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5 O DIREITO À SAÚDE E SUA JUDICIALIZAÇÃO

5.2 EXIGÊNCIAS E LIMITES À INTERVENÇÃO DO JUDICIÁRIO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

5.2.3 Proibição do retrocesso social

Um dos maiores desafios do Estado brasileiro é a manutenção dos direitos fundamentais

sociais conquistados no evolver de sua história - termo aqui utilizado como abrangente dos

direitos econômicos, sociais e culturais -, protegendo-os dos contratempos políticos e econômicos.

Muito embora a Constituição Federal de 1988 reconheça os direitos sociais como fundamentais, sendo, portanto, intangíveis diante das chamadas cláusulas pétreas, vários deles são efetivados através da legislação infraconstitucional, circunstância que pode facilitar sua redução ou supressão por meio de quorum parlamentar reduzido, levando, em alguns casos, se assim ocorrer, ao esvaziamento do mandamento constitucional a eles relacionado.

Trata-se de princípio imanente (não expresso, implícito) ao texto constitucional, cujo âmbito e significado, conforme Luís Roberto Barroso, é que “se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser arbitrariamente suprimido.”228

O autor asseverou que a vedação refere-se ao retrocesso arbitrário. O que se deve concordar com essa assertiva.

Defende-se, com efeito, que o princípio da proibição de retrocesso social é um princípio constitucional, com índole retrospectiva, na medida em que tem por fim a manutenção de algumas conquistas sociais, econômicas e culturais, indo contra a sua restrição ou supressão arbitrárias.

Essa garantia serve para concretizar os direitos sociais, de forma a impedir a arbitrária eliminação do grau de efetivação legislativa já conseguida e, por consequência, manter e melhorar o nível de bem-estar do povo possibilitado pela atuação do governo.

Destarte, é tema que se emerge no campo da eficácia dos direitos fundamentais sociais.

228

Nesse sentido, colaciona-se aqui lição de Canotilho e Vital Moreira, no sentido de que as normas da Constituição que conferem direitos sociais de caráter positivo redundam numa proibição de retrocesso, já que “uma vez dada satisfação ao direito, este transforma-se, nessa medida, em direito negativo, ou direito de defesa, isto é, num direito a que o Estado se abstenha de atentar contra ele.”229

José Carlos Vieira de Andrade sustenta uma posição relativamente cautelosa e restritiva nessa matéria, argumentando que a proibição de retrocesso social não pode ser vista como uma regra geral e absoluta, sob pena de influenciar negativamente a autonomia do Legislativo, uma vez que este não pode ser órgão de mera execução dos mandamentos constitucionais.230

A dinâmica das relações sociais e econômicas, especialmente no que se refere às demandas de prestações sociais garantidas pelo poder público, já torna inviável defender uma absoluta vedação de retrocesso em matéria de direitos sociais, porquanto os direitos fundamentais em geral não se qualificam como absolutos.

Ingo Sarlet, no campo do direito constitucional brasileiro, sugere que o princípio da vedação ao retrocesso seja extraído dos seguintes princípios e argumentos de matriz constitucional, a saber: a) do princípio do Estado democrático e social do Direito, alertando para a exigência de um mínimo de segurança jurídica; b) do princípio da dignidade da pessoa humana, que exige a satisfação através de prestações positivas, de forma a assegurar uma existência digna; c) do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos fundamentais, que consta do artigo 5º, parágrafo 1º, da CF/88; d) de manifestações específicas e expressas na Constituição, relacionadas à proteção dos direitos adquiridos, da coisa julgada e o ato jurídico perfeito, contra medidas de índole retroativa; e e) do princípio da proteção da confiança, onde se vê esta depositada pelos cidadãos na ordem jurídica como um todo, impondo ao poder público o respeito a isso, como exigência da boa-fé nas relações.231

De fato, retroceder em tema de direitos sociais induz uma natural frustração, uma quebra na relação de confiança no Estado. O retrocesso, além de gerar uma situação de

229 CANOTILHO, Joaquim José Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição. Coimbra: Coimbra,

1991. p. 131.

230 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Op. cit. p. 307-309. 231

insegurança jurídica (quais direitos teremos amanhã?), atinge também a dignidade dos cidadãos, que passam a não mais confiar no Estado.232

No caso, impõe-se que seja utilizada a ponderação de bens pelo aplicador da lei. Significa dizer que, em determinadas situações de fato, reconhecem-se que outros princípios venham a suplantar o princípio da proibição de retrocesso social, desde que preservado o núcleo essencial dele e vedando-se ao legislador a eliminação pura e simples da efetivação do texto constitucional, sem que se criem meios equivalentes ou compensatórios.

Cabe também ao Estado manifestar-se sobre a razoabilidade e necessidade da medida regressiva, tendo o ônus probatório nesse sentido. Afinal, o Estado brasileiro deve agir para alcançar os fins traçados nos incisos do art. 3º da CF/88.233

O STF fez o primeiro pronunciamento sobre a matéria através do acórdão proferido na ADI nº 2.065-0-DF, na qual se discutia a extinção do Conselho Nacional de Seguridade Social e dos Conselhos Estaduais e Municipais de Previdência Social.

Conquanto o STF não tenha conhecido da ação, por maioria, pelo entendimento de ter havido somente afronta reflexa à Constituição, destaca-se o voto do relator originário, Ministro Sepúlveda Pertence, que admitia a inconstitucionalidade de lei que apenas revogava lei antecedente necessária à eficácia plena de norma constitucional, reconhecendo uma vedação genérica ao retrocesso social.234