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Expectativa social e bens jurídicos universais

3. Bens jurídicos universais e tutela penal

3.2. Expectativa social e bens jurídicos universais

Para a identificação de uma lesão ou ameaça de lesão a um bem jurídico supra-individual não se faz imprescindível que realidade social, na qual está inserido, simplesmente desapareça.

O bem jurídico com dimensões coletivas ou difusas deve estar sujeito a diferenciações segundo elementos individuais que possam manifestar concretamente sua realização.

A proteção jurídica e a própria inserção legal desta modalidade de bens universais, ou seja, a legitimidade sobre a existência de proteção penal a uma modalidade supra-individual de bens, seguindo a evolução sistemática estabelecida neste estudo, é reflexo, evidentemente, dos preceitos desenvolvidos no modelo de Estado de Direito Liberal, preocupado em preservar a ordem social através de garantias formais de convivência em direção a um Estado Social que

198

aspirava manter esta convivência pacificamente, através da garantia a todos os

cidadãos de pressupostos materiais mínimos de bem estar199.

Todavia, em regra as formulações legais de tutela de bens jurídicos universais, são apoiadas em estruturas típicas de perigo, extremamente genéricas e de fácil corrupção, decorrentes de uma condução legislativa destinada a atender desejos sociais de momento, o clamor público, com manifestações meramente simbólicas de Direito Penal, distantes da necessidade e

da produção de soluções efetivas200.

Um Direito Penal de fundo garantista, destinado a limitar a aceitação desta modalidade de bens jurídico-penais apenas àqueles que possam ser identificados segundo uma conotação individual, conduz a uma neutralização de um fracassado conjunto de novas elaborações legislativas, destinadas muito mais às necessidades da manutenção da sociedade democrática do que a atender aos integrantes desta mesma comunidade.

As construções conceituais pouco precisas, que compõe os tipos penais identificadores de bens universais, sob a alusão de uma sociedade de risco, conduz muito mais a um Direito Penal expansivo, com imposição de penas e repressão, em desrespeito aos princípios modernos da estrutura de persecução penal e intervenção estatal, que se pretende manter e desenvolver.

A tarefa sempre presente de proporcionar uma colaboração e integração das ciências sociais, em especial a sociologia e a política criminal, conduz a uma formulação de bens jurídicos universais que sejam compatíveis com uma adequada descrição empírica das realidades sociais, merecedoras de

199

DÍEZ RIPOLLÉS, José Luiz. La contextualización del bien jurídico protegido en un Derecho Penal garantista..., p. 452.

200

HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona, n° 1, 1991, pp. 23/36.

tutela penal, em uma verdadeira realização de uma das funções empíricas do Direito Penal, segundo uma dogmática conceitual aceitável e de termos precisos.

Busca-se a elaboração de concretos conceitos de lesão material, que possam indicar a danosidade social e individual que possa decorrer de uma violação de determinado bem jurídico supra-individual, substituindo estruturas típicas de perigo, muito generalizadas em relação a identificação de seu objeto, com o fim de garantir uma eficácia no momento de aplicação da lei ao caso em concreto.

De outro lado, a superação da natureza secundária, ou meramente sancionatória imposta ao Direito Penal, não pode ser considerada como adequada, pois a adoção de uma política envolvendo decisões de penalização autônomas em relação aos demais setores jurídicos, sem importar-se se estas condutas já são reprimidas alternativamente ou mesmo consideradas como

ilícitas em outra seara da legislação201.

Tal posicionamento resultaria em uma desconsideração dos princípios de intervenção mínima e de ultima ratio, segundo uma orientação de subsidiariedade, que exige a intervenção penal segundo funções valorativas

autônomas202.

Temos que o Direito Penal, em especial quanto à proteção de bens jurídicos universais, segue um critério de valoração próprio e autônomo, até porque seu caráter singular de tutela e repressão assim exigem, mas segundo uma estrutura e uma motivação, abalizada por outros setores jurídicos da ordem social.

201

A respeito das posições doutrinárias quanto à postura secundária do Direito Penal: CEREZO MIR, José. Curso

de Derecho Penal español. Parte General. 5ª edição, Madrid: Tecnos, 1996, v. I, p.p. 59 e 60.

202

DÍEZ RIPOLLÉS, José Luiz. La contextualización del bien jurídico protegido en un Derecho Penal garantista..., p. 454 e 455.

Não se pode perder de vista, entretanto, que o interesse social relevante para o indivíduo é que deve ser elevado à categoria de bem digno de tutela jurídico-penal, segundo um juízo de valoração social que encontra na gravidade das conseqüências das violações a estes bens jurídicos a justificativa

para uma resposta penal203.

