• Nenhum resultado encontrado

DOS DIREITOS SOCIAIS – APONTAMENTOS HISTÓRICOS NECESSÁRIOS

Não é possível tratar dos direitos sociais sem uma breve consideração do momento histórico do seu surgimento. Até porque, todo conceito, por ser histórico e temporal, demanda um olhar atento às circunstâncias que o envolvem.

Assim, o interesse em relação ao passado envolto no surgimento dos direitos sociais é tão somente pela luz que projeta sobre o entendimento presente dos aludidos direitos.

E não se divagará aqui com profundidade, até porque o tema da evolução dos direitos é denso por demais e justificaria um longo escrito para alcançar os seus aspectos mais relevantes, o que não é o objetivo deste.

Aqui, não se falará da evolução dos direitos fundamentais até o seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, tema que já fascinou diversos autores que escreveram sobre a evolução histórica dos direitos fundamentais.

De forma sucinta, no entanto, cumpre trazer à baila a ponderação da relevância histórica no evolver dos direitos fundamentais, levantada por Ingo Sarlet, cuja história aflui para o surgimento do moderno Estado constitucional, com o reconhecimento e proteção da dignidade da pessoa e dos direitos humanos.57

Do ponto de vista aqui delimitado, pode-se afirmar que os direitos sociais surgiram de uma evolução dos chamados direitos individuais, que eram, nos séculos XVIII e XIX, os direitos fundadores da organização estatal cujo objetivo maior era assegurar a ideia de liberdade numa perspectiva emancipatória do indivíduo.

Os direitos individuais eram o sustentáculo do modelo liberal de economia estatal que foi superado por um conceito que buscava o bem-estar da coletividade e não apenas do indivíduo, de modo que a vinculação do Estado passou a ser mais ampla, com foco na sociedade como um todo, com os seus anseios, e não apenas com o indivíduo na sua singularidade.

De certo modo, o trauma da primeira guerra mundial criou uma desilusão sobre a visão liberal do Estado em busca de um mundo melhor, permitindo a repercussão dos modelos

57

nazistas, fascistas e comunistas. Nesse diapasão, a economia de livre mercado foi também posta à prova, surgindo a grande depressão, violenta miséria, altos níveis de desemprego e diversas mazelas sociais.

Com essa realidade, o modelo até então liberal começa a se preocupar em reduzir as desigualdades econômicas, ajudar os pobres e os menos favorecidos, estendendo os direitos individuais em novas direções, o que perpassou pela mudança de alcance dos direitos, de individuais para sociais.

Bobbio alcança essa evolução de uma maneira diversa dos demais autores, sem se limitar ao entendimento simplista de uma mudança de geração de direitos quase que automática, pois enxerga os direitos do homem como um fenômeno social e, portanto, vistos numa ótica da sociologia jurídica.58

Essa visão explica a passagem dos direitos de liberdade, chamados também de liberdades negativas, para os direitos políticos e sociais, que, inegavelmente, requerem uma intervenção direta do Estado. Ou, em resumo, a evolução dos individuais para os direitos sociais.

Para os direitos individuais ou de liberdade, vale a concepção altaneira das Declarações de Direitos do Homem, pois tratavam todos como iguais, entendendo-se esta igualdade como formal, apenas no direito ao gozo de liberdade.

Diferentemente deveria ser o trato dos direitos sociais e políticos, pois, para esses, importa a diferença entre os indivíduos ou entre os grupos de indivíduos, o que não era diferenciado na primeira concepção.

Se nos direitos individuais pouco importava o sexo, a saúde, a condição financeira ou outros elementos distintivos, tais eram de inegável relevância no campo dos direitos sociais.

Assim, torna-se mera retórica a afirmação de plena igualdade dos homens, pois as diferenças específicas entre os indivíduos acabam tornando também diferente o acesso ao exercício de algumas liberdades, o que faz surgir uma concepção inegável de desigualdade, a

58 Para tanto, o autor levanta as seguintes causas: “a) porque aumentou a quantidade de bens considerados

merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos de sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. Em substância: mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo.” (BOBBIO, Norberto. Op. cit. p. 63).

demandar intervenção do Estado na solução de situações em que a diferenciação resultava em graves injustiças.

