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O Argumento da Ilusão e os sense-data

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 136-140)

4 REALISMO DIRETO E O BAD ARGUMENT

4.7 O Argumento da Ilusão e os sense-data

Prima facie, podemos formular a seguinte questão: De que maneira eu posso conhecer o mundo externo, se a principio, ele aparenta ser totalmente heterogêneo a minha mente? Na modernidade existiam três posicionamentos acerca desta questão, poder-se-ia sustentar um realismo direto, um realismo indireto e por fim uma postura idealista ou fenomenalista.195 Como boa parte das teorias do conhecimento eram fundadas numa teoria da representação a postura que mais fora sustentada pelos filósofos foi a do realismo indireto, restando em segundo plano o idealismo e por fim o realismo direto ou ingênuo (naïve) do qual podemos citar Thomas Reid196 como exemplo de um defensor dessa visão filosófica. Na contemporaneidade, a discussão sobre o problema do mundo externo passa por uma compreensão da percepção por parte dos filósofos analíticos que envolve a questão dos dados dos sentidos (sense-data).

Alguns filósofos197 contemporâneos tentaram refutar o realismo direto a partir da teoria dos sense-data. Um subterfúgio usado por esses filósofos foi o Argumento da Ilusão. Este argumento afirma que dado duas aparências conflitantes acerca da percepção de um mesmo objeto, deve-se sempre pressupor que ao menos uma das aparências é a aparência verdadeira. No entanto, o argumento da ilusão se compromete apenas com as “aparências”, isto é, nós não percebemos “objetos”, o que percebemos são apenas sense-data. O debate sobre os sense-data pode ser situado na primeira metade do séc. XX, seu postulado está presente em muitos pensadores, Lewis, Moore, Russell, Ayer, Price, dentre outros. Contemporaneamente temos Brian O’Shaughnessy como um grande expoente e defensor da teoria dos sense-data. Austin em seu livro Sense and Sensibilia, procurou refutar o argumento da ilusão; sua construção da defesa do realismo direto

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Com esta palavra Searle não tem em mente a fenomenologia enquanto escola de pensamento, a referência diz respeito ao debate acerca dos fenômenos que se apresentam a mente e como esses fenômenos são entendidos em termos de representações. Para uma discussão acerca da Fenomenologia enquanto escola filosófica ver um ensaio de Searle intitulado The phenomenological illusion; in: Philosophy in a New Century. Cambridge University Press. 2008. pp. 107-136.

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Para um bom apanhado da teoria do conhecimento e do realismo direto de Thomas Reid ver: An Inquiry into the Human Mind on the Principles of Common Sense (1823) e os Essays on the Intellectual Powers of Man (1785).

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Nosso exemplo paradigmático é Alfred Ayer em: The Foundations of the Empirical Knowledge. (1940).

tem semelhanças com a defesa de Searle. Todavia, diferentemente de Searle que defende a tese do elemento comum, o realismo direto de Austin visa atacar esta tese. Nesse sentido, poder-se-ia interpretar a teoria de Austin como uma forma não esquemática de disjuntivismo.198 O argumento da ilusão é caracterizado como a ideia de que não temos acesso direto à realidade, todo o nosso acesso seria mediado pelos “sense-data”. De acordo com Austin temos:

O objetivo primário do argumento da ilusão é induzir as pessoas a aceitar os ‘sense-data’ como sendo a resposta apropriada e exata a questão de saber o que elas percebem em certas ocasiões anormais e excepcionais; mas, na verdade, esse argumento costuma ser seguido por outro, que tem por finalidade estabelecer que elas sempre percebem sense-data. (AUSTIN, 1962b, p.20).

Em seu texto The Foundations of the Empirical Knowledge, Alfred Ayer estabeleceu uma defesa do argumento da ilusão com base nos sense-data, tal defesa teria por objetivo refutar o realismo ingênuo ou direto. No entanto, de acordo com Searle, Ayer envereda pela mesma falácia que os filósofos do passado trataram de propagar. Em suas próprias palavras o argumento da ilusão “é baseado no fato de que coisas materiais podem apresentar diferentes aparências para diferentes observadores ou para o mesmo observador em diferentes condições, e que a natureza destas aparências é em certa medida causalmente determinada pelo estado das condições e do observador” (AYER, 1940, p. 3). A partir de uma série de exemplos como o caso do bastão que quando colocado na água adquire uma aparência dobrada, Ayer (1940, p. 4) deduz que “ao menos uma das aparências visuais do bastão é ilusória.” Entretanto, mesmo no caso em que o que vemos não é uma qualidade real de uma coisa material (se tratando neste caso de uma ilusão), Ayer argumenta que vemos “alguma coisa”. Este “alguma coisa” ele chamou de sense-datum e é isto que se supõe fazer parte de nossa percepção consciente. Em casos de percepções onde não existe um objeto físico, como no caso de miragens, diz-se que do fato de não existir um objeto para a percepção não se segue que não estamos percebendo nada, a experiência “não é uma experiência de nada, ela tem um conteúdo definido” (AYER, 1940, p. 4). A questão que surge é a seguinte: se não existe tal coisa material como, por exemplo, um oásis, o que é que estou percebendo? Numa resposta simples: sense-data. De acordo com Searle, Ayer

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apenas está substituindo a terminologia das ideias, impressões e representações que eram tão caras aos modernos pelo termo “dados dos sentidos” (sense-data).