Segundo a evolução do conteúdo dos direitos fundamentais, vista sob a própria ótica evolutiva do Estado Liberal para o Estado Social e Democrático de Direito, que proporcionou uma nova concepção para as garantias individuais, com base na proteção de direitos sociais como o ambiente, a economia, o patrimônio cultural, o Direito Penal foi conduzido a uma função concretizadora da realidade social, visando assegurar o equilíbrio e o desenvolvimento estrutural da própria sociedade. Com isto, deve ter em conta que, uma proteção penal a bens supra-individuais não pode atingir ou mesmo violar bens jurídicos individuais, sob pena de perder sua função.

Decididamente também existe o perigo de incorporar ao Direito Penal uma função político-governamental.

A proteção de bens jurídicos universais, segundo critérios genéricos, pouco concretos, como destacamos, em atenção a preceitos de clamor público, indica uma função promocional do Direito Penal que não pode ser aceita204.

A legitimidade de intervenção estatal na sociedade, passa por

critérios de política criminal205 que não podem ser abandonados em favor de

203

PRADO, Luiz Régis. Bem Jurídico-Penal..., p. 104 e 105.

204

DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões..., p. 73.

205

ROXIN, Claus. Política criminal y sistema del derecho penal. Tradução e introdução de Francisco Muñoz Conde, Barcelona: Casa Editorial Bosch, 1972.

ideologias promocionais inúteis à manutenção das garantias sociais de bem estar, e que levam a uma desvalorização das normas penais.

Os bens jurídicos universais, supra-individuais, transindividuais, meta-indivuais, coletivos ou difusos, eleitos segundo critérios de relevância social e danosidade, na verdade acabam sofrendo os efeitos de uma realidade social de medo e insegurança.

A sensação de insegurança pós-revolução industrial, decorrente de novos riscos provenientes de uma abundância de recursos técnicos de exploração e consumo, incrementados bela evolução de meios de comunicação e informações desencontradas sobre critérios seguros de julgamento sobre o bom e o ruim, criaram referências valorativas jurídicas diversas, não objetivas, em uma sociedade de massas, de forma que o único meio de intermediação entre os

interesses individuais e a sociedade é o Direito206.

Quando tratamos de bens universais como a preservação do ambiente, das relações de consumo e da saúde pública, por exemplo, uma busca de segurança social acaba se convertendo em uma busca de tutela penal, em virtude da preservação destes bens jurídicos ser necessária à subsistência pacífica da espécie humana.

Diante de um conjunto de medos difusos, que conduz a esta realidade social, em especial quando aqui tratamos de interesses supra- individuais, vimos que os clássicos pensamentos de restrição e minimização do Direito Penal retomam sua força, frente a um Direito que é cada vez mais ampliado, sem parâmetros ou limites principiológicos, ou se os têm, são

206

SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do Direito Penal – Aspectos da política criminal nas sociedades

pós-industriais. Tradução de Luiz Otávio de Oliveira Rocha da 2ª edição espanhola (Madrid: 2.001). São Paulo:

desrespeitados ou flexibilizados, muito mais com o intuito de por fim àquela angústia social de insegurança, do que de solucionar pendências jurídicas reais.

Criou-se a “indústria da criminalização” em uma busca obsessiva de normas cada vez mais rígidas e amplas em matérias como, por exemplo, o meio ambiente, a ordem econômica, as relações de consumo, a corrupção

pública, dentre outras207.

Trata-se da política de interesses, representada pela formulação de argumentos científicos como instrumentos para finalidades outras que não a

persecução da verdade e da justiça208. Buscam-se fins estratégicos através de

argumentações pseudocientíficas, com finalidades políticas, aplicando critérios de correção extremamente deficitários, em especial quando tratamos de bens jurídico-penais de caráter universal.

Talvez, para iniciar uma nova concepção de realidade social frente a uma nova sistemática jurídica que inclui a proteção penal de bens jurídicos universais, melhor seria discutirmos metas para evolução do Direito Penal, segundo uma linha de orientação reformista que poderia muito bem passar pela

própria Teoria da prevenção geral positiva209.

Neste sentido, desenvolver a confiança do povo em normas adequadas e destinadas a promover justiça e paz, em uma construção de consciência social sobre as normas, em especial quando destinadas a promover a

207

Seguindo a mesma linha de pensamento de Silva Sanchez: SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do

Direito Penal..., p. 41.

208

SCHÜNMANN, Bernd. Consideraciones..., pp. 57/59.

