a perpetuação da viagem gera novas formas de urbanização e de inserção nas cidades de chegada (Agier, 1999: 87-88).

Este questionamento interroga a acessibilidade dos actores ao espaço, na medida em que as representações e construções sociais contemporâneas sobre o nomadismo avançam uma longa história de medos e preconceitos estabelecidos acerca dos ‘viajantes despojados’ e sobre a ameaça que estes representam relativamente à ordem moral e política (Kendall, 1997). De certa forma, é como se a mobilidade espacial – “inabitável e suspeita” – traduzisse uma recusa implícita de aceitação das regras do jogo. A sedentarização aparece como requisito fundamental, mas em territórios de outros, já que “os nómadas, tornados residentes, escapam ao efémero” (Provot, 1987, tradução livre).

A criação de estruturas territoriais específicas para acolher as populações itinerantes e o carácter muitas vezes obrigatório de se tornarem os únicos locais possíveis de permanência faz com que estas populações encaradas como subalternas se vejam obrigadas a submeter. Assier- Andrieu e Gotman interrogam-se se não será a hospitalidade feita desta assimetria de estatuto entre hospedeiro e hóspede. De facto, a identificação de um grupo enquanto procedimento administrativo de classificação social e cultural só é possível numa relação assimétrica; na medida em que “um dos traços característicos da cultura europeia é a associação sistemática entre identidade, identificação e território”, o sedentarismo é necessariamente uma posição hegemónica, representando os “sem território” uma posição subalterna (Assier-Andrieu e Gotman, 2003: 206).

Partilha-se com Provot que o problema não se resume apenas a um diferencial de poderes, pois o não cumprimento da permanência em áreas delimitadas para o efeito tende a fazer com que a ilegalidade do estacionamento traduza a ilegitimidade da presença (Provot, 1995), apelando-se ao seu controlo por parte de instituições de cariz disciplinar e a um governo de condutas, no sentido dado por Foucault, ou seja, o conjunto de técnicas que visam assegurar que a actividade dos homens participa na criação da utilidade pública (Foucault, 2009: 330). Aqui o espaço surge como um “recurso de valor” (Lussault, 2007), cotado numa bolsa de cariz social que é definida em função da percepção e das imagens sociais que dele se constrói (Freitas e Menezes, 1996: 98). Assim, as qualidades socialmente valorizadas de um espaço concorrem nos processos de diferenciação espacial.

Não se deve, pois, esquecer que existe uma legitimidade e um lugar atribuído às ‘distâncias’ e que nem sempre a separação espacial é sinónimo da exclusão, marginalização ou de isolamento por relação a uma rede de trocas. Em determinadas situações elas revelam-se mesmo uma condição de comunicação e de alargamento da zona de trocas e de cooperação.

Um dos significados da morfologia urbana é dar um suporte interaccional a este modo de coexistência entre entidades que não se misturam espacialmente, pelo menos em todos os aspectos da sua vida quotidiana (Remy, 1998:173). Também Agier questiona se o balanço permanente entre proximidade e distância não seria um dos fundamentos da cidadania e se a vida citadina não será mais estruturada pela permanente alternância entre conhecido e desconhecido (Agier, 1999: 55).

Apesar destas constatações, as distâncias sócioespaciais tendem a perdurar no modo de vida urbano enquanto alianças frágeis quer através daqueles que vêem nestas distâncias um meio de preservar uma especificidade ou um privilégio; quer através daqueles que as encaram como um meio de manter a sua exclusão e a sua fraqueza transaccional. Nesta última situação, os indivíduos face a situações mais precárias tendem a desenvolver estratégias de protecção e de sobrevivência, mas também atitudes predadoras no território dos outros, pois conscientes dos seus estigmas tendem a utilizá-los como recursos (Remy, 1998). Será neste sentido que San Roman refere que o êxito da sobrevivência dos ciganos como grupo étnico diferenciado provém de uma marginalidade renovada e original que se adapta de forma flexível e com precisão para evitar campos onde a competição frontal seria impossível. A autora lança, assim, a hipótese de que os mecanismos marginais dos ciganos sejam anteriores à sua entrada na Europa e que foram adaptados à situação europeia, uma vez que lhes é negada a permanência ou lhes é oferecida uma possibilidade de integração pior que a saída marginal (San Roman, 1986a: 194).

Trata-se, portanto, de admitir o carácter fundamental do poder simbólico na estruturação da percepção da realidade e, também, da própria realidade (Bourdieu, 1989). O reconhecimento da existência dos processos hegemónicos implica que a realidade social seja vista como o resultado de uma construção e reconstrução constante e intrinsecamente temporária. O equilíbrio da ordem social depende da gestão do eventual conflito entre os aspectos legitimados pelos processos hegemónicos e os elementos que constituem uma potencial ameaça à sua integridade. É neste sentido que Pina Cabral refere a coexistência de ‘aspectos diurnos’ e ‘nocturnos’ da vida social (Pina Cabral 2000: 875), cuja maior ou menor visibilidade é conferida através da operação destes processos. Assim, as pessoas, grupos ou práticas marginais são definidas pela distância a que se encontram de um centro legitimado e legitimador, construído pela operação do poder simbólico. Esta abordagem tem a vantagem de não se atribuir o papel exclusivo de vítima aos ciganos, enfatizando-se que a relação entre a marginalidade e a hegemonia é dialógica, ou seja, o confronto entre a expressão diurna dos

aspectos legitimados e visíveis e a expressão nocturna dos aspectos marginais pode ser visto como o elemento potencialmente criativo no processo de reconstrução da ordem social35.

O contributo de Pina Cabral assume toda a relevância no contexto desta pesquisa por permitir compreender como o funcionamento da hegemonia tende para a relevância do enfoque em determinados atributos da população cigana, como o nomadismo, ou para a adopção de determinadas estratégias face à manifestação da itinerância. O funcionamento da hegemonia leva, assim, “a uma focagem sobre certos aspectos da vida social (pessoas, objectos, processos e significados) e à repressão de outros. Portanto, o maior ou menor peso destes aspectos no interior da vida social e a sua relativa centralidade acabam por ser definidos em termos da sua relação com a legitimidade (…) a dominação simbólico, por conseguinte, nega alguns significados, dificulta alguns processos, torna alguns objectos invisíveis, silencia certas pessoas” (idem: 875).

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Ao longo deste capítulo procurou-se problematizar de que modo as dinâmicas de mobilidade desencadeadas pela população cigana apelam a um alargamento dos referenciais teóricos que permitam enriquecer a relação entre identidades e territórios. Neste sentido, admitir a mobilidade espacial como um recurso social implicou aprofundar as suas fontes, os factores que facilitam ou condicionam a sua manifestação e os efeitos que tendem a produzir. Assim, abordaram-se, por um lado, não só as lógicas de acção que presidem ao movimento mas, sobretudo, as competências que são exigidas para se manifestar o movimento, a acessibilidade e a apropriação de determinados territórios. Por outro lado, confrontaram-se as dinâmicas de organização sócioespacial dos territórios de acolhimento com os princípios subjacentes à ordem urbana na redução e/ou composição do pluralismo, mas também como os próprios actores representam o território e instauram um regime complexo de distâncias e proximidades nas suas relações intra e inter-étnicas e na configuração dos seus territórios de referência. Por fim, questionou-se como a organização reticular da espacialidade e do sistema de