A discussão em torno dos sense-data parece perpassar toda a tradição filosófica de língua inglesa que encontramos na primeira metade do séc. XX; contemporaneamente é muito comum também ouvirmos a expressão qualia.199 A crítica de Austin, já fora antecedida por outros filósofos, embora percorrendo caminhos diferentes. Wittgenstein, contra a ideia de um acesso direto aos dados dos sentidos, afirmou que: “A gramática do ‘ver vermelho’ está conectada a expressão de ver vermelho de uma maneira mais próxima do que se pensa” (WITTGENSTEIN 1968, p. 285). Essas discussões só revelam o peso que a linguagem representava nessas análises acerca da percepção, em que muitas vezes sem uma adequada terapia, estes problemas ganham uma dimensão sintomática, resquício de nossa herança metafísica em filosofia, sobretudo oriunda da modernidade. Seguindo esta tradição advinda de Wittgenstein, podemos citar Wilfred Sellars como sendo um filósofo que também tentou compreender as relações de percepção como estando profundamente conectadas às maneiras pela qual utilizamos a nossa linguagem. Em seu artigo “Empirismo e Filosofia da Mente”, além de denunciar o que ele chamou de “Mito do dado” também esboçou dentro desta mesma compreensão a ideia de que a linguagem é imprescindível para questões que envolvam intencionalidade, episódios internos, representações e etc. No seu texto temos o seguinte:

Meu problema imediato é ver se consigo conciliar a ideia clássica de pensamentos como episódios internos, os quais não são nem comportamento público nem representação verbal e aos quais é apropriadamente feita referência por meio de termos do vocabulário da intencionalidade, com a ideia de que as categorias da intencionalidade são, no fundo, categorias semânticas pertencentes a performances verbais públicas. (SELLARS, 2008, p. 97).

Como vimos no final do capítulo 2 (seção 2.4), há em filosofia da percepção uma teoria oriunda dos anos 60 chamada disjuntivismo. Apesar de possuir muitos matizes, no que concerne ao problema da percepção, os disjuntivistas são realistas

199 O termo “qualia” fora usado por C. L. Lewis em Harvard no ano de 1949, numa conferência sobre teoria do conhecimento. Semelhante a este termo os filósofos usavam o termo sense-data. Entretanto, me parece haver uma sutileza que diferencia os qualia dos sense-data, sobretudo quando observamos a aplicabilidade do primeiro na filosofia da mente e do segundo na filosofia da linguagem (percepção), onde a discussão é voltada para o problema do mundo externo, e por seu turno, que tipo de acesso temos à realidade. Todavia, ambos os termos culminam em discussões epistemológicas. Cf. Putnam, 2008.

ingênuos. Vimos muito rapidamente que o disjuntivismo afirma que nossas experiências perceptuais são divididas em três tipos: percepção verídica, ilusões e alucinações. Suponha que alguém tenha uma experiência visual de uma arara vermelha; possa ser que sua experiência seja de fato sobre um objeto no mundo identificado como uma arara vermelha. A experiência neste caso é uma percepção visual verídica uma vez que há uma correspondência entre o conteúdo da percepção e o estado de coisas no mundo. Num segundo caso temos a ilusão, que pode ser representada por uma experiência visual de uma arara laranja, quando na verdade a cor da arara é vermelha. Por fim o caso da alucinação em que o individuo tem uma experiência visual de uma arara (seja vermelha ou laranja) que não existe enquanto estado de coisas no mundo. O ponto é que, muitos outros filósofos200 defendem uma explicação onde à natureza da experiência consciente é a mesma para cada um destes três casos sem distinção alguma, uma vez que tudo se resumiria em sense- data. Trata-se da tese do elemento comum. Os disjuntivistas como um todo negam essa afirmação, argumentam que para cada caso temos um componente diferente na experiência visual. O disjuntivismo possui uma literatura razoavelmente ampla, e sendo ele uma explicação filosófica da percepção que defende um realismo direto (ingênuo), podemos considerá-lo como uma alternativa explicativa ao realismo direto de Searle. Porém, é preciso reforçar um detalhe importante que distingue Searle dos disjuntivistas. Se os disjuntivistas afirmam que o conteúdo da experiência visual é diferente para casos verídicos e alucinatórios, em Searle, o conteúdo da experiência visual pode ser da mesma natureza, o que muda no caso de Searle é a relação do conteúdo com o objeto; para casos verídicos existe um objeto intencional, nos casos alucinatórios não existe objeto algum. No próximo capítulo (seção 4.3) retomarei esse ponto sobre o disjuntivismo segundo a perspectiva de Searle e continuarei a linha de raciocínio que dei início na seção 2.4 do capítulo 2.

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No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 136-140)