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Argumentação sobre a construção jurídico-dogmática de um

3. A missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito

3.2. Argumentação sobre a construção jurídico-dogmática de um

O reconhecimento da necessidade de uma reformulação do sistema jurídico-dogmático penal brasileiro, com a adoção de uma modalidade de tipos abertos, passa pela por uma indispensável identificação do significado

deste novo conceito jurídico, fruto do pensamento finalista de Hans Welzel57.

Seguindo as diretrizes construtivas de um sistema dogmático da

teoria do delito, eleitos os parâmetros de Jesús Maria Silva Sanchez58, esta

organização exigiria três fases de evolução.

Em um primeiro momento, ou primeira fase, seriam eleitas as premissas valorativas que serviriam de orientação ao sistema, bem como elaborado o conteúdo de todas as categorias básicas do mesmo. Com base nestas premissas, descartando-se a possibilidade de uma construção tão somente a partir de leis ou de estruturas lógico-objetivas, por exemplo, teríamos a elaboração de um sistema penal tomando-se por base a discussão sobre os fins da pena, a qual seria eleita como critério de referência para o próprio sistema.

Na hipótese de um sistema aberto, este primeiro nível exigiria uma eleição de premissas valorativas, que serviriam de base para a construção do sistema, possibilitando ao jurista operar em um panorama sem controle excessivamente rígido, que poderia ser limitado ou, melhor dizendo, direcionado, pelo conjunto de postulados político-criminais eleitos pela Constituição, sem

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WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal – Uma introdução à doutrina da ação finalista, tradução, apresentação e notas de Luiz Regis Prado, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

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SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación al Derecho Penal Contemporâneo, Barcelona: Jose Maria Bosch Editor S.A., 1992, p. 172 e ss.

valores absolutos, mas com referências básicas, dentre as quais poderíamos

destacar os direitos humanos fundamentais59.

Neste primeiro ponto, ter-se-ia ampla liberdade na eleição de premissas, com tomada de valores sem referência político-criminal direta, mas direcionados a atender aos fins eleitos para o Direito Penal, considerando que as categorias de um sistema dogmático do delito, seriam instrumentos para realização destes fins.

Um segundo nível passaria pela construção de conceitos e “categorias de abstração média”, representadas pelo erro e o dolo, pela participação e a autoria, pela culpa e o dolo, pelas excludentes e o dolo, dentre outras, assim definidas como uma análise lingüística (semântica e gramatical), de preceitos legais.

E, por fim, um terceiro nível, sustentado pelas bases estabelecidas nos dois níveis anteriores, definido este pela fundamentação na adoção de soluções relacionadas a conceitos e estruturas problemáticas, com argumentos de coerência interna, baseados em um novo sistema dogmático aplicado aos tipos penais, e as conseqüências intra-sistemáticas de determinado princípio orientador deste sistema no caso em concreto.

Em fim, teríamos um sistema orientado pelos fins a que se destina o Direito Penal, concretizado através de premissas valorativas que, transmitidas a enunciados penais estabelecidos por categorias, através de uma denominada

“derivação razoável”,60 consistente na compatibilidade destes enunciados com

valorações correspondentes estabelecidas no primeiro nível construtivo,

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Esta observação se faz com consciência do perigo da eleição de conceitos (princípios) absolutos ou imutáveis, talvez até de caráter utilitarista-preventivo. Tal eleição, todavia, sempre exigirá um questionamento de legalidade e legitimidade, sujeito à desconsideração de conceitos rígidos ou radicais que violem as diretrizes do Estado Democrático de Direito.

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atribuiria a determinada categoria congregadora de enunciados uma concepção valorativa.

Poderíamos resumir, segundo esta posição argumentativa61,

respeitada a complexidade do tema não esgotado neste momento, bem como outras possíveis alternativas de construção lógico-jurídica, que:

1. Teríamos um primeiro controle decorrente de uma análise sistemática dos preceitos legais que atingem um determinado conceito, levando- se em conta uma interpretação segundo a Constituição, que seria um ponto inicial para várias soluções possíveis, sem incidência concreta em níveis mais específicos ou mais restritos, não havendo uma argumentação direta dela sobre os níveis inferiores supramencionados;

2. Um controle sobre os limites ontológicos de adoção de premissas valorativas do sistema definidas como referência, em conformidade com a realidade em análise, proporcionando a construção sistemática de acordo com as investigações empíricas em curso;

3. Também, e agora, um uso correto da linguagem na definição das regras de controle, que possam atender satisfatoriamente às necessidades decorrentes das conseqüências extra-sistemáticas que a política-criminal possa produzir;

4. A coerência interna de uma determinada solução adotada dentre as existentes, de forma generalizada, no sistema dogmático construído;

5. E, por fim, um último ponto de controle, representado pelas soluções ou conseqüências político criminais intra-sistemáticas, decorrentes do enunciado adotado em relação a outros princípios ou marcos orientadores genéricos, proporcionando uma coerência interna entre o sistema dogmático criado e as conseqüências que este mesmo sistema produz.

