• Nenhum resultado encontrado

Distinções entre a forma de intencionalidade das experiências

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 67-71)

3 INTENCIONALIDADE, PERCEPÇÃO E CAUSALIDADE

3.1 A intencionalidade da percepção (1983)

3.1.2 Distinções entre a forma de intencionalidade das experiências

Do fato de que existem algumas analogias entre experiências visuais, crenças e desejos, não significa que não existam casos em que tais analogias não se sustentem. Em algumas formas de descrever a intencionalidade da percepção Searle torna clara a distinção entre a intencionalidade das experiências visuais e a intencionalidade de crenças e desejos, trata-se neste caso, das desanalogias. Para Searle estados intencionais como crenças e desejos são representações. Mas, quando nos referimos às experiências visuais, é preciso tornar clara uma sutileza em que não é possível estabelecer uma relação com as crenças e os desejos na hora de caracterizar suas formas de intencionalidades. Searle argumenta que “estados como crenças e desejos não precisam ser estados conscientes” (SEARLE, 1983, p. 45). Eu posso ter a crença de que ‘Recife é a capital de Pernambuco’ e ainda assim não estar consciente desta crença, ou seja, não preciso está pensando nessa crença no atual momento de meus estados mentais conscientes; da mesma forma, posso ter o desejo de ganhar na mega sena enquanto estou dormindo. Agora no que concerne às experiências visuais, elas são estados mentais conscientes que não podem possuir um tratamento análogo ao tratamento de crenças e desejos, que por ventura podem não ser conscientes. Por isso que Searle afirma que “a experiência visual não é apenas um evento mental consciente, mas também está relacionada às

suas condições de satisfação de um modo bem diferente do das crenças e desejos” (Ibid).

Vimos que crenças e desejos são representações. No caso das experiências visuais a percepção não é uma questão representacional. Para o tipo de realismo direto que Searle endossa, os objetos e estados de coisas no mundo são apresentações e não representações. Se eu vejo uma baleia azul diante de mim, a experiência que tenho é do objeto que está à minha frente, meu acesso a ele é direto, não podemos neste caso dizer que se trata de uma representação de uma baleia azul, e sim de uma apresentação de uma baleia azul. Para tornar clara e precisa essa distinção conceitual temos a seguinte passagem:

A experiência tem uma espécie de direcionalidade, imediaticidade e voluntariedade que não é compartilhada por uma crença que eu possa ter sobre um objeto em sua ausência. Parece, portanto, antinatural descrever as experiências visuais como representações, de fato, se o assim fizermos, é quase inevitável incorrermos em uma teoria representativa da percepção. Em vez disso, por causa das características especiais das experiências perceptivas, proponho chamá-las de "apresentações". (SEARLE, 1983, p. 46).

Acredito ser esta uma distinção feliz no modelo explicativo de Searle, uma vez que ela nos permite não só avaliar, mas também caracterizar o tipo de intencionalidade que ocorre na percepção, ou seja, o modo como experiências visuais se diferenciam das crenças e desejos neste aspecto em particular. Além do mais, a experiência visual neste caso não está apenas circunscrita a uma representação de estados de coisas percebido no mundo, quando ocorre uma condição de satisfação, ela nos oferece um acesso direto, por esta razão que Searle afirma que trata-se de uma ‘apresentação’ (presentation) deste estado de coisas. Searle caracteriza as apresentações como uma subclasse das representações,73 da mesma forma que a intencionalidade possui uma relação com a consciência, analogamente, as apresentações possuem uma relação com as representações.

Outra distinção entre as formas de intencionalidade nas percepções e nas crenças é que diferentemente das crenças, faz parte das condições de satisfação da experiência visual que ela deva ser causada pelas próprias condições de satisfação, isto é, pelo estado de coisas no mundo. Assim, eu vejo um Zeppelin na cor grafite à

73

minha frente, tenho neste caso uma experiência visual. O conteúdo (intencional) desta mesma experiência visual tem como requisito a existência real de um Zeppelin na cor grafite à minha frente para que possa ser satisfeito. Consequentemente, temos como causa de minha experiência visual o fato de existir à minha frente este mesmo Zeppelin grafite. Se tenho uma experiência visual de que existe um Zeppelin grafite à minha frente, tenho também a experiência visual de que este Zeppelin grafite é a causa de minha experiência visual. O que isso significa? Significa, segundo Searle (1983), que o conteúdo da experiência visual é auto-referente. Searle afirma o seguinte:

Pois o que o conteúdo Intencional requer não é simplesmente que haja um estado de coisas no mundo, mas sim que o estado de coisas no mundo deve causar a própria experiência visual que é a corporificação ou realização do conteúdo intencional. E o argumento para isso vai além da comprovação familiar da "teoria causal da percepção"; O argumento usual é que, a menos que a presença e as características do objeto causem a experiência do agente, ele não vê o objeto. (SEARLE, 1983, p. 48).

