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Uma tensão representativa na teoria de Searle

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 104-112)

3 INTENCIONALIDADE, PERCEPÇÃO E CAUSALIDADE

3.4 Uma tensão representativa na teoria de Searle

O realismo direto é uma concepção filosófica segundo a qual existe um mundo externo cujo seus objetos físicos possuem uma existência que independe de nossa mente para percebê-los, porém, o tipo de acesso que nós temos a este mundo ocorre de forma direta e imediata. Neste sentido, o realista direto advoga que não existe algo que se interponha na experiência perceptual, como ideias, impressões, dados dos sentidos etc. Por outro lado, o realismo indireto ou teoria representativa da percepção, afirma que percebemos indiretamente objetos físicos no mundo ao percebermos imediata e diretamente objetos internos não físicos, como sense-data, ideias, impressões etc. (MAUND, 2003, p. 68). Nesta seção apresento minha breve e pontual interpretação de que em Intencionalidade, Searle parece oscilar entre seu realismo direto e uma tácita teoria representacional da percepção que eu traduzo como uma incongruência entre sua tese de que a percepção é intencional, e que isso pressuporia uma defesa do realismo direto. O ponto de partida de minhas considerações será uma pequena passagem na seção VII do capítulo dois de Intencionalidade que já vimos na discussão com Armstrong (seção 2.2):

Não podemos saber como o mundo realmente é porque só podemos saber como é em relação à nossa própria constituição empírica e às formas em que ela tem um impacto causal em nossa constituição. Mas esse ceticismo não procede; o que procede é que podemos saber como o mundo é, mas a nossa própria noção de como ele é

está relacionada à nossa constituição e nossas transações causais para com ele. (SEARLE, 1983, p. 76).

Na discussão da seção 2.2 deste capítulo afirmei que o ponto alvo de Armstrong sobre essa passagem dizia respeito à ideia de que Searle estaria incorrendo num ceticismo. Minha razão primária para compreender a interpretação de Armstrong é que ele esteve atento ao modo como Searle descreve na seção VII do capitulo dois de Intencionalidade um tipo de argumentação cética contra sua teoria da percepção. Em suma, a argumentação consiste em afirmar que a versão causal do realismo ingênuo de Searle conduz ao ceticismo da possibilidade de jamais conhecermos o mundo real com base na percepção, pois, não teríamos nenhum ponto de vista neutro para avaliar as relações entre as experiências do sujeito e os objetos físicos que supostamente causariam tais experiências.157 Armstrong ainda menciona em seu texto que a teoria de Searle poderia ser uma “versão sofisticada de teoria representativa da percepção” (ARMSTRONG, 1993, p. 156). Minha questão diz respeito a passagem onde Searle afirma (em resposta ao cético) que “podemos saber como o mundo é, mas a nossa própria noção de como ele é está relacionada à nossa constituição e nossas transações causais para com ele” (SEARLE, 1983, p. 76). Considero essa passagem problemática, pois, pode nos conduzir a uma confusão. Argumentarei nessa direção.

Do fato de se afirmar que podemos saber como o mundo é, mas apenas a partir do ponto de vista de nossa constituição, pode nos conduzir a ideia de que existe uma parcela da realidade que não nos é acessível. E de fato sabemos que dada a nossa estrutura cognitiva é razoável admitir a concepção de que a maneira como percebemos as coisas (não importa agora se direta ou indireta) é apenas uma dentre várias versões cognitivas existentes na natureza. Searle tem consciência desse ponto, ele chega a dar o exemplo de “propriedades do mundo não imediatamente acessíveis aos sentidos, tais como o ultravioleta e o infravermelho” (SEARLE, 1983, p. 75). Ao mencionar Kant, Searle tenta deslocar a discussão das coisas em si removendo-a do reino metafísico e trazendo-a para o mundo físico. Num momento do texto ele afirma que “a própria noção de como as coisas são em si mesmas é relativa à nossa capacidade de receber inputs causais de um mundo que na maior parte existe independentemente de como o representamos” (Ibid, p. 76).

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Entretanto, de acordo com Searle (Ibid, p.76), “esse relativismo causal é compatível com o mais ingênuo dos realismos.”

