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C ARLOS DE M ACEDO E D IÁRIO DE UMA M ENINA F ÚTIL : “ A MINHA PRÓPRIA IMAGEM DEFORMADA ”

2.1 U MA ARQUEOLOGIA APROXIMATIVA ‒ CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

2.3.3 C ARLOS DE M ACEDO E D IÁRIO DE UMA M ENINA F ÚTIL : “ A MINHA PRÓPRIA IMAGEM DEFORMADA ”

Carlos Lemonde de Macedo (1921-1996), poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta, publicou, em 1954, o Diário de uma Menina Fútil. A despeito da esquemática ingenuidade da sua diegese, esta novela explora, com originalidade digna de menção, algumas particularidades ligadas à reconversão ficcional do diário, atinentes sobretudo aos códigos ótico-grafémicos e à sintaxe espacial do texto.

Esta “novela-diário” encontra-se dividida em nove capítulos, embora estes se encontrem apenas sinalizados pela mancha gráfica e não numerados ou titulados. Cada uma dessas secções corresponde a um período de tempo mais ou menos delimitável, sendo que, no conjunto, o diário recobre cerca de um ano, sabendo-se que foi iniciado em janeiro e concluído em dezembro do mesmo ano. Cada um dos capítulos reúne vários fragmentos não datados e, ao longo do texto, alguns informantes permitem a sua circunstanciação temporal, como a referência ao Carnaval, à Páscoa, à data de

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casamento de António Maria, aos meses de verão, etc. Assim, as entradas encontram-se separadas por estrelas que parecem inspirar-se na decoração adolescente dos cadernos diários. Apesar de não se tratar propriamente de uma adolescente, a jovem diarista, de apenas vinte e dois anos, é caraterizada pela sua futilidade, tanto de modo direto – por Joca, seu amigo, e pelo próprio autor, como fica claro no título que elege –, como indiretamente, a partir da observação do seu comportamento.

Um outro procedimento inovador consiste na elisão de troços textuais cuja responsabilidade é atribuída ao autor-editor. Essa omissão, que ocorre em dois momentos, é justificada em rodapé, esclarecendo-se que o passo se encontra “ilegível no original”, numa óbvia reprodução de um efeito de real, comunicando a impressão de se tratar o diário de um documento autêntico. Alias, como o prefácio indica, o autor deseja firmar um contrato de leitura com o seu leitor, propondo-lhe as premissas que ele deve aceitar, enquanto ele, como autor, se compromete a instaurar a verosimilhança que esse pacto reclama:

Tudo se passou como se alguém, amplamente qualificado para o fazer, entregasse ao autor o manuscrito onde a menina fútil arquivara seus sentimentos e lhe desse inteira liberdade para dispor dele.

A minha colaboração na obra seria assim meramente formal; reduzir-se-ia a retocar, corrigir o esboço informe, respeitando a sua essência.

O terem decorrido alguns anos entre a sugerida recepção do manuscrito e a publicidade que agora lhe dou; justificará as inevitáveis desactualizações do texto.

Despersonalizando-se, o autor esforçou-se por suprir as lacunas do original. E julgar-se-á satisfeito se o arranjo não destruiu a unidade do depoimento. (Macedo, 1954: 3)

A diarista é uma jovem que inicia o seu diário sem qualquer justificação e, ao longo dos primeiros fragmentos, mostra-se angustiada com o casamento de António Maria que, só mais tarde, percebemos ser seu irmão, expressão de parentesco que ela se esquiva a usar. À medida que os episódios se sucedem, torna-se evidente que o afeto que nutre pelo irmão e a aversão que demonstra pela futura cunhada não se resumem a amor e ciúme fraternal, mas a uma pulsão morbidamente incestuosa que, entre erupções e recalcamentos, nos vai sendo apresentada num crescendo de expectativa.

A escrita do diário assume, para esta menina fútil, funções plurais. Devido à natureza transgressiva dos seus sentimentos, a jovem diarista não se identifica projetivamente com ninguém e, deste modo, o diário serve de seu fiel e discreto companheiro nos momentos de profunda solidão:

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105 Escrevo estas coisas sem saber porquê. Deu-me hoje para isto.

Os pais saíram, foram ao teatro. Aqui ao lado – estou na casa de jantar – a criada de sala conversa com a cozinheira. Chove torrencialmente. E eu fecho esta página do meu diário como quem regressa de muito longe. (ibidem: 68)

O diário da jovem, cujo nome desconhecemos, possibilita-lhe um exercício de autognose, por meio do qual se procede à sondagem dos seus próprios sentimentos:

Desde Janeiro que confio as minhas impressões às páginas deste diário. Não as tinha ainda relido e resolvi fazê-lo. Achei-me sentimental e romântica. Mas – Deus meu! – que posso eu fazer se sou exactamente o que estas palavras, dia a dia alinhavadas, revelam?

