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O Problema da Particularidade

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 78-83)

3 INTENCIONALIDADE, PERCEPÇÃO E CAUSALIDADE

3.1 A intencionalidade da percepção (1983)

3.1.4 O Problema da Particularidade

Em seu texto, Searle aponta para um problema que até então não havia enfrentado. Vimos nos exemplos de casos perceptuais como guitarra vermelha, Zeppelin grafite, baleia azul e bicicleta marrom, caracterizações de percepção simples e genérica de suas propriedades e de como elas são satisfeitas, onde uma situação perceptual pode ter a forma ‘X vê Y à sua frente’. No entanto, o que dizer de situações perceptuais cujo conteúdo intencional se apresenta de forma específica? No exemplo da bicicleta, eu não vejo uma bicicleta marrom, eu vejo a minha bicicleta marrom. De acordo com Searle, as condições de satisfação para ‘eu vejo uma bicicleta marrom” são diferentes das condições de satisfação para ‘eu vejo minha bicicleta marrom’, as exigências em ambos os casos são diferentes. Searle chamou essa questão de problema da particularidade e se perguntou de que modo tal particularidade é introduzida no conteúdo intencional da percepção.88

Para tal, Searle toma emprestado o famoso experimento de pensamento de Putnam89 das terras gêmeas. Para acompanhar o raciocínio de Searle vamos supor que existe uma terra gêmea com todas propriedades físicas que nossa terra possui. Em nossa terra Jones vê sua esposa Sally saindo de sua casa amarela, enquanto isso, na terra gêmea o Jones gêmeo vê sua esposa Sally gêmea saindo de sua casa amarela gêmea. A pergunta que surge é, como experiências visuais qualitativamente idênticas possuem diferentes condições particulares de satisfação? Como tal particularidade é introduzida no conteúdo intencional? O problema da particularidade é algo muito recorrente tanto na filosofia da mente quanto na filosofia da linguagem e temos para este problema uma solução que segundo Searle é inadequada. Em termos gerais, a solução é dada por uma explicação causal da experiência visual em que a diferença entre o Jones desta terra e o Jones da terra gêmea é que a experiência visual de Jones é causada por Sally enquanto que a experiência visual do Jones da terra gêmea é causada pela Sally da terra gêmea.90

88 Cf. Searle, 1983, p. 62. 89 Cf. Putnam, 1975. 90 Cf. Searle, 1983, p. 63.

De acordo com Searle esta solução causal é incapaz de responder como tal fato causal é introduzido no conteúdo intencional. Neste caso, ninguém duvida que Jones esteja vendo Sally e nesse sentido Sally é a causa da experiência visual de Jones, isto é, faz parte do conteúdo intencional de Jones. Ainda assim, o que há na experiência visual de Jones que exige Sally e não a Sally da terra gêmea? A solução também aponta para um critério de terceira pessoa, isso é, de como observadores externos podem distinguir qual das ‘Sally’ Jones estaria vendo. Mas o problema como Searle está propondo é inteiramente na primeira pessoa, consequentemente critérios de terceira pessoa não dariam conta da explicação do conteúdo intencional. A mesma forma deste problema também pode ser encontrada na teoria causal da referência e sua resposta é tão inadequada quanto o fora na teoria causal da percepção. Numa formulação em termos referenciais teríamos: o que temos na intencionalidade de Jones que faz com que ao dizer ‘Sally’, ele esteja se referindo a Sally e não a Sally gêmea? E mais uma vez a resposta causal na terceira pessoa afirma que ele se refere a Sally e não a Sally gêmea simplesmente porque é Sally e não a Sally gêmea que possui determinadas relações causais com Jones.91 Todavia, segundo Searle, esta resposta se esquiva da pergunta pela intencionalidade.

Qualquer teoria da Intencionalidade deve levar em conta o fato de que muitas vezes possuem conteúdos intencionais direcionados a objetos particulares. O que se requer é uma caracterização do conteúdo intencional, que mostra como ele pode ser satisfeito por um único objeto previamente identificado. (SEARLE, 1983, p. 65).

Com isto Searle avança em direção a uma solução do problema da particularidade, solução esta que faz usos de algumas ferramentas conceituais já exploradas ao longo do nosso texto além de outras que ele faz questão de tornar explícito. A primeira delas é a noção de Rede e Background. Em sua concepção de intencionalidade e causação intencional, os conteúdos intencionais não podem determinar suas condições de satisfação isoladamente. O ponto aqui é que os “conteúdos intencionais em geral e experiências em particular estão internamente relacionados de uma maneira holística a outros conteúdos Intencionais (a Rede) e a capacidades não representacionais (o Background)” (SEARLE, 1983, p. 66). Historicamente, segundo Searle, há uma concepção dos conteúdos intencionais em que eles são unidades isoladas que determinam as condições de satisfação e isto se

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dá independentemente de quaisquer capacidades não representacionais (Background) e por outro lado, a ideia de que a causação é uma relação não intencional, sendo, portanto, uma relação entre objetos e acontecimentos do mundo natural (SEARLE, 1983). Com a noção de Rede e Background temos um ponto de vista alternativo a tais pressupostos históricos que na visão de Searle se apresentam como limitados em termos explanatórios.