O surgimento dos direitos sociais traz consigo uma consequência inexistente no mesmo grau quando a proteção está apenas nos direitos de liberdade e políticos.

É que para a sua asseguração, inegável uma intervenção ativa estatal na proteção de necessidades coletivas ou públicas, feita através da prestação de serviços públicos, o que faz surgir uma nova concepção de Estado, que não apenas protege o indivíduo de mal ferimento em suas liberdades, como sobretudo precisa atuar, tornar-se maior e mais protetivo, o que ampliou significativamente a sua estrutura e os seus custos.

José Afonso da Silva59 conceitua direitos sociais como prestações positivas realizadas pelo Estado direta ou indiretamente, “enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais.”

Para ele, são direitos que se relacionam com o direito de igualdade, criando condições materiais mais favoráveis para o exercício da igualdade real.

A Constituição brasileira de 1988, como toda Constituição moderna, incorporou essa concepção dos direitos sociais, servindo assim de marco jurídico numa proteção institucionalizada de direitos ainda não vista.

Surgiu num momento histórico relevante, marcando a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964 e refletindo o consenso democrático de que ao Estado cabia a proteção daqueles que, por serem desiguais, mereciam tratamento diferenciado que os elevassem à tão almejada igualdade.

Assim, baseado no valor da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III da Constituição Federal), a nova ordem constitucional estabeleceu um núcleo conformador de todo o ordenamento jurídico, avançando de forma extraordinária na proteção dos chamados direitos sociais e elevando-os, como os demais direitos fundamentais, ao patamar das cláusulas pétreas (art. 60, § 4º da Constituição), formando o núcleo material intangível da Constituição.

De modo inegável, a Constituição de 1988 trouxe marcos na concepção dos direitos sociais.

59

Se, por um lado, a Constituição acolheu a ideia de universalidade dos direitos humanos, consagrando a dignidade humana como princípio fundamental do novo constitucionalismo, inclusive como tema de legítimo interesse da comunidade internacional, por outro lado, é a primeira Constituição a acolher os direitos sociais, na íntegra, como fundamentais, num capítulo especial, direitos estes outrora pulverizados dentre diversos artigos nas Constituições anteriores.

O seu rol vem expresso no artigo 6º do texto constitucional de 1988, recentemente alterado e ampliado com mais um exemplo, sempre crescente, de feição fortemente atuante do Estado.60

Afora essa concepção, a Constituição apresenta uma ordem social com um amplo conjunto de normas que determinam atuações específicas do Estado, programas, metas, diretrizes e prioridades que devem ser perseguidos pelo Estado e exigidos pela sociedade.

A título de exemplo, tem-se a ordem social, que fixa a saúde como direito de todos e dever do Estado (art. 196), o direito à educação (art. 205), inclusive como direito subjetivo em algumas hipóteses, as práticas desportivas (art. 217), dentre outras hipóteses.

Com este panorama, pode-se dizer que a ordem constitucional de 1988 acabou por “aumentar o tamanho do Estado”, trazendo para o seu bojo fins econômico-sociais, vinculados através de normas jurídicas.

Ocorre que, inegavelmente, o atingimento desses fins depende da realização de políticas públicas, a significar, deste modo, que até mesmo o campo da política pública não pode mais ser concebido como um domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado.

Antes, porém, há fins e metas amplamente suportados por normas jurídicas, limitadoras e conformadoras das políticas públicas que se visa a alcançar, gizando, assim, a atividade política com contornos nitidamente normativos.

A proteção se deu em tamanho grau que o constituinte alcançou até mesmo a etapa posterior da simples previsão do direito, limitando a liberdade do Executivo nos gastos públicos, obrigando-o, em algumas situações, a despender determinados valores vinculados a

60

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Art. 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010).

percentuais de suas receitas orçamentárias, a fim de que alguns direitos sociais fossem minimamente protegidos.

Tal se deu, por exemplo, em relação ao direito à saúde e à educação, em que o legislador constituinte previu percentuais da receita orçamentária.61

61 Em relação ao direito à educação, dispõe o artigo 212 da Constituição: “Art. 212. A União aplicará,

anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.” Em relação ao direito à saúde, os recursos orçamentários serão dispostos em conformidade com os critérios estabelecidos no art. 198 da Constituição, estando, atualmente, em, no mínimo, 12% para os Estados e 15% para os Municípios.