Como poderia ser essa compatibilidade? Um exemplo notório de uma versão cognitiva distinta da nossa é o do morcego apresentado no artigo de Thomas Nagel158, outro é o da estrutura perceptual dos octopus descrito por Godfrey-Smith em seu livro159 sobre a origem da consciência nos polvos marinhos. De um ponto de vista mais propriamente biológico, os trabalhos de Jacob Von Uexküll também trazem essa discussão de que dada uma só realidade diferentes organismos captam diferentes aspectos sensoriais desta mesma realidade, que por seu turno, se traduziria numa pluralidade de mundos de acordo com a estrutura orgânica e capacidades perceptuais de cada espécie.160 Vimos que enquanto que a teoria representativa sustenta que existem dois tipos distintos de consciência perceptual, a saber, uma percepção direta de objetos não físicos internos e uma percepção indireta de objetos físicos externos, o realismo direto advoga que existe apenas um tipo de consciência perceptual de objetos físicos que não é mediada por nada mais. A minha pergunta agora assume a seguinte forma: como é possível compatibilizar a ideia de que existam diferentes versões cognitivas na natureza com a tese de que a percepção é direta? Para Searle não há nenhum problema com essa compatibilidade e em tese ele acredita que sua teoria corresponde a isso, pois, vimos que a percepção é direta não só para adultos e crianças sem aquisição de linguagem, mas também para animais não humanos.

Interpreto essa questão numa conclusão diferente de Searle. Do fato de que nós percebemos apenas um aspecto da realidade devido a uma limitação da nossa constituição biológica ou cognitiva não implica que percebemos esse aspecto da realidade diretamente ou indiretamente. Sabemos que do ponto de vista de uma descrição física do espectro eletromagnético, nossa visão é algo que opera numa região que fica entre uma frequência limite mais alta de radiação ultravioleta e uma frequência limite mais baixa de radiação infravermelha. A partir desse exemplo, novamente reforço: dado que só podemos perceber uma limitada faixa do espectro 158 Cf. Nagel, 1974. 159 Cf. Godfrey-Smith, 2019. 160 Cf. Uexküll,1957.

de cores não podemos inferir que nosso tipo de acesso é direto, tampouco indireto. É inegável o poder explicativo da ciência onde ela nos oferece uma descrição de mundo extremamente sofisticada. Quando colocamos as lentes pelas quais a ciência enxerga a realidade podemos ampliar nossas capacidades perceptuais de mundo, e novamente, isso não implica em dizer que nosso acesso à realidade cada vez mais refinado por uma descrição científica de mundo seja direto ou indireto. Esse ponto não contribui em nada para a defesa de Searle de que a percepção é direta.

Penso que o mais importante seria tentar esclarecer o que seria um acesso direto à realidade. Acredito que essa questão mereça um pouco de atenção. Proponho aqui pensarmos em dois sentidos para “percepção direta”, um sentido forte e um sentido fraco. Com relação ao sentido fraco, de antemão podemos caracterizar como sendo a ideia de que nossa relação perceptual com o mundo ocorre de forma direta e imediata. E isso significa que não percebemos dados dos sentidos, nem representações ou ideias etc. Por outro lado, vimos (seção 2.1.3) que a linguagem ao menos para nós humanos é um meio segundo o qual podemos discernir e categorizar conceitualmente nossas percepções. De acordo com Searle (1983, p. 54), “muitas de nossas experiências visuais sequer são possíveis sem o domínio de certas capacidades de Background e proeminente entre elas são as capacidades linguísticas.” Ora, não seria a linguagem ela mesma um meio segundo o qual eu acesso os objetos da percepção? Vimos como o exemplo de “TOOT” que apesar do estímulo ser algo constante, podemos interpretar perceptualmente este signo de vários modos. Como relacionar estas variadas respostas com a ideia de que percebemos diretamente? Mas aqui estamos falando do sentido fraco de percepção direta. O que dizer do sentido forte de percepção direta? Se quisermos ser rigorosos, percepção direta no sentido forte não é possível, e se ao menos pudermos conceber alguma possibilidade, ainda assim será problemático. Para ilustrar o que mais próximo poderíamos caracterizar por uma percepção direta no sentido forte para Searle seria uma definição que ele usa para percepção básica segundo a qual seria “qualquer percepção de um objeto ou característica que você possa ter sem perceber algo mais através da qual você a perceba” (SEARLE, 2015, p. 112). Searle usa essa definição apenas para o que ele chama de características de nível mais baixo que aqui podemos resumir por cores e formas.161 Ainda assim,