209

Winfried Hassemer desenvolveu de forma clara em suas obras os parâmetros da Teoria da Prevenção Geral Positiva: Crítica al derecho penal de hoy, Centro de Investigaciones de Derecho Penal y filosofía del Derecho, Universidade Externado de Colombia, trad. Patricia S. Ziffer, Bogotá, 1998; La responsabilidad por el producto

en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1995; Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona, n° 1, pp. 23/36, 1991; Introducción a la criminologia y al derecho penal. Valencia:

Tirant lo Blanch, 1989; A que metas pode a pena estatal visar? São Paulo: Justitia, ano 48, vol. 134, 1986, pp. 26/31; Fundamentos del Derecho Penal, Casa Editorial Bosh, trad. Francisco Muñoz Conde e Luis Arroyo Zapatero, Barcelona, 1984.

proteção de bens fundamentais para a subsistência pacífica da espécie humana, busca a construção de um Direito Penal integrado com as ciências sociais, parte de um controle social dos desvios de conduta, concorrendo com instâncias

sociais e jurídicas outras, complementares a este modelo de controle210,

envolvendo uma socialização através de uma formalização adequada da modalidade deste controle de conflitos e desvios, segundo uma preservação de direitos universais ou supra-individuais, através de normas “vivas e válidas”, em

uma sociedade moderna, atendendo a uma expectativa social de justiça211.

210

No caso dos bens universais o Direito Administrativo Sancionador, como exemplo da influência e participação, além de elementos de políticas públicas e privadas de educação e cultura, não menos significativos.

211

Segundo parâmetros próprios da Teoria da Prevenção Geral Positiva: HASSEMER, Winfried . A que metas

pode a pena estatal visar? Palestra proferida na Faculdade de Directo da Universidade de São Paulo, em 19 de

III – TIPICIDADE SEGUNDO A TEORIA GERAL DO DELITO

Envolvendo a dogmática penal, segundo a interpretação, o desenvolvimento e a sistematização de preceitos legais e opiniões científicas, para explicar uma teoria do tipo, necessário, primeiramente, uma breve abordagem a respeito da Teoria Geral do Delito.

A dogmática jurídica possui a dimensão de elaborar conceitos e de integrá-los a um sistema, todo ele dirigido à resolução de problemas jurídicos segundo determinada orientação. Indica princípios jurídicos implícitos em um ordenamento, expondo preceitos jurídicos diversos, como conseqüência destes princípios, permitindo a compreensão do sentido concreto de determinadas

pretensões como expressão da estrutura de um mesmo sistema jurídico212.

A Teoria Geral do Delito, segundo a dogmática jurídica, explica e sistematiza os elementos e os pressupostos gerais, indispensáveis para que

determinada conduta possa ser qualificada como um delito sujeito a sanções213.

Classificando e analisando múltiplas circunstâncias que podem surgir no caso em concreto, a Teoria Geral do Delito indica soluções possíveis, segundo uma interpretação sistemática de preceitos penais, sob a égide de

212

princípios gerais de direito, em especial princípios de natureza penal, submetendo as soluções eleitas a uma adequação segundo os princípios fundamentais, inscritos na norma constitucional.

A partir disto temos que a implementação de uma Teoria Geral do Delito está diretamente ligada à própria concretização de um conceito material de delito, segundo uma orientação desejada pelo modelo de Estado Social e

Democrático de Direito, que ora se elegeu214.

Seguindo o posicionamento de que o Direito Penal se dirige a proteção eficaz de bens jurídicos, sendo que sua aplicação fica sujeita apenas àquelas condutas que representam ataques mais graves contra os bens jurídicos considerados mais importantes, temos que para a identificação destas condutas como delitos, devem passar por uma violação de um imperativo ou norma de determinação, fundamentada de forma axiológica segundo uma outra norma de

valoração, que indica o bem jurídico selecionado pelo legislador215.

Esta conduta, então contrária ao ordenamento jurídico, será antijurídica, ou seja, a expressão de um juízo de desvalor quanto ao fato cometido.

Ao lado da antijuridicidade, posiciona-se a culpabilidade, segundo a qual a exigência de responsabilidade pela conduta antijurídica, de um sujeito com capacidade de compreensão e liberdade de atuação, proporciona um juízo de desvalor quanto a este que será indicado como autor do fato delituoso.

Temos ainda, dentre todas as condutas antijurídicas possíveis, aquelas que são consideradas como mais graves, são selecionadas segundo um princípio de legalidade, consistente na adequação de um fato realizado a uma

213

CUESTA AGUADO, Paz Mercedes de. Tipicidad e imputación objetiva. Mendonza: Ediciones Jurídicas Cuyo, 1998, p. 20.

214

MIR PUIG. Santiago. El Derecho Penal..., p. 30 e ss.

215

suposta descrição normativa de conduta reprovável, identificada assim a tipicidade.

Deste conjunto evolutivo dogmático, extrai-se um conceito material de delito, envolvendo aquelas condutas, positivas ou negativas, com um caráter antijurídico, típico e culpável, segundo uma subsunção de um fato comprovado a uma descrição legal típica ou reprovável.

Assim, o posicionamento dualista sobre o delito como sendo produto de um elemento objetivo ou material e de outro elemento moral ou subjetivo, herança da Escola Clássica, fez-se suceder pela teoria tridimensional compondo o delito de elementos segundo um fato típico, a culpabilidade e a antijuridicidade216.