A teoria causal da percepção que Searle menciona é referente à H. P. Grice.74 Por outro, lado quando Searle argumenta que as experiências visuais são causalmente auto-referentes, ele não está querendo dizer que as relações causais juntamente com as experiências visuais são visíveis, tal como, por exemplo, na observação causal das bolas de bilhar num jogo de sinuca. Ele está querendo dizer que as únicas coisas visíveis são apenas os objetos e estados de coisas no mundo. Consequentemente, como parte das condições de satisfação da experiência visual de vê-las é que a própria experiência deve ser causada pelo o que é visto.75 Searle vai dizer que a percepção é uma espécie de transação causal e intencional entre a mente e o mundo, mas que a direção de causação é do mundo para a mente. Logicamente que eles não são independentes uma vez que tal ajuste se dá através dos estados de coisas que são percebidos, neste sentido, o conteúdo intencional da experiência perceptiva é causalmente auto-referencial.

Por fim, uma terceira distinção acerca das relações entre intencionalidade da percepção e intencionalidade das crenças e desejos diz respeito ao aspecto ou

74

Grice H. P. ‘The Causal Theory of Perception.’ Proceedings of the Aristotelian Society, Supp. vol. xxxv. 1961. pp. 121-53.

75

ponto de vista segundo o qual o objeto pode ser visto. Nos textos posteriores à Intencionalidade, Searle vai se referir a este ponto com o termo ‘forma aspectual’ (aspectual shape). “Na percepção visual o aspecto sob o qual o objeto é percebido é fixado pelo ponto de vista e pelas demais características físicas da situação perceptiva na qual o objeto é percebido” (SEARLE, 1983, p. 51). Dado um único objeto é possível extrair mais de um conteúdo intencional. Este ponto acerca da forma aspectual é muito comum naquelas imagens clássicas usadas pela Gestalt para enfatizar as ambiguidades perceptuais juntamente com a relação de figura e fundo, também fora muito explorado por Salvador Dalí para criar ilusões de ótica. Em seu texto, Searle usa o exemplo do pato-coelho a partir de uma referência à Wittgenstein76, que por sua vez, que se inspirou em Jastrow77.

Figura 1

Searle argumenta que no caso particular do pato-coelho, dado, o objeto intencional é o mesmo não importando se percebemos um pato ou um coelho. Isto por sua vez, significa dizer que do ponto de vista objetivo, existe apenas uma única ilustração diante de nós, porém, no que concerne à dimensão perceptiva temos duas experiências visuais com dois conteúdos intencionais distintos. Searle enfatiza que o objeto intencional da experiência visual é diferente nos dois casos onde em um caso vemos a figura de um coelho e no outro caso a figura de um pato. Searle cita Wittgenstein, e explicita sua noção concernente a este fenômeno em que Wittgenstein afirma tratar-se de usos diferentes do verbo “ver”, (um ver-como), e afirma que Wittgenstein não consegue lidar com essa questão do aspecto. Por outro

76 Wittgenstein (2009) chamou este fenômeno de um “ver-como” (Sehen als/Seeing as). 77

Joseph Jastrow (1863-1944) foi um psicólogo americano (nascido na Polônia) que ficou conhecido por invenções em psicologia experimental, design de experimentos e psicofísica. Também se dedicou aos fenômenos das ilusões de ótica que ficaram conhecidas como a ilusão de Jastrow das quais a ilusão do pato-coelho é uma das mais famosas.

lado, em seu livro de 2015 (Seeing Things As They Are) Searle irá se apropriar da noção wittgensteiniana do ver-como para discutir esses casos perceptuais que envolvem um direcionamento intencional.78

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 67-71)