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cores e formas encerram capacidades conceituais de nossa percepção que por seu turno estão ancoradas em capacidades linguísticas. Todavia, isso ainda é muito pouco para mostrar que existe uma tensão representativa na teoria de Searle.

No inicio desta seção afirmei que em Intencionalidade, Searle parece oscilar entre seu realismo direto e uma tácita teoria representacional da percepção e que eu poderia traduzir como uma inconsistência entre sua tese de que a percepção é intencional, e que percebemos as coisas diretamente, pressupondo nesse caso uma defesa do realismo direto. Ao longo de toda a seção 2.1 deste capítulo vimos que para Searle experiências visuais são consideradas estados mentais, que por sua vez, possuem intencionalidade intrínseca, diferentemente da linguagem que possui a intencionalidade derivada. Vimos também que Searle faz uma distinção entre conteúdo intencional e objeto intencional e o que distingue um caso de percepção verídica de um caso alucinatório é o fato de que para o caso verídico o conteúdo intencional está causalmente relacionado ao objeto intencional enquanto que no caso alucinatório não existe sequer objeto intencional, mas apenas conteúdo intencional. Porém, tanto no caso verídico quanto no caso alucinatório existe um elemento comum que fenomenologicamente falando para Searle possui a mesma natureza, sendo a única coisa que distingue um caso de outro é a existência de um estado de coisas no mundo e não o conteúdo intencional da experiência visual.

A questão mais forte (além da intencionalidade) em torno de uma leitura representativa da teoria da percepção em Searle é sobre o elemento comum entre o conteúdo intencional da percepção verídica e da alucinação. Em filosofia da percepção este elemento comum é conhecido por teoria/tese/suposição do elemento/tipo/fator comum, e cada filósofo (JOHNSTON, 2009; MARTIN, 2009; FISH, 2010; SOTERIOU, 2016) se refere a esta ideia usando uma das combinações acima para se referir ao elemento comum. Durante todo o livro Intencionalidade, Searle sequer menciona a teoria do elemento comum, mas sua explicação da percepção faz uma referência tácita a este conceito, pois, Searle está de acordo que tanto o conteúdo intencional de experiências verídicas quanto de alucinações partilham de um mesmo tipo fenomenal intrinsecamente subjetivo. Também durante todo o livro Intencionalidade ao discutir sua teoria da percepção e afirmar que sua

abordagem é um tipo de realismo ingênuo ele sequer menciona o disjuntivismo162 como uma explicação realista ingênua alternativa à sua teoria. Por outro lado, em seu livro de 2015 ele não só menciona a teoria do elemento comum (commonality thesis) como também afirma que endossa essa visão. Além do mais, Searle também trava uma discussão com a teoria disjuntivista da percepção que discorda da teoria do elemento comum.

A pergunta que podemos nos fazer agora é: Por que a suposição de elemento comum implica numa teoria representativa da percepção? Em primeiro lugar, vimos que na teoria de Searle o elemento comum envolve dois tipos de conteúdo intencional, um que pressupõe apenas a experiência visual (alucinação), e outro que pressupõem algo externo como causa da experiência visual, mas que pelo fato de ambas serem experiências visuais elas possuem intencionalidade sendo, portanto, intrinsecamente subjetivas. Em segundo lugar, vimos no início desta seção que o realismo indireto ou teoria representativa da percepção, afirma que percebemos indiretamente objetos físicos no mundo ao percebermos imediata e diretamente objetos internos não físicos, como sense-data, ideias, impressões etc. (MAUND, 2003, p. 68). Desta forma, para a teoria representativa a própria experiência representacional é objeto da percepção, pois, se não fosse este o caso, não teríamos nenhuma representação. Ora, o teórico representativo não teria nenhum problema em afirmar que o conteúdo representacional (percepção direta) da experiência visual de um objeto externo (percepção indireta) possui o mesmo tipo fenomenal (elemento comum) que a fenomenologia de um conteúdo representacional de uma experiência visual alucinatória. O que diferenciaria a teoria da percepção de Searle de uma teoria representativa? A declaração de Searle de que ele é um realista direto? Ora, Searle é um internalista, pois, se a intencionalidade é uma característica intrínseca dos estados mentais e não há nenhuma diferença entre o tipo de conteúdo intencional de uma experiência verídica

