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ARGUMENTAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

No documento TEORIAS DO DISCURSO E ENSINO (páginas 78-105)

Carmem Luci da Costa Silva* clcostasilva@hotmail.com

1 Considerações iniciais

Neste texto, pretendemos mostrar como as questões defendidas pelos autores da perspectiva da Teoria da Argumentação na Língua (Oswald Ducrot e colaboradores) estão presentes nos diferentes pressupostos preconizados pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Com isso, buscamos, juntamente com os professores de língua materna de ensino fundamental e de ensino médio, um maior entendimento dos aspectos teóricos que subjazem às teses contidas nos PCNs. Para tanto, nosso percurso apresenta duas configurações, quais sejam: a primeira, que pontua aspectos teórico-metodológicos sobre o ensino de língua materna produzidos pelos PCNs, e a segunda que apresenta questões teóricas acerca do funcionamento argumentativo da língua produzido pela Teoria da Argumentação na Língua. Essas duas configurações serão relacionadas, levando-se em conta os seguintes aspectos: (1) o tratamento da língua em uso e (2) a consideração do funcionamento argumentativo da língua.

2 Contextualizando os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)

Quando as pesquisas produzidas por uma linguística centrada no uso da língua começam a proliferar após a década de 1980 no Brasil, novas reflexões surgem no cenário do ensino de língua materna, contendo críticas acerca da sua finalidade e dos conteúdos selecionados para a aprendizagem. Entre as críticas mais frequentes ao ensino de língua portuguesa, dito tradicional, destacavam-se: a desconsideração de atividades de uso da língua; o uso do texto como pretexto para ensinar valores morais e para o tratamento de aspectos gramaticais; a

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Professora de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da UFRGS e Doutora em Letras – Estudos da Linguagem pelo PPG- Letras/UFRGS.

excessiva valorização da norma linguística, através de regras de exceção; ensino descontextualizado, com ênfase na metalinguagem, normalmente vinculado à memorização de terminologias e associado à identificação de fragmentos em frases soltas; e a apresentação de uma teoria gramatical, sem a devida reflexão do funcionamento da língua em seus vários níveis (fonológico, morfológico, sintático, semântico e pragmático).

A partir disso, produziu-se um pressuposto consensual acerca do ensino de língua portuguesa de que as práticas precisavam partir do uso (linguagem) para permitir a conquista de novas habilidades linguísticas (metalinguagem). É justamente, levando em conta tal pressuposto, que os Parâmetros Curriculares Nacionais defendem como objetivo do ensino de língua materna o desenvolvimento da competência discursiva do aluno. Por isso, nessa nova diretriz, o texto, em toda a sua diversidade de gêneros, é considerado o objeto desse ensino.

Além de se partir da língua em uso, os Parâmetros Curriculares Nacionais consideram a importância de se tomar a língua como objeto de reflexão, a fim de possibilitar ao aluno produzir categorias explicativas de seu funcionamento, visto ser

na prática de reflexão sobre a língua e a linguagem que pode se dar a construção de instrumentos que permitirão ao sujeito o desenvolvimento da competência discursiva para falar, escutar, ler e escrever nas diversas situações de interação.

Em decorrência disso, os conteúdos de Língua Portuguesa articulam-se em dois eixos básicos: uso da língua oral e escrita, e a reflexão sobre a língua e a linguagem...(PCNs terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental, p. 34)

Dessa maneira, nos Parâmetros Curriculares de Ensino Fundamental (PCNs EF), os conteúdos estão divididos em dois eixos: o do uso e o da reflexão. No eixo do uso, a língua é vista a partir do processo de interlocução, com ênfase nos seguintes trabalhos: (1) na historicidade da linguagem e da língua; (2) na constituição do contexto de produção, representações do mundo e interações sociais (interlocutores, finalidade da interação, lugar e momento de produção); (3) nas implicações do contexto de produção na organização dos discursos: restrições de conteúdo e de forma decorrentes das escolhas de gêneros e

Teorias do Discurso e Ensino 79 suportes; (4) nas implicações do contexto de produção no processo de significação (representações dos interlocutores no processo de construção de sentidos, relações intertextuais e articulação entre texto e contexto no processo de compreensão).

