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5 O DIREITO À SAÚDE E SUA JUDICIALIZAÇÃO

5.2 EXIGÊNCIAS E LIMITES À INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

5.2.4 O argumento da reserva do possível

Considerando que os direitos sociais têm as prestações materiais como objeto, reflete, pois, o seu custo numa dimensão economicamente de relevo.

232 Nesse sentido, afirma Luigi Ferrajoli: “Enquanto o Estado de direito liberal deve somente não piorar as

condições da vida dos cidadãos, o Estado de direito social deve ainda melhorá-las; deve não somente não ser para eles uma desvantagem, mas, outrossim, ser uma vantagem.” ( FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo Penal. Trad. Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Távora e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 692.

233

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 3º da CF/88 e incisos: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

234 Várias outras decisões do STF trataram da proibição de retrocesso social, como as ADIs nºs 3.105-8-DF e

3.128-7-DF, o MS nº 24.875-1-DF e, mais recentemente, a ADI nº 3.104-DF. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul também já analisou o tema na Apelação Cível nº 70004480182, que foi objeto do RE nº 617757 para o STJ.

Por outro lado, os direitos de defesa, de um modo geral, são protegidos judicialmente sem afetar por demais as circunstâncias econômicas, porquanto os órgãos estatais encontram- se minimamente organizados.

É notório o fato de que os bens da vida são poucos e as necessidades do ser humano, muitas e infinitas.

Todos os direitos fundamentais, englobando direitos sociais e direitos de liberdade e defesa, possuem, de uma forma ou de outra, um custo financeiro para sua proteção e implementação pelo Estado.

Flávio Galdino, entendendo que os custos não são a única referência ou filtro para as decisões políticas e judiciais, sustenta que eles não podem ficar alheios à discussão sobre direitos fundamentais, nem pode ser alvo de fundamento para a proteção total dos direitos individuais e parcial dos direitos sociais.235

A efetivação do mínimo existencial não se sujeita à reserva do possível. Ressalva-se, portanto, a impossibilidade material de cumprimento da norma, gerando sua inexigibilidade, quando a escassez for impediente à sua efetividade prática, em caso de impossibilidade material.236

Nesse caso, a reserva do possível, mesmo sendo real, não torna os direitos liminarmente sem eficácia, porém obriga o poder público à alocação e ao conhecimento e análise de seus critérios, com o intuito de melhor concretizá-los.

Note-se, entretanto, que o Estado é uma estrutura prevista constitucionalmente para estar a serviço da coletividade e para proporcionar aos cidadãos as condições materiais mínimas de existência.

Pela CF/88, o homem foi alçado à condição de fim e o Estado de meio, um instrumento necessário para garantir o bem-estar geral, estando o princípio da dignidade humana como

centro do sistema político-jurídico-constitucional e objeto de prioridade dos gastos públicos e

previsões orçamentárias.

Nesse viés, o argumento da reserva do possível só se justifica na medida em que esse mesmo Estado promova a existência digna de todos, o que não reflete a realidade brasileira, onde se vê uma prestação deficitária de serviços públicos de saúde, de educação, de

235 GALDINO, Flávio. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos não nascem em árvores. Rio de

Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 230.

236

assistência social e outros serviços básicos, resultando diariamente, fruto dessa ineficiência ou omissão estatal, uma avalanche de ações judiciais, individuais e coletivas, como meio de acesso a esses serviços públicos.

Os problemas de “caixa” alegados pelos entes federativos não podem ser óbices à concretização dos direitos fundamentais sociais, pois se a efetivação desses direitos dependesse de esperar os “caixas cheios” do Estado, significaria, com isso, restringir a zero a eficácia desses direitos.237

Concorda-se com Ana Paula de Barcelos, quando afirma que a escassez de recursos existe e é uma contingência que não se pode deixar de lado, e os operadores jurídicos (advogados, defensores, promotores e juízes) devem estar atentos para esse fato, no desempenho de suas funções.

No entanto, continua a autora: “O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.”238

Lênio Luiz Streck assevera que a reserva do possível não induz a ineficácia jurídica dos direitos sociais, assinalando “unicamente a necessidade da sua ponderação.”239

A denominada reserva do possível é uma teoria desenvolvida na Alemanha, em um contexto histórico e social diferente em muito do retrato brasileiro, onde aqui se revela marcado pela extrema desigualdade social, ruins condições de vida para parte da população, má gestão das verbas públicas, corrupção, além de milhares de pessoas que não são providas das condições necessárias para uma existência digna.

Tal teoria (Bundesverfassungsgericht) respalda a tese de que o reconhecimento judicial dos direitos subjetivos a prestações ficam na dependência de existência de recursos financeiros para implementar políticas públicas nas áreas da saúde, educação, assistência, dentre outras.

Isso é o que acontece lá, que parte da doutrina pátria quer importar para a realidade brasileira, o que pode inviabilizar, assim, um maior controle das políticas sociais por parte dos tribunais.

