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Ceticismo e intencionalidade da percepção

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 127-132)

4 REALISMO DIRETO E O BAD ARGUMENT

4.5 Ceticismo e intencionalidade da percepção

O ceticismo sempre foi uma sombra em qualquer pretensão de fundamentar uma teoria do conhecimento. Desde os gregos, os filósofos céticos formularam suas objeções acerca das garantias de conhecimento seguro e indubitável das coisas. De acordo com Searle, algumas objeções foram levantadas contra a sua teoria da percepção, tais objeções não foram elaboradas por filósofos declaradamente céticos, mas apenas como uma postura cética acerca de suas descrições da intencionalidade da percepção. No entanto, segundo Searle, os argumentos céticos possuem uma forma geral em seus procedimentos e isto o fez afirmar que “não importa quanta evidência (motivos, razão, garantia, fundamento, etc.) você tem para uma afirmação, não importa quão perfeita seja a sua base epistêmica para aquela afirmação, você poderia sempre estar enganado” (SEARLE, 2015, p. 219).

Searle elenca dois tipos de ceticismo no qual apenas um tipo corresponde de fato a uma objeção séria à sua teoria. No capítulo dois de Seeing Things As They Are, ele desenvolve uma discussão acerca do ceticismo sobre a intencionalidade das experiências perceptuais. A discussão que se afigura neste tópico é que alguns autores182 duvidam das experiências perceptuais como qualitativas e ontologicamente subjetivas, além do mais, as experiências visuais careceriam de intencionalidade. O segundo tipo de ceticismo é mais genérico e está circunscrito no âmbito da tradição moderna de filosofia, trata-se do clássico ceticismo sobre o nosso conhecimento do mundo externo.183 Segundo Searle, esta forma de ceticismo não atinge sua teoria, pois, ela não pressupõe que o nosso acesso à realidade seja indireto ou muito menos que existe um fosso entre o modo como eu percebo os objetos e a forma “verdadeira” desses mesmos objetos no mundo.184

Se para o cético tudo o que podemos perceber são nossas próprias experiências, poderíamos

182

Cf. Searle, 2015, p. 54-55. 183

Vimos nas seções 2.2 e 2.4 do capítulo 2 que de acordo com Armstrong Searle estaria incorrendo em uma doutrina cética acerca da ideia de que não podemos saber como o mundo realmente é senão a partir de nossa própria constituição.

184

Na seção VII do capítulo 2 de Intencionalidade é justamente a este tipo de ceticismo que Searle tenta oferecer uma resposta. A título de resumo, a objeção seria que, mesmo que se sustente um realismo direto, ainda assim não temos como saber se nossas experiências visuais correspondem a objetos do mundo externo, uma vez que o único critério que temos para isso seria a verificação pela própria experiência visual.

perguntar, como sabemos que existe uma realidade do outro lado dessas experiências? (SEARLE, 2015). O esforço de Searle em sua teoria da percepção é o de explicar que não precisamos de evidências para intuir uma realidade objetiva, simplesmente percebemos esta realidade que é coletivamente compartilhada pelos seres humanos e todas as outras formas de vida orgânica. Portanto, “a forma de ceticismo sobre a percepção que afligiu os filósofos clássicos – Descartes, Locke, Berkeley, Hume, Kant, etc. – não aflige esta descrição” (SEARLE, 2015, p. 220).

No realismo direto sustentado por Searle, não precisamos de uma distinção entre evidência e realidade, pois a evidência é a própria realidade, não existe separação. Nesse caso, não preciso de alguma evidência sobre a minha percepção de que há um laptop sobre a mesa, eu simplesmente vejo que há um laptop sobre a mesa. O problema é que eu poderia estar alucinando e tomando a alucinação como uma evidência. Penso que o critério para o exemplo do laptop não poderia ser de primeira pessoa, uma vez que não há nenhuma garantia de que eu possa estar vendo de fato um laptop e não, tendo uma alucinação de um laptop. Nesse sentido em particular acredito que o ceticismo não é algo tão simples de refutar. Os critérios de conhecimento para o mundo externo são distintos do acesso que temos de nosso mundo interno pela introspecção.