No eixo reflexão, os conteúdos desenvolvidos sobre os do eixo uso, referem-se à construção de instrumentos para a análise e funcionamento da linguagem em situações de interlocução, privilegiando alguns aspectos linguísticos que possibilitam a ampliação da competência discursiva do sujeito: (1) variação linguística: modalidades, variedades e registros; (2) organização estrutural dos enunciados; (3) léxico e redes semânticas; (4) processos de construção de significação e (4) modos de organização dos discursos.

Já, no ensino médio, pressupõe-se que os elementos básicos relativos ao funcionamento da língua portuguesa foram apreendidos no ensino fundamental, cabendo a esse nível oferecer aos estudantes oportunidades de compreensão mais aguçada dos mecanismos que regulam a língua. Levando em conta as competências e as habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares para o Ensino Médio (PCNs EM), chegamos aos seguintes objetivos defendidos para esse nível de ensino: desenvolvimento do potencial crítico do aluno (percepção das múltiplas possibilidades de expressão linguística) e sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos de nossa cultura. Nesse sentido, os PCNs+EM, ao dividirem as competências básicas em três blocos - Representação e comunicação, Investigação e compreensão e Contextualização sociocultural -, retomam as competências de uso e de reflexão já expressas nos PCNs EF. Essas competências básicas apresentam, em sua transversalidade, a aquisição e o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical como os grandes pilares do ensino de língua materna no nível médio. A questão fundamental para o ensino de Língua Portuguesa na etapa final de escolaridade básica desloca-se, portanto, dos conteúdos a serem abordados para a aquisição de competências e de habilidades.

No primeiro bloco das competências gerais a serem desenvolvidas no ensino médio – o da Representação e Comunicação, temos os seguintes conceitos estruturantes: (1) linguagens (verbal, não-verbal e digital); (2) signo e símbolo; (3) denotação e conotação; (4) gramática; (5) texto; (6) interlocução,

significação, dialogismo e (7) protagonismo. As habilidades relacionadas a esses conhecimentos contemplam a utilização da linguagem nos três níveis de competência (interativa, gramatical e textual), através da leitura e da interpretação, da inserção do aluno como protagonista na produção e na recepção de textos e da aplicação das tecnologias de comunicação e da informação em situações relevantes. Considerando a questão que nos interessa aqui – a argumentação –, enfatizaremos esse primeiro bloco, com os conceitos, por um lado, de gramática e de texto, por outro lado, de interlocução, significação e dialogismo.

O conceito de gramática está desenvolvido da seguinte maneira:

refere-se a um conjunto de regras que sustentam o sistema de qualquer língua. Na fala, fazemos uso de um conhecimento lingüístico internalizado, que independe de aprendizagem escolarizada e que resulta na oralidade. Na escrita, necessitamos de outros subsídios lingüísticos, fornecidos pelo letramento (conjunto de práticas que denotam a capacidade de uso de diferentes tipos de material escrito).

O domínio desse conceito é importante em quase todas as situações em que se trabalha com a língua. Para ficar em alguns exemplos:

• Na fala ou na escrita, é fundamental considerar a situação de produção dos discursos que, afinal, são possibilitados pelo conhecimento gramatical (morfológico, sintático, semântico) de cada pessoa.

• Compreender que o aceitável na linguagem coloquial pode ser considerado um desvio na linguagem padrão ou norma culta. • Abordar os diversos graus de formalidade das situações de interação.

• Compreender as especificidades das modalidades oral e escrita da língua (PCNs+EM, p. 60).

Nessa concepção de gramática, temos a presença das perspectivas estruturais, gerativas e sociolinguísticas para dar conta da análise do funcionamento sistemático da língua em suas diferentes variedades. Já a noção de texto vincula–se aos postulados teóricos do conceito de gênero de discurso da perspectiva enunciativa bakhtiniana. De fato, o texto é concebido como um todo significativo (verbal ou não-verbal), com diferentes feições, conforme a abordagem temática, a estrutura composicional e os traços estilísticos do autor. A partir desse conceito, os PCNs+EM defendem que a unidade de ensino seja

Teorias do Discurso e Ensino 81 composta pelo texto, que pode ser abordado a partir de dois pontos de vista: pela consideração dos diversos aspectos implicados em sua estruturação, o que envolve as escolhas feitas pelo autor das possibilidades oferecidas pela língua, e pela sua relação intertextual, através do seu diálogo com outros textos.