237

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Op. cit. p. 315-325.

238 BARCELLOS, Ana Paula de. Op. cit. p. 245-246.

239 STRECK, Lênio Luiz. O Papel da Jurisdição Constitucional na Realização dos Direitos Sociais-fundamentais.

In: Ingo Wolfgang Sarlet (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direitos constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2003. p. 204.

Merece, pois, este tema, uma cautela maior por todos os envolvidos, não perdendo de vista que, acima de tudo, o ser humano está em primeiro lugar.

Andreas J. Krell, preocupado com essa situação de exclusão e a favor da intervenção judicial nesses casos, assevera: “as teorias desenvolvidas na Alemanha sobre a interpretação dos direitos sociais não podem ser facilmente transferidas para a realidade brasileira, sem as devidas adaptações.”240

De outro ângulo e paradoxalmente, não tem como não atrelar a efetivação dos direitos fundamentais sociais à necessidade de recursos financeiros para provê-los, sejam eles públicos ou privados.

É certo também que esses mesmos direitos não podem ficar reféns de obstáculos do tipo

reserva do possível.

Segundo Paulo Roberto Lyrio Pimenta 241, essa atuação jurisdicional para determinar a concretização de prestações sociais não pode ser realizada ilimitadamente, haja vista existir um custo financeiro para essa implementação, esbarrando-se, muitas vezes, em obstáculo financeiro-orçamentário para a outorga do direito almejado em juízo.

Mais adiante, Paulo Pimenta afirma que a teoria da reserva do possível não pode ser objeto de mero pretexto pelo Estado para se esvaziar o conteúdo do direito postulado. O Estado-réu tem o ônus da prova com relação à impossibilidade financeira de arcar com o pedido. O juiz deve decidir se a pretensão é razoável e proporcional, com a máxima cautela.

O que se tem observado, na praxe forense, é uma banalização do discurso por parte do poder público, quando faz sua defesa em juízo, não apresentando elementos concretos e fortes a respeito de não poder cumprir materialmente o decisório judicial. A alegada escassez deve ser provada, não devendo ser presumida.

O argumento da reserva do possível apenas deve ser acolhido pelo juiz se o Estado demonstrar concretamente que a decisão causará mais prejuízos do que vantagens à efetivação desses direitos.

240

KRELL, Andreas J. Op. cit. p. 107.

241 Ele alerta, ainda, que o juiz não deve deferir pedido que não se mostre adequado e necessário, como por

exemplo, ele, o juiz, determinar o fornecimento de um determinado medicamento que se mostre inadequado para o tratamento da doença do autor e, por consequência, para proteger o direito à vida. (PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Op. cit. p. 95-96).

Observando a realidade pátria, constata-se que, em sua maior parte, os direitos sociais dependem de regulamentação por meio de políticas públicas, dependendo sua implementação dos cofres da União, do Estado, do Distrito Federal ou do Município.

No Estado brasileiro, a atividade financeira é planejada por meio de um orçamento, o qual se revela como instrumento de atuação estatal, que estabelece os fins a serem alcançados, cabendo ao Poder Legislativo, no primeiro momento, a decisão sobre a destinação e aplicação dos recursos orçamentários.

Todavia, registre-se que essa competência é relativa, encontrando-se relacionada às normas da Constituição, de onde se extrai a liberdade de conformação do legislador nos assuntos orçamentários.

Essa liberdade do legislador tem limite e deve estar vinculada à observância do padrão mínimo necessário de qualidade de vida para o indivíduo.

Como observado por Regis Fernandes de Oliveira, orçamento é a “lei periódica que contém previsão de receitas e fixação de despesas, programando a vida econômica e financeira do Estado, de cumprimento obrigatório, vinculativa do agente público.”242

O orçamento público é positivado como uma lei que contém a previsão de receita e afixação de despesas para um determinado período (art. 165, parágrafo 8º, da CF/88).

O orçamento é também a via através da qual é permitido realizar políticas públicas. Nesse caso, há uma clara conexão entre direitos sociais e orçamento.

Nesse desiderato, Jorge Hage acentua que as decisões sobre o que é prioritário na utilização e destinação de recursos públicos “deixam de ser questões de discricionariedade política, para serem uma questão de observância de direitos fundamentais, de modo que a competência para tomá-las passaria do Legislativo para o Judiciário.”243

Vê-se, por isso, que a reserva de competência orçamentária do legislador não pode servir de obstáculo à intervenção judicial.

Mais uma vez traz-se aqui a decisão monocrática do Ministro Celso de Mello, do STF, na ADPF 45 MC, julgado em 29/04/2004, publicado em DJ 04/05/2004, que com relação ao tema reserva do possível, advertiu naquele julgado que o Estado não pode socorrer dela, à

242 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2008. p. 318.