Outra noção que contribui para a solução do problema da particularidade é o conceito de causação intencional. A causação intencional tem um papel importante na determinação das condições de satisfação dos estados intencionais. A causação intencional quando conectada as noções de Rede e Background cria um reforço em torno das condições de satisfação do estado intencional. Por fim, Searle traz a noção de indexicalidade. No que concerne a indexicalidade, cada vez que tenho uma experiência perceptual de algo, não é apenas uma experiência perceptual, mas sim a minha experiência perceptual. E isto se estende para as noções de Rede e

Background, pois, “A rede de estados intencionais de que ele está consciente é a

sua rede e as capacidades de Background que ele faz uso têm a ver com o seu

Background” (SEARLE, 1983, p. 66). Se voltarmos ao exemplo da experiência visual

de Jones e sua relação com o Jones da terra gêmea, por mais que estas experiências sejam qualitativamente semelhantes não pode haver dúvidas que do ponto de vista das experiências visuais do Jones desta terra, tais experiências são única e exclusivamente suas experiências e não de outro como é o caso do Jones da terra gêmea. São, portanto, suas crenças, seus desejos, suas intenções etc., em outras palavras, são experiências de toda sua Rede e Background.

Diante disto, o problema para Searle consiste em mostrar como a Rede e o Background se introduzem no conteúdo intencional para determinar que as condições causais de satisfação sejam particulares e não gerais. Searle considera dois casos, um em que ele ignora o Background se concentrando apenas na Rede e outro em que ele leva em consideração o Background.92 Tal separação da Rede e Background só é possível em termos explicativos, pois na vida real, isto é, em casos práticos de percepção ambas ocorrem em conjunto, concomitantemente.

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No que concerne ao conceito de Rede, vamos retomar os casos de Jones e Sally. Para isto vamos supor que tudo que Jones conhece de Sally vem de uma sequência de experiências visuais que Jones tem dela no passado, e que aqui vamos chamar de x,y,z.93 Tais experiências como vimos são experiências do passado e Jones ainda preserva lembranças destas experiências que no presente vamos chamar de a,b,c. Searle chama atenção para o fato de que a sequência de lembranças a,b,c está internamente relacionada à sequência da experiência x,y,z, em que, se a é uma lembrança de x, devemos considerar como parte das condições de satisfação de a que a deve ter sido causado por x, e da mesma forma, parte das condições de satisfação de x, se x é uma percepção visual que Jones tem de Sally, então x foi causado por Sally. Esta noção de transitividade causal intencional Searle vai dizer que faz parte das condições de satisfação da lembrança que em nosso exemplo foi causada por Sally.94 Desta forma, tais condições de satisfação em cada experiência visual e em cada lembrança não significam apenas que a experiência foi satisfeita por uma mulher que tenha como satisfação a descrição de Sally, mas sim que seja causada pela mesma pessoa que causou as lembranças e experiências de Jones. Dentro desta inter-relação dos elementos da Rede, (lembranças, experiências etc.) vamos retomar a questão: o que há na experiência visual de Jones que exige como condições de satisfação Sally e não a Sally da terra gêmea? Mesmo que a experiência de Jones desta terra seja idêntica à experiência do Jones da terra gêmea, a experiência do Jones desta terra é dirigida a Sally desta terra e não à Sally da terra gêmea, pois o que está em jogo é o conteúdo intencional da experiência visual.

Com relação ao Background, no que concerne aos casos particulares de reconhecimento perceptual, Searle vai dizer que “a capacidade de reconhecer pessoas, objetos, etc., normalmente não requer comparação do objeto com representações pré-existentes, sejam imagens, crenças ou outros tipos de ‘representações mentais’” (SEARLE, 1983, p. 69). De uma maneira muito vaga Searle apenas afirma que “simplesmente reconhecemos pessoas e objetos” (Ibid). O argumento de Searle é que quando alguém reconhece outra pessoa na rua ela não

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Cf. Searle, 1983, p. 67 et seq. 94

precisa ter lembranças, ou estar consciente de quando conheceu esta pessoa, muitos menos precisa ter algum tipo de representação; ela simplesmente vê a pessoa ou objeto e sabe do que se trata. Este papel do Background funciona como uma capacidade não representacional de reconhecer pessoas e objetos. O fato é que esta caracterização de Searle sobre o reconhecimento de uma particularidade em comunhão com o Background transparece uma vagueza em seu texto. O que Searle pretende com isso? Intencionalidade é um livro dos anos 80 e mesmo naquela época, já tínhamos uma série de pesquisas cognitivas e neurofisiológicas da percepção em voga. Da mesma forma que na explicação para as operações de rede e suas referências às particularidades, Searle apresenta uma explicação parecida usando o experimento das terras gêmeas. Vamos supor que Jones reconhece uma pessoa que vê na rua como seu amigo Bernard, o mesmo se passa na terra gêmea. Mais uma vez, tanto o Jones desta terra quanto o Jones da terra gêmea possuem experiências visuais idênticas do ponto de vista qualitativo. A diferença, Searle argumenta, está simplesmente no fato de que a experiência do Jones desta terra faz referência às suas próprias capacidades de Background enquanto que a experiência do outro Jones, às dele. Aqui Searle recorre a indexicalidade do Background como critério de identidade das experiências de ambos os casos na determinação da particularidade.

Nas próximas seções veremos duas críticas endereçadas ao modelo explicativo de Searle sobre a intencionalidade da percepção. A primeira é a crítica de David Armstrong e a segunda a critica de Fred Dretske. Por fim, veremos numa ultima seção uma pontual interpretação de uma passagem do capítulo dois de Intencionalidade segundo a qual acredito que Searle estaria incorrendo numa certa tensão representativa no que diz respeito à sua teoria da percepção.

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 78-83)