Desse modo, as noções de interlocução, significação e dialogismo são vinculadas à produção de enunciados pertinentes à situação de uso, tanto na fala quanto na escrita. Segundo tal concepção, as diversas trocas sociais possibilitam que os falantes de uma língua produzam enunciados de acordo com certas intenções e dentro de determinadas condições, o que origina diferentes efeitos de sentido. É, nessa linha, que encontramos a seguinte tese nos PCNs+EM, p. 61: “Quando se dialoga com alguém ou se lê um texto, é pela interlocução que se constroem os sentidos; também é nela que os interlocutores se constituem e são constituídos”.

Assim, os três níveis de competência (interativa, gramatical e textual) são entendidos como pressupostos necessários à constituição do ser falante e do usuário de uma língua, através do desenvolvimento das seguintes habilidades: da utilização da linguagem na interação com pessoas e situações, envolvendo o desenvolvimento da argumentação oral por meio de gêneros e o domínio progressivo das situações de interlocução; do conhecimento das articulações que regem o sistema linuístico, em atividades de textualização, como conexão, coesão nominal, coesão verbal e mecanismos enunciativos; e da leitura plena com a produção de sentidos de todos os aspectos significativos, implicando a caracterização dos diversos gêneros e seus mecanismos de articulação, leitura de imagens, percepção das sequências e dos tipos no interior dos gêneros e paráfrase oral, com substituição de elementos coesivos.

Quanto ao ler e ao interpretar, os PCNs+EM tratam do ser leitor, pressupondo os domínios do código (verbal ou não) e de suas convenções, dos mecanismos de articulação que constituem o todo significativo e do contexto em que se insere esse todo. Dessa maneira, a competência de ler e de interpretar pode desenvolver-se com atividades relacionadas à antecipação e à inferência, à exploração dos elementos da narrativa, ao tratamento dos efeitos de sentido e da autoria, através da análise das escolhas e do estilo do autor.

A partir dos três eixos sugeridos para o trabalho com a Língua Portuguesa no ensino médio – centrados no desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical, há nos PCNs+EM critérios para a seleção dos conteúdos e das competências e habilidades específicas. Com relação à competência interativa, é enfatizado o fato de que é, através da língua materna, que o indivíduo participa das trocas sociais nas diversas situações comunicativas, sendo a escola a mediadora da aquisição dessa competência. E aqui precisamente o conceito de interlocução aparece:

Pela língua, somos capazes de agir e fazer reagir: quando nos apropriamos dela – instaurando um “eu” que dialoga com um “outro” – buscamos atingir certas intencionalidades, determinadas em grande medida pelo lugar de que falamos, e construir sentidos que se completam na própria situação de interlocução (PCNs+EM, p. 74).

Por isso, para o desenvolvimento da competência interativa, o ensino de língua materna, conforme os PCNs+EM, deve levar em conta alguns fatores: as variedades linguísticas da língua, a adequação das variedades às situações de interlocução – interlocutores, intenções, espaço e tempo, o questionamento dos rótulos de certo e errado, avaliação da adequação das variedades linguísticas às circunstâncias comunicativas e o tratamento da norma culta como variedade de prestígio, mas não como a privilegiada no processo de conhecimento linguístico do aluno.

Para o desenvolvimento da competência interativa, há nos PCNs+EM procedimentos sugeridos que enfatizam as situações comunicativas e os elementos ligados ao ato enunciativo: onde, para quem, como e com que intenções. Dentro disso, o trabalho com os papéis de falante e de ouvinte torna- se importante para o tratamento do saber ouvir, pois, através da escuta, o sentido da fala do outro pode se legitimar e ser avaliado.

Para o desenvolvimento da competência textual, há nos PCNs+EM a definição de texto como unidade linguística concreta em uma situação interativa específica, a partir da qual se constitui como unidade de sentido. É o texto escrito que é enfatizado tanto do ponto de vista da leitura quanto da produção. O tratamento conferido à competência textual baseia-se nos trabalhos da

Teorias do Discurso e Ensino 83 Linguística Textual de Ingedore Koch e de Luiz Travaglia, tendo subjacente o constructo teórico enunciativo bakhtiniano de gêneros do discurso, já que há a consideração, para abordagem do texto, do tema, da estrutura composicional e das escolhas operadas na língua pelo autor (estilo).