E vou-me compreendendo. Vou compreendendo que tenho usado de um disfarce. Para com os outros… ainda vá! (ibidem: 36)

A diarista encontra também no seu registo uma forma de libertação catártica e um espaço que viabiliza a confissão do inconfessável recalcado:

Precisava de alguém que me aconselhasse. Mesmo o meu padre confessor talvez não me compreendesse. Há tais subtilezas no problema que debato em mim, que possìvelmente nem eu própria encontraria as palavras adequadas…

Só posso confiar no meu diário… (ibidem: 48)

Escrevo. Escrevo sempre. Só quando me sento à secretária e vou enchendo de caracteres as folhas brancas me consigo libertar. (ibidem: 75)

O drama adensa-se quando alguém lê este diário, cenário ficcional frequente no repertório de motivos correntes no romance-diário, e descobre o seu segredo, deixando a jovem em desespero, uma vez que tomava sempre precauções para que esta fatalidade nunca viesse a ocorrer:

Quarta-feira, quando cheguei a casa, o meu diário não estava no seu sítio habitual, na gaveta da secretária. Costumo fechá-la à chave, mas desta vez devo ter-me esquecido.

Quem terá sido? (ibidem: 31)

Esta peripécia precipitará todo o desfecho, porque, para a diarista, já não é possível controlar ou reprimir o seu amor interdito, na medida que este foi já descoberto, principalmente porque alterações no comportamento de António Maria parecem indiciar ter sido ele próprio a ler furtivamente o seu diário. Assim, a diarista transcreve, no seu diário, a carta que gostaria de dirigir ao irmão, não tendo, contudo, intenção de lha entregar:

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106 Bastava não teres descoberto o meu diário para que eu

continuasse a minha guerra. Até à vitória? Até à derrota? Como quiseres. Por um estúpido e imperdoável esquecimento eu compliquei coisas que já de si não eram simples. (ibidem: 41)

Ainda tenta ocupar-se, por conselho do amigo Joca, com crianças desfavorecidas, aceita a proximidade deste, mas não consegue evadir-se do seu sentimento e alterar a sua personalidade, considerando-a repulsiva e deformada:

Fui fraca, reconheço-o. Fraca sobretudo por ter vasado neste papel gotas e gotas de sangue negro. Neste papel onde não encontro senão a minha própria imagem, a minha própria imagem deformada. (ibidem: 76)

O agravamento do seu desequilíbrio psíquico conduz a diarista à aniquilação física e ao descontrolo emocional, documentados ambos no seu diário, sob a forma de pungente derrame verbal:

É isto que sinto. A minha mão desenha caracteres confusos. Escrevo sem saber o que escrevo. Aqui e ali, mais por instinto que por reflexão, ponho uma vírgula, fixo um ponto. Mas não sou eu que falo. É algo que tenho cá dentro, algo que se libertou e que não posso dominar. (ibidem: 80)

No dia 13 de dezembro, o único que aparece segmentado em horas (num total de oito fragmentos), a diarista vai registando o seu derradeiro dia, pressagiando uma despedida iminente. Às dez horas, no seu quarto, ingere os comprimidos que havia antes comprado e escreve febrilmente no seu diário, enquanto aguarda a chegada lenta e inexorável da morte, revelando um certo comprazimento patético na sua progressiva agonia:

A chuva lava tudo. As lágrimas, não. Se lavassem, queimava o meu diário. Depois chorava. Mas nem mesmo a chuva lava completamente. Ficam sempre manchas nos destroços. Nódoas. E queimar o diário seria queimar-me viva. Cinzas, só cinzas…

[…] Se eu queimasse estas folhas talvez tudo se simplificasse. Mas dia a dia, fui adiando a minha confissão. Agora quero pôr ponto final.

Sinto-me cansada. O cérebro hesita mas a mão escreve. Saber escrever!... Devia ser tudo oral. Não, devia ser tudo silêncio. As palavras, sorrisos ou olhares… Tenho escrito tanto! Lido tanto! Até romances policiais. Mas nenhum como o meu. O meu tem base real e depois torna-se pura imaginação. Imaginação que venceu todas as barreiras e se tornou carne, a minha própria carne. Imaginação que foi a minha maior inimiga… (ibidem: 90-92)

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Estes comentários finais da “menina fútil” demonstram o investimento valorativo de que é objeto a notação diarística, ao ponto de a identificação com o seu caderno ser tão profunda que queimá-lo equivaleria a imolar-se viva. Aliás, segundo esta linha de permutabilidade entre vida e escrita, o diário assume uma importância maior do que a própria experiência vital, uma vez que a diarista tem coragem para se suicidar, mas não para destruir o seu registo, ao qual se confia a perpetuação da memória de uma existência de contornos melodramáticos, em que são fluidas as fronteiras que separam o real da sua fixação tumultuosa em escrita.

O estilo de escrita é caraterizado pela própria diarista como “quase telegráfico”, evidenciando, contudo, uma constante preocupação com a dignitas do registo, na medida em declara evitar a dicção rasteira (ibidem: 22) a que recorreu no passado.

A novela explora, assim, o motivo da violação do diário e, sobretudo, a notação gráfica substitutiva da datação convencional, tornando explícita a centralidade do pacto de verosimilhança estabelecido com o leitor. Até certo ponto, a engenhosidade da forma permite compensar a exploração previsível do patético e do melodramático, denunciando óbvias concessões ao gosto literário dominante.