Apesar desta proposta, é importante ressaltar que, qualquer que seja a opção construtiva adotada para um sistema aberto, a coerência sistemática, ou seja, a eleição de um critério solucionador ou de conseqüências, nunca é definitiva, devendo sempre ser considerada a possibilidade de ocorrer uma necessária modificação do próprio sistema, para sanar uma imperfeição nele existente ou criada a partir de uma nova realidade social, modificando-o para adaptá-lo satisfatoriamente à solução dos conflitos postos em questionamento.

Assim teríamos sempre uma categoria valorativa que integra o sistema em análise, concretizando-se com a definição de conflitos que, proporcionando uma abertura do sistema, com a concepção ou o acolhimento de novos conceitos, possibilitaria a modificação daqueles anteriormente adotados, o que não impediria a ciência jurídico-penal de acompanhar a evolução da

sociedade.62

Em definitivo surge uma modalidade mais adequada de legitimar a existência do Direito Penal, como também de proporcionar a consecução dos fins aos quais, em tese, este se destina.

Evidentemente que esta oposição argumentativa não esgota a matéria, nem tão pouco atende a todas as questões envolvendo a criação de um sistema valorativo. A discussão que se pretende estabelecer, na verdade, justifica-se como mais uma preliminar para a compreensão de um Direito Penal que vem fundamentado muito mais nos princípios orientadores do Estado Democrático de Direito, do que na própria norma infraconstitucional, ora superada em vários termos com a nova realidade social que diariamente se opera. Ademais, saliente-se, a própria construção de tipos penais abertos, neutros, sujeitos à atribuição valorativa, definem a real necessidade de uma

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SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximación..., p. 176 e 177.

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interpretação socialmente contextualizada, onde são analisados os elementos de fato realizados dentro de um determinado contexto social, para só então tornar possível uma valoração dos mesmos segundo o direito, em especial quanto a uma norma proibitiva “incompleta” – o tipo penal aberto - que acaba por ser

perfeita através de um “juízo axiológico autônomo”63, que deve ser produzido

pelo julgador.

Assim, para a visualização do novo sentido delineado para o Direito Penal e sua forma de execução, em especial quanto à proteção de bens jurídicos supra-individuais ou universais, é importante ressaltar que a adoção e a expansão de conceitos orientadores é indispensável à concretização de uma plena eficácia na sociedade atual. E isto um sistema aberto proporciona.

Em sua concepção como estudo dogmático jurídico penal, o

sistema aberto acaba por interagir com os demais ramos da ciência64, assumindo

fundamentos filosóficos e sociológicos, além da lingüística, lógica e psicologia, dentre outros, em uma interdisciplinaridade jurídica que busca atender às diversidades valorativas regionais de um país continental, sem mais aceitar a

aplicação de um conteúdo “semântico apriorístico, universal e global”65.

Como relaciona Antonio Luis Chaves Camargo66, esta proposta de

sistema dinâmico e evolutivo exige do intérprete, dentre outras coisas, que além da interpretação gramatical, histórica ou jurisprudencial, atendendo à finalidade criadora do sistema, preencha espaços, lacunas, deixadas voluntariamente pelo legislador, através de valores diversos, estabelecidos cada qual no contexto social em que se operou o fato que será objeto de análise, adequando os termos da lei às situações para as quais se busca a reprovação, podendo chegar a

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JAKOBS, Günter. Derecho Penal – Parte general; fundamentos y teoria de la imputación. Tradução Joaquim Cuello Contreras, José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 196 e ss.

64

CAMARGO, Antonio Luis Chaves. Sistema de Penas... , p. 171.

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aplicações proporcionais mais adequadas de uma pena ou, até mesmo, a uma descriminalização de condutas, quando consideradas irrelevantes para determinado grupo social. Tal posição retira o interprete de uma inadequada submissão às normas genéricas, obrigando-o a satisfazer, com a realidade social atual, a generalidade e abstração das normas jurídicas.

Não são abandonados os critérios dogmáticos legais de referência, mas, na verdade, são estes adequados à análise da relevância penal dos fatos investigados e submetidos à aplicação da norma.

Temos, então, uma atualização constante da norma, com a adaptação de referenciais dogmáticos a categorias valorativas sempre em evolução, permitindo assim que novos conceitos sejam estabelecidos a partir de soluções de conflitos sociais, com a aplicação de conhecimentos científicos decorrentes de outros ramos do saber, estabelecendo-se princípios de política

criminal no momento da norma penal ao caso em concreto67.

3.3. O bem jurídico como limite ao direito de punir do Estado