Ao trazer os procedimentos para o desenvolvimento da competência textual, os PCNs+EM listam as maiores dificuldades dos estudantes na leitura de textos, quais sejam: não conhecer o significado de algumas palavras; não saber o que o texto quer dizer (sentido global); enxergar a parte, não o todo; não saber o que está pressuposto e não saber compreender efetivamente o lido. Para superar tais dificuldades de compreensão, interpretação e valoração de um texto, as sugestões de procedimentos gerais de leitura são: buscar apoio no significado de palavras conhecidas e inferir o das desconhecidas; estabelecer relações entre os significados das palavras, reconhecendo o novo e o dado nas proposições para conectá-las entre si; construir um significado global, a partir do entendimento da função das partes do texto; e organizar as ideias globais num esquema coerente.

Tendo em vista que, na produção textual, o aluno necessita mobilizar uma série de recursos, relacionados às competências interativa e gramatical, torna-se relevante o desenvolvimento das seguintes habilidades: (1) utilizar relações constituídas em vários tipos, de acordo com o seu projeto de texto (tese e argumentos, causa e consequência, fato e opinião, anterioridade e posterioridade, problema e solução, conflito e resolução, definição e exemplo, tópico e divisão, comparação, oposição e progressão argumentativa); (2) relacionar adequadamente, no texto dissertativo (expositivo ou argumentativo), a seleção e a ordenação dos argumentos com a tese; (3) identificar, no texto argumentativo, o interlocutor e o assunto sobre o qual se posiciona para estabelecer relações; (4) utilizar diferentes recursos resultantes de operações linguísticas – escolha, ordenação, expansão, transformação, encaixamento, inversão e apagamento –, considerando as condições de produção.

No que diz respeito à competência gramatical, o ensino de gramática é visto como um dos mecanismos para a implementação das competências interativa e textual, ou seja, é tratado como um meio para um fim. O desenvolvimento da competência gramatical relacionado ao da textual pode se dar através dos seguintes procedimentos: exploração de textos de diferentes

gêneros quanto ao tratamento temático e aos recursos formais utilizados pelo autor; estabelecimento de relações entre partes de um texto a partir da repetição e da substituição de um termo; estabelecimento de relação entre a estratégia argumentativa do autor e os recursos coesivos e argumentativos escolhidos; e análise das relações sintático-semânticas em segmentos do texto (gradação, disjunção, explicação, causalidade, conclusão, comparação, contraposição, exemplificação, retificação e explicitação). Para o tratamento da competência gramatical, novamente vemos a influência da Sociolinguística Variacionista e da Linguística Textual (aspectos coesivos).

Quanto à observação dos recursos expressivos utilizados pelo autor decorrentes das escolhas dos elementos da língua, há, nos PCNs+EM, sugestões de procedimentos de leitura intrinsecamente ligados aos mecanismos gramaticais, tais como o tratamento dos efeitos de sentido decorrentes do uso de pontuação e a verificação do uso dos recursos lexicais e sintáticos em função da estratégia argumentativa do autor. Aqui a exploração das escolhas gramaticais do autor busca vincular o uso das formas às suas estratégias argumentativas e aos efeitos de sentido que pretende produzir na interlocução. Desse modo, a gramática é vista como o que possibilita um modo de dizer, que não se limita apenas à forma, mas à forma como produtora de sentido.

Assim como nos PCNs EF uso e reflexão formam os eixos norteadores do ensino de língua portuguesa de modo integrado, as diretrizes dos PCNs EM preveêm o desenvolvimento das competências interativa, textual e gramatical, não de forma estanque, mas simultânea, pois cada competência prescinde das outras.

O percurso feito permite-nos sintetizar as principais reflexões sobre o ensino de língua portuguesa no ensino fundamental e no ensino médio desenvolvidas no interior dos PCNs. Do ponto de vista metodológico, os PCNs assumem uma visão de ensino-aprendizagem centrada na língua em uso, concebendo o texto como elemento central da unidade de ensino. Por isso, o texto, seja na produção, seja na leitura, é concebido em seu aspecto estrutural, através da exploração dos elementos recorrentes e relacionais (coesão) e, em seu aspecto enunciativo, a partir da instanciação dos interlocutores e da situação de enunciação (o aqui e o agora). A questão gramatical é vista como um meio

Teorias do Discurso e Ensino 85 para o desenvolvimento das competências interativa e textual, estando a serviço das estratégias argumentativas do autor, devendo, desse modo, ser explorada na leitura e na produção de texto. Assim, percebemos uma ênfase no tratamento do nível semântico da língua, a partir do trabalho com os efeitos de sentido produzidos na interlocução pelos usos lexicais e pela organização sintática.