243

exceção de ocorrência de justo motivo provado, com a finalidade de se eximir de cumprir as suas obrigações constitucionais, “notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”244

A questão dos custos, a escassez de recursos e as escolhas orçamentárias têm influência direta na efetivação dos direitos sociais.

Para Gustavo Amaral, é viável o controle das escolhas orçamentárias pelo Poder Judiciário, na medida em que existindo uma violação potencial ao direito cabe ao magistrado, então, “questionar as razões dadas pelo Estado para suas escolhas, fazendo a ponderação entre o grau de essencialidade da pretensão e o grau de excepcionalidade da situação concreta, a justificar, ou não, a escolha estatal.”245

Assim, cabe ao Judiciário fazer o controle do discurso e das condutas adotadas pelos agentes dos demais poderes públicos, na análise da pretensão positiva.

Na seara jurídica, a tese da escassez dos recursos utilizada na defesa do poder público para inibir o reconhecimento judicial dos direitos é chamada genericamente como cláusula da

reserva do possível.

Na avaliação de Ingo Sarlet, a reserva do possível apresenta-se com uma tríplice dimensão, a saber: “a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos e c) o problema da proporcionalidade da prestação, no que tange principalmente à sua exigibilidade e razoabilidade.”246

Todos os aspectos acima referidos interpenetram-se entre si e com outros princípios constitucionais, devendo ser levados em consideração no momento do julgamento do pleito.

Cumpre anotar que Ana Carolina Lopes Olsen reporta-se à escassez como uma circunstância artificial, sendo resultado da construção do ser humano, uma vez que não tem como satisfazer todas as necessidades e desejos em nível de excelência, motivo pelo qual a reserva do possível deve ser entendida como sendo “uma espécie de condição da realidade, a

244

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Conferir, em igual sentido, RTJ, 171/326-327, Rel. Min. Ilmar Galvão – AI 462.563/RS, Rel. Min. Carlos Veloso – AI 532.687/MG, Rel. Min. Eros Grau e RE 393.175/RS, Rel. Min. Celso de Mello.

245 AMARAL, Gustavo. Op. cit. p. 115. 246

exigir um mínimo de coerência entre a realidade e a ordenação normativa objeto da regulação jurídica.”247

Sendo assim, cabe questionar, por exemplo, se é possível falar em escassez de recursos para a saúde quando existem, na mesma peça orçamentária, recursos com propaganda governamental.

Essa discussão é oportuna e necessária, a fim de que os direitos fundamentais sociais tenham prioridade na alocação dos recursos por parte dos poderes constituídos, forte no princípio da dignidade humana, previsto na CF/88 (art. 1º, inciso III).248

Vê-se também que nada obsta que o juiz determine a inclusão no orçamento para o ano vindouro de verba específica para suprir a lacuna existente, evitando-se, assim, uma tensão maior nos conflitos com outros Poderes, ante a ausência de previsão orçamentária, no cumprimento, por exemplo, de uma decisão judicial.

Isso não impede que uma liminar seja imediatamente cumprida, quando for o caso de deferimento de uma tutela de urgência.249

No caso anterior, trata-se de hipóteses que demandam imediata intervenção do órgão judicial, porque a supressão de direitos fundamentais mínimos afronta de forma irreversível a dignidade humana.250

A prévia previsão da despesa orçamentária não é um fim em si mesmo, não podendo ser óbice para a materialização da essência do texto constitucional.

Assim, a reserva do possível é uma cláusula que deve ser objeto de análise e de sopesamento pelo magistrado, a fim de evitar prejuízos ao erário público e à sociedade como um todo.

247 OLSEN, Ana Carolina Lopes. Op. cit. p. 213.

248 Tome-se o exemplo dado por Nagibe de Melo: “[...] por uma grave deficiência no sistema de saúde de um

determinado município, verifica-se a falta de leitos nas UTIs para os neonatos, em razão disso, o número de crianças mortas logo após o parto aumenta muito acima da média histórica. Esses fatos são demonstrados pelo autor da ação. O julgador pode conceder uma liminar para que, no prazo máximo de 30 (trinta) dias, o poder público disponibilize mais 20 (vinte) leitos nas UTIs neonatais do município. Em casos como esse, parece bastante razoável a transferência de recursos orçamentários destinados ao gasto com publicidade para a saúde, por exemplo [...] Seja transferindo verbas da publicidade, seja transferindo verbas do turismo, a decisão será sempre uma decisão do poder público responsável por implementar a política pública.” (JORGE NETO, Nagibe de Melo. Op. cit. p. 151).

249

Nesses casos, argumenta Américo Bedê, “haverá a prevalência da decisão, pois a ponderação necessária para o encontro do núcleo essencial de direitos à regra da prévia dotação orçamentária não é absoluta.” (FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Op. cit. p. 76).

250BRASIL. Supremo Tribunal Federal. O Ag. RE 271.286 é o precedente condutor do STF em matéria de