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Bens jurídicos universais e a tipificação penal de perigo abstrato

Winfried Hassemer sustenta que as características do Direito Penal moderno passam pela proteção de bens jurídicos, pela prevenção e pela

orientação para as conseqüências412.

A prevenção, como destacada pelo jurista alemão, fica ligada a uma característica de objetivo primário, segundo princípios de igualdade e

tratamento igualitário413.

A orientação para as conseqüências, também assume uma posição prevalente, seguindo princípios de igualdade e justa retribuição, convertendo o

Direito Penal em um instrumento de “pedagogia social”414.

É neste campo pedagógico social que a proteção de bens jurídicos universais, como o ambiente, a infância e juventude, o consumidor, através da conversão desta proteção em um critério positivo para a criminalização de condutas, instituiu um mandato de criminalização globalizada, ampliando ou criando novos tipos penais difusos ou coletivos.

Todavia esta criação utilizou de uma formula que causa insegurança jurídica, qual seja, a dos delitos de perigo abstrato, superando os delitos de lesão e de perigo concreto, pois ao se prescindir do prejuízo se prescinde, igualmente, de demonstrar e exigir a relação de causalidade, bastando a ação típica, presumida perigosa, sem que ocorra um juízo de valor por parte do

magistrado415.

412

HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 22.

413 Ibid., p. 24. 414 Ibid., p. 25. 415 Ibid., pp. 29/30.

Um evidente cerceamento de garantias e oportunidades de defesa, bem como dos próprios pressupostos para a aplicação de uma retribuição penal, se faz presente na utilização de delitos de perigo abstrato.

Quando enfrentamos a sistemática dos bens jurídicos universais, a utilização dos delitos de perigo abstrato leva a considerações dramáticas, envolvendo, por exemplo, delitos caracterizados pela ausência de vítimas individualizadas. Delitos estes que não exigem dano, não restando como um resultado cientificamente previsto para determinada ação.

Com isto, o Direito Penal assume um caráter ampliado, com redução da importância de seu núcleo tradicional, deixando de ser considerado como retribuição ou reação a lesões graves à liberdade dos cidadãos, assumindo uma forma de instrumento de política de segurança, se afastando de sua atual condição estrutural, no ordenamento jurídico, em uma perigosa aproximação do

direito civil e administrativo416.

Assume o Direito Penal “do perigo”, uma condição de “prima ratio”, sempre intervindo quando seja interessante politicamente, afastando-se das orientações de subsidiariedade, igualdade e proporcionalidade como primárias.

Coloca-se como objetivo primário não uma resposta adequada ou justa ao delito, mas que a reprimenda alcance a prevenção do delito futuro, em uma substituição dos critérios eletivos do Direito Penal.

Com isto um déficit de realização surge com muita força, indicando que o Direito Penal está fadado a perder suas funções reais, adquirindo um caráter meramente simbólico, quando não só as Leis não funcionam, mas, além disto, quando aplicadas produzem conseqüências injustas e arbitrárias.

416

A utilização de delitos de perigo, neste moderno Direito Penal, conduz a uma deterioração das diferenciações entre imputação objetiva e subjetiva, onde as diferenças entre autoria e participação, tentativa e consumação, dolo e culpa, quando não desaparecem passam a ser objeto de conceitos secundários, abrindo espaço para uma ampliação das conseqüências do

delito e da arbitrariedade jurídica417.

Neste sentido o Direito Penal Econômico, o Direito Penal ambiental, dentre outros, encontram na imputação individual tradicional um obstáculo que exige superação. Com a redução dos pressupostos da imputação, surgem danos irremediáveis ao Direito Penal, em busca de uma Política Criminal eficaz, ainda que não justa, com uma criminalização mais ampla e superficial de condutas perigosas, com flexibilidade significativa.

De outro lado, não menos grave se tornou a discussão sobre a consideração ou desconsideração dos princípios clássicos orientadores do Direito Processual Penal.

É certo que a introdução de alternativas de consenso e oportunidade, aliadas à denominada negociação penal, por alguns doutrinadores é vista como uma superação ou desconsideração da relevância de princípios

básicos do Direito Processual Penal418, todavia, como veremos mais adiante, tal

consideração, em alguns aspectos merece uma discussão mais ampliada419.