Tendo em vista que os PCNs, ao operarem a transposição de questões teóricas advindas da Linguística ao Ensino de Língua Portuguesa, recorrem a uma diversidade de teorias, o que consideramos salutar em termos de ensino, tentaremos a seguir trazer as contribuições teóricas da Semântica Argumentativa sobre o uso e o funcionamento da língua, concebendo-a também como uma proposta teórica possível de ser aplicada ao ensino de língua.

3 O funcionamento enunciativo-argumentativo da língua: aspectos teóricos

A menção à perspectiva enunciativa de língua, como já vimos, é atestada nos PCNs do ensino fundamental e do ensino médio. No entanto, como lembra Flores (2001), existe uma diversidade teórica que permite falar em mais de uma teoria da enunciação. Por isso, o autor defende a existência de uma Linguística da Enunciação, abrigando as diferentes teorias enunciativas. De fato, a enunciação, embora concebida de forma diversa por diferentes autores, entre os quais podemos citar Bally, Jakobson, Benveniste, Bakhtin, Ducrot, Authier-Revuz, parece ter, nessas várias abordagens, as seguintes similaridades: 1) o estruturalismo saussuriano como condição para elaboração de uma reflexão particular; 2) a língua em uso, com a verificação das marcas que trazem as representações do sujeito que enuncia nesse uso e 3) a observação dos fenômenos de diferentes naturezas (morfológica, sintática, etc.) pelo ponto de vista do sentido.

Ducrot, o precursor da Teoria da Argumentação na Língua, procura inserir a sua descrição semântica do sentido no quadro estruturalista saussuriano e no campo da Linguística da Enunciação. Nesse sentido, é importante evidenciarmos a concepção de enunciação desse teórico, articulando-a com a sua concepção de argumentação. Em vários momentos, o autor enfatiza não conceber a

enunciação como um fato empírico, ou seja, como uma atividade exercida por um ser humano que produz certo enunciado influenciado por determinadas condições ou forças internas ou externas. A enunciação sob esse ponto de vista é um processo de produção, entretanto Ducrot (1984/entrevista à revista Punto de vista) salienta que seu trabalho toma a enunciação de outro modo, pois para ele

a enunciação é somente o simples acontecimento constituído pela aparição do enunciado, o sentido de um enunciado é o que o enunciado diz de sua enunciação, porém a enunciação vista não como processo de produção e sim como acontecimento (...) me interessa o sentido do enunciado, ou seja, o que se diz no enunciado sobre a enunciação. (...) O que eu quero dizer é que o sentido de um enunciado refere a sua enunciação, apresentando indicações sobre o fato de sua aparição, sobre o valor desta aparição (p. 24).

Dessa forma, temos que a enunciação é o acontecimento que dá vida ao produto, concebido como enunciado. O interesse de Ducrot está justamente nas indicações fornecidas pelo enunciado que trazem o acontecimento enunciativo. Nesse sentido, as marcas da enunciação no enunciado, por ele estudadas, têm a especificidade de remeterem à instância em que tais enunciados são produzidos, fazendo aparecer a posição do locutor, enquanto responsável por esse acontecimento.

A reflexão contida na Teoria da Argumentação na Língua embora enfatize os fenômenos da língua enquanto sistema abstrato, procura ir além, visto os fenômenos da língua também pertencerem à fala na medida em que o uso passa a lhes dar existência. A dicotomia língua/fala da linguística saussuriana é operacionalizada no quadro teórico de Ducrot através da distinção frase/enunciado. Para dar conta do tratamento do sentido no enunciado, enquanto produto da enunciação, Ducrot serve-se da noção saussuriana de valor, adaptando-a ao seu quadro teórico para abarcar as noções de significação, valor semântico da frase (entidade abstrata) e sentido, valor semântico do

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