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A teoria disjuntivista da percepção é uma teoria oriunda dos anos sessenta. Os disjuntivistas defendem um realismo ingênuo que compartilha da crença de que existe uma diferença na natureza da experiência, isto é, o tipo de experiência que tenho quando percebo o mundo não é aquela que eu poderia ter se estivesse alucinando. Eles negam que experiências envolvidas em casos de percepção, ilusão e alucinação tenham a mesma natureza, ou para colocar em termos conceituais, que compartilham de um elemento comum. No capítulo 4 (seção 4.3) trarei à tona a teoria disjuntivista da percepção.

e alucinatória não vejo como compatibilizar essas qualidades fenomenais privadas e subjetivas com o seu tipo de realismo ingênuo.

Essas minhas considerações sobre a teoria da percepção de Searle ganharão um novo fôlego no final do capítulo 4 (seção 4.3). Nessa seção farei menção à teoria disjuntivista da percepção que diferentemente de Searle sustenta um realismo ingênuo afirmando que não há um elemento comum entre a fenomenologia do caso verídico e do alucinatório. Numa passagem bastante controversa de sua discussão com o disjuntivismo ele afirma que “eu, juntamente com Descartes e praticamente todos os demais, estipulo por decisão decidir considerar casos de experiência verídica e casos de alucinações correspondentes exatamente iguais” (SEARLE, 2015, p. 170). Considero a passagem controversa porque praticamente durante todo o livro Searle tece uma série de ataques à Descartes e a outros filósofos modernos e contemporâneos que segundo ele estariam incorrendo num Bad Argument que grosso modo podemos resumir pela ideia de que nunca percebemos diretamente objetos e estados de coisas no mundo, mas apenas experiências subjetivas (SEARLE, 2015). No que concerne ao cartesianismo, me parece que Searle está travando um perene combate com uma espécie de Hidra Cartesiana. Para cada cabeça que ele corta fora, outras nascem no lugar. Assim o foi com sua critica ao dualismo conceitual na sua filosofia da mente e agora esta mesma batalha está ocorrendo em sua atual teoria da percepção. Toda essa implicância para com Descartes ao final pode incorrer num tipo de cartesianismo que faria dele o pior dos cartesianos, a saber, um cartesiano disfarçado.

Vimos neste capítulo como Searle desenvolve suas considerações em direção a uma teoria da intencionalidade da percepção que teria como pressuposto uma versão do realismo ingênuo. Apresentei algumas críticas e questionamentos de outros filósofos (Armstrong e Dretske) e finalizei com minhas breves impressões da teoria de Searle. Nos próximos dois capítulos, veremos uma série de considerações sobre sua atual teoria da percepção construída por ele a partir de vários escritos e vivências filosóficas ao longo dos anos, mas que teve como ponto de partida o segundo capítulo de Intencionalidade. A partir de agora realizarei uma breve descrição dos passos de Searle em seu livro Seeing Things as They Are, com o intuito de apresentar uma teoria revisada e amadurecida da intencionalidade perceptual. Todavia, como qualquer teoria, assim como em Intencionalidade existem

problemas. Ao final do capítulo quatro retomarei a interpretação brevemente desenvolvida nessa seção e mostrarei que apesar de sua recente teoria ser uma teoria revisada ela ainda incorre no mesmo tipo de problema que vimos em Intencionalidade.

No documento A teoria da percepção de John R. Searle (páginas 104-112)