417

HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 34.

418

Ibid., p. 36 e nota n.o 25.

419

Cabe observar que estas considerações estabelecidas por Winfried Hassemer a respeito das alternativas negociadas do Direito Processual Penal, levando-se em conta a abordagem do problema feita por Schumann, quando enfrenta a questão da Administração da Justiça penal, em sua obra “Tratar com Justicia” – In: HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 36 e nota n. 26 -, deixou de considerar aspectos de uma “teoria procedimental fundada materialmente na verdade e na justiça”, segundo bem expõe Arthur Kaufmann, em sua obra La filosofía del Derecho em la posmodernidad, monografias jurídicas 77, tradução de Luis Villar Borda, Santa Fé de Bogotá: Editorial Temis S.A., 1998. De outro lado, opções como a “delação premiada” para crimes de potencial ofensivo significativo, como o tráfico de entorpecentes, onde em uma negociação, por vezes, a impunidade supera qualquer aspecto de justiça, alcançando tão somente uma

Evidente que o principal problema que enfrenta o Direito Penal moderno alinhado a uma tipificação de perigo, é sua distância entre sua

capacidade real e as expectativas de solução que acaba por gerar420, visto que

considerado como prima ratio, acaba por buscar ampliar quantitativamente e qualitativamente seus campos de incidência através do Direito Processual Penal, é neste aspecto que a doutrina critica uma negociação penal que supera ou desconsidera os princípios básicos limitadores da atividade jurídica.

Daí a crítica de que esta ampliação leva em conta que um processo penal, orientado segundo garantias do Estado Democrático de Direito é custoso e demorado, ficando as opções negociadas como alternativas no aumento de uma capacidade funcional, estabelecida segundo uma íntima relação entre um Direito Penal de incriminações massificadas e um Direito Processual Penal também massificado, provido de decisões vagas e amplas, criando um “problema de Justiça”421.

Assim, nas searas do meio ambiente, dos entorpecentes, do crime organizado, das violações contra a ordem econômica e da saúde pública, dentre outras, uma resposta penal acaba por surgir como primeira opção no controle de instabilidades, instituindo um Direito Penal aliado às políticas de segurança pública, em um caráter eminentemente funcional, desconsiderando princípios orientadores de um sistema penal ajustado ao conjunto de instrumentos legais disponíveis para o controle de conflitos, em um abandono de um Direito Penal

do resultado ou das conseqüências422.

justificativa funcional, acabam por sustentar seu posicionamento quanto a um Direito Processual Penal moderno, de caráter funcional.

420

HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. La responsabilidad..., p. 36.

421

Ibid., p. 37.

422

HASSEMER, Winfried; História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra, tradução do original alemão por Carlos Eduardo Vasconcelos, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 2, n. 6, abril-junho – 1994, pp. 62/63.

O princípio da proteção de bens jurídicos, como limitador da criminalização, com enfoque voltado para as conseqüências, agora assume um desgastante papel funcional, com um caráter criminalizador, ao indicar, nesta nova leitura, que todo o bem jurídico (universal) merece proteção penal, como um princípio dominante da cominação e imposição de penas, através da criação de tipos que não exigem uma ameaça concreta, nem um dano a bem jurídico,

mas a simples prática de conduta considerada tipicamente perigosa423.

423

VI – CONSIDERAÇÕES CRÍTICAS E ANÁLISES ALTERNATIVAS SOBRE O DIREITO PENAL DA PÓS- MODERNIDADE E OS BENS SUPRA-INDIVIDUAIS.

Promover o encaminhamento do sistema jurídico para um Direito Penal pós-moderno, orientado pela da proteção da sociedade diante de novos riscos decorrentes da evolução, constitui-se tarefa primária do jurista na seleção de bens jurídico-penais.

A questão está em reconhecer que este encaminhamento, ainda que sob o manto de uma eficiência na proteção de novos bens jurídicos difusos e coletivos, com a elaboração de delitos de perigo abstrato, acaba por conduzir os conflitos decorrentes da violação ou o atentado a esta espécie de bens para o campo da intervenção máxima ou globalizada do Direito Penal.

Neste campo de expansão identificamos significativos conflitos de valores.

1. A ampliação de espaços para um Direito Penal da