No que concerne ao tipo de ceticismo sobre a intencionalidade das experiências perceptuais, no período clássico da filosofia analítica, a compreensão da intencionalidade era que ela estaria conectada a linguagem, isto levou os filósofos pensarem que os animais irracionais não poderiam possuir crenças185 se não tivessem uma linguagem. Porém, a intencionalidade não se manifesta apenas dentro das categorias da nossa linguagem, vimos no capítulo 2 (seção 2.3) que no caso da linguagem, a intencionalidade é derivada, enquanto que nos estados mentais ela é intrínseca. Sabemos que ela antes de qualquer coisa possui uma estrutura primária (ou primitiva) vinculada à condição biológica dos organismos, sede e fome, por exemplo, são formas de intencionalidade como já vimos. Contudo

185 O sentido de ‘crenças’ pensado aqui para condição de animais não humanos é no horizonte de atribuição de intencionalidade do “como se” tivessem determinadas crenças dado o comportamento inteligente que podemos observar através da maneira como estes animais se relacionam com o seu ambiente. Searle discorda dessas perspectivas, a razão disso é que a intencionalidade é um fenômenos biológicos e nos animais não humanos ela é intrínseca.

a experiência visual tem quatro características que para Searle são suficientes para a intencionalidade.

Primeiro, as experiências visuais possuem conteúdo intencional. Para onde minha visão se dirigir, independente das condições de satisfação, o caráter experiencial da minha experiência perceptual terá indicações de intencionalidade. Suponha que estou na cobertura do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, voltado para o leste posso ver parte da cidade do recife com seus prédios, casas, e o mar ao fundo, se me volto para o lado oeste, poderei ver parte do bairro da várzea e ao fundo a mata de Brennand ocultando um braço de rio do Capibaribe. Para qualquer ponto que meu olhar se dirija, seja para o leste ou para o oeste descritos acima, a descrição perceptual que farei será sempre uma descrição de como estes objetos mencionados se “parecem” para mim, é este “parecer” que Searle classifica como uma marca da intencionalidade. O termo “parecer” (seeming) tem um uso importante nesse exemplo, pois poderíamos supor que eu pudesse estar alucinando. No entanto, mesmo em casos de alucinações ainda assim podemos falar em conteúdo intencional.

Segundo, as experiências visuais possuem uma direção de ajuste (Direction of Fit). Sobre este conceito, já explanamos um pouco dele no capítulo 2 (seção 2.1.1). Tendo os estados intencionais diferentes modos de relatar as condições de satisfação das experiências visuais, temos no elemento das crenças a função de representar como as coisas são no mundo. No entanto, muitas vezes estas crenças precisam se ajustar a uma imagem mais adequada dos estados de coisas da realidade. Como já vimos anteriormente, no que concerne a categoria das crenças, elas possuem uma direção de ajuste que vai da mente para o mundo (mind-to- world). Por outro lado, no que concerne a categoria dos desejos e intenções, elas possuem uma direção de ajuste que vai do mundo para a mente (world-to-mind).

Terceiro, as experiências visuais possuem condições de satisfação (Condictions of Satisfaction). Até aqui deve ter ficado claro que as experiências perceptuais possuem um conteúdo intencional, que por seu turno se ajustam ao mundo; o ajustar-se significa aqui possuir condições suficientes que satisfaçam a veracidade da percepção, isto é, em caso verídico (veridical case). Assim, “o conteúdo determina quais características do mundo são apresentadas pela

experiência perceptual, a direção do ajuste é obviamente mind-to-world, e as condições de satisfação são fixadas pelo conteúdo” (SEARLE, 2015, p. 57). Neste caso, as experiências perceptuais das crenças, desejos e intenções podem ser satisfeitas ou não satisfeitas, o mundo será ou não será da maneira como ele se parece/apresenta para mim.

Quarto, as experiências visuais possuem auto reflexividade causal186 (Causal

Self-reflexivity). O pressuposto básico aqui é que a intencionalidade perceptual compartilha como parte de suas condições de satisfação uma relação causal entre o estado intencional e o mundo externo. Lembremos que o estado intencional não é satisfeito se o mundo não corresponder à maneira como está representado no conteúdo proposicional. Desta forma, a auto reflexividade causal é uma característica central do conteúdo intencional das experiências perceptuais.187 O seu componente causal é responsável por criar uma ponte entre nossa percepção e o mundo. Todavia, é necessário traçar uma pequena sutileza sobre este ponto. A auto reflexividade causal de acordo com Searle está relacionada com a memória, intenção prévia (prior intention) e intenção em ação (intention-in-action), esta relação causal não pode ser conectada com o desejo e muito menos com a crença. Em seu texto, Searle dá o seguinte exemplo:

Se eu acredito que Sally é uma republicana, então minha crença pode ser verdadeira, mesmo que o fato de Sally ser republicana não cause essa crença. Se eu desejo me casar com uma republicana e eu me caso com uma republicana, então, meu desejo é satisfeito mesmo que o desejo não cause o casamento. Mas se eu vejo a mesa verde à minha frente, então só vejo de fato uma mesa apenas se a presença e características da mesa causam a experiência visual que eu descrevo quando digo “eu vejo a mesa.” Existe uma característica causalmente auto reflexiva no conteúdo intencional das experiências perceptuais. (SEARLE, 2015, p. 58).

186

Aqui temos uma pequena mudança de um conceito que Searle usa em Intencionalidade. Em Intencionalidade Searle se refere a este conceito como causal self-reference. Na introdução de Seeing Thing As They Are, Searle lança mão da seguinte explicação: “Um segundo mal-entendido foi que, quando eu disse que a percepção é causalmente auto-referencial, eu poderia estar dizendo que a experiência perceptual realiza algum tipo de ato de fala ao se referir a si mesma. Eu não pretendia nada disso. A idéia é que as condições de satisfação da experiência perceptual exigem que o estado de coisas percebido funcione causalmente na produção da experiência perceptual. Portanto, as condições de satisfação exigem referência à própria experiência. E, nesse sentido, a experiência é causalmente auto-referencial. Para evitar esse mal-entendido, agora uso a expressão "causalmente auto-reflexiva" em vez de "causalmente auto-referencial", mas pretendo que as duas expressões signifiquem exatamente a mesma coisa.” (SEARLE, 2015, p. 5-6).

187

Existe um argumento que foi usado contra a intencionalidade das experiências perceptuais visuais, mas segundo Searle, tal argumento é na verdade, apenas mais uma prova a favor de sua tese; o argumento é conhecido como Argumento da Transparência (Argument from Transparency). O ponto é o seguinte: Se você tentar descrever a experiência visual subjetiva (isto é, uma experiência perceptiva) em sua cabeça, você provavelmente irá apenas fazer a mesma descrição do estado de coisas no mundo. Poderíamos descrever a seguinte experiência perceptiva subjetiva: “Eu pareço ver a praia de Boa Viagem.” O verbo “parecer” pode carregar uma ambiguidade, no entanto, podemos evitar isso reformulando a sentença: “Eu tenho uma experiência visual que é exatamente como se eu estivesse vendo a praia de Boa Viagem.” Por outro lado, posso descrever o estado de coisas do mundo objetivo simplesmente ao dizer: “Eu vejo a praia de Boa Viagem.” Se nós possuímos uma experiência visual subjetiva dentro de nossas cabeças e um estado de coisas ontologicamente objetivo no mundo, como pode a descrição ser a mesma? De acordo com Searle, “a experiência consciente é em si mesma uma apresentação do estado de coisas que constitui suas condições de satisfação” (SEARLE, 2015, p. 59). A descrição do conteúdo intencional da apresentação deve corresponder ao estado de coisas, este último forma suas condições de satisfação no mundo externo. Em outras palavras, a transparência está de acordo com Searle na ideia de que qualquer percepção de estados de coisas do mundo externo que eu possa descrever “objetivamente”, também o poderei fazer “subjetivamente” a partir de uma descrição do meu conteúdo intencional; é isso que Searle entende por uma ‘transparência no argumento’.

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 127-132)