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O LGA G ONÇALVES E S ARA : “ A GRANDE DESCOBERTA ”

2.1 U MA ARQUEOLOGIA APROXIMATIVA ‒ CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

2.5.2 O LGA G ONÇALVES E S ARA : “ A GRANDE DESCOBERTA ”

O diário permite preservar um espaço de expressão íntima, sobretudo quando a liberdade exterior se encontra sujeita a constrangimentos. Em modalidade confessional ou catártica, o diário permite uma licença autoexpressiva, tanto à escala individual como comunitária. Olga Gonçalves (1929-2004), através de um romance-diário, tematizou a libertação disruptiva dos sentimentos, a emancipação reivindicativa de tabus e repressões, elegendo o ponto de vista de Sara, uma jovem testemunha do Portugal pós- revolucionário.

Sara é a protagonista de dois romances de Olga Gonçalves. No primeiro,

Mandei-lhe uma Boca (1977), é ainda uma jovem adolescente, de cerca de dezassete anos, que confidencia as suas angústias e ansiedades. Como sintetiza Maria Graciete Besse,

Nesta obra, Olga Gonçalves apresenta-nos o longo discorrer de uma adolescente (Sara) em busca de si própria. A personagem constrói-se pouco a pouco, através de um discurso directo, aparentemente espontâneo, dirigido a Riva (uma amiga da mãe) que assume as funções de narratária silenciosa, e cujas reacções vamos conhecendo de forma indirecta. (Besse, 1994: 91)

Anos mais tarde, é publicado Sara (1986), o diário da protagonista, agora estudante de filosofia, já com cerca de vinte e cinco anos, onde são retomadas e esclarecidas questões deixadas em aberto87 no primeiro livro. Nele se regista a sua evolução e demanda de identidade, substituindo Riva – que permanece, não obstante, ainda uma boa amiga e confidente – pelas páginas de um diário.88

Enquanto que, em Mandei-lhe uma Boca, a irreverência adolescente de Sara leva a diarista a narcisicamente tudo fazer gravitar em seu torno, em Sara, a jovem investiga o futuro da sua geração apática, escrutina os efeitos da Revolução de 74, mostrando uma maior atenção extroversiva e vontade de relação com os outros. No entanto, o facto de manter um diário demonstra igualmente a necessidade de apaziguar os seus dilemas

87 No primeiro livro, Sara desconhece os motivos das estranhas viagens da mãe para a Suíça, da saída de

casa de Rosarinho e do regresso de Diogo. Estes pormenores são-nos revelados em Sara, talvez porque, com a idade, a protagonista adquiriu maior maturidade para ler os acontecimentos à sua volta.

88 Na verdade, o efeito interacional desta permuta não é muito significativo, na medida em que a

personagem Riva do primeiro romance é tão silenciosa quanto o diário. No entanto, a diferença fundamental reside no facto de, no primeiro caso, todos os episódios serem narrados com recurso à memória, pois são contados num fim de semana, através de um discurso retrospetivo; por sua vez, em Sara, a escrita é regular e ocorre pouco tempo depois dos acontecimentos, sendo que as revelações são fornecidas gradualmente e ao ritmo da escrita progressiva da diarista.

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interiores e descobrir o seu lugar no mundo, num trajeto progressivo de autoconhecimento e conquista de consciência social.

O incipit de Sara, apresentado na terceira pessoa por um narrador cuja identidade desconhecemos (porventura a própria Sara, enquanto instância autoral do diário, quando o prepara para a publicação), elucida o leitor acerca do volume que está a ler, justificando a sua publicação e delineando um previsível horizonte de expectativas – trata-se, com efeito, de páginas do diário íntimo de Sara que foram, porém, sujeitas a um processo de seleção e de revisão:

[…] voltou ao quarto, fechou a porta, aproximou-se do baú. Tocando-lhe levemente, ajoelhou, depois sentou-se na carpete. Sabia- lhe bem ficar ali, o coração a bater descompassadamente, ficar ali tamborilando os dedos, comprazer-se na memória das folhas arrancadas aos diários. A selecção estava feita. E as alterações que se propusera. Numerava finalmente as páginas.

[…] foi buscar uma pequena lapiseira à secretária preparando-se para a última censura.

Ergueu a tampa do baú.

Com os olhos cheios de centelhas retirou um pesado maço de folhas manuscritas. […]

Era fácil dizer: ‘Tenho aqui o meu primeiro romance’! Excessiva a pergunta: ‘Quero eu preservar a minha imagem para o futuro?’ talvez a condição existencial do homem pudesse tornar-se no futuro um ritual iluminado. Sem a carência de outros indícios, outras viagens, a desmaiada memória de outro tempo.

Antes de fazer uma leitura definitiva, encostou ao peito o volume que parecia agigantar-se, abranger o mundo inteiro. Surpreendeu-se a reflectir no poder mágico desse contacto. (Gonçalves, 1986: 9)

Este trecho inicial suscita algumas reflexões. Em primeiro lugar, revela-nos o local onde Sara guarda o seu diário – num baú, que, como a diarista explicará num dos capítulos subsequentes, lhe foi oferecido pela avó. É significativa a referência ao baú, na medida que este reativa o imaginário infantil dos tesouros escondidos e retoma o topos do secretismo da escrita. Por outro lado, Sara parece resolvida a partilhar este tesouro com o mundo, dado que, superado um período da crise de construção da sua identidade, deixa de verificar-se a necessidade de o manter secreto:

Ao desenterrar o seu diário do fundo da arca, Sara revive as derrotas sofridas e as vitórias ganhas ao longo do seu processo de amadurecimento. A construção da sua identidade está concluída. Sara tem agora a sua vida nas próprias mãos. O seu diário é o testemunho dessa longa caminhada que permite a Olga Gonçalves e, em última instância ao leitor também, tomarem consciência da luta da Mulher

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151 Portuguesa contemporânea pela sua emancipação. (Silva-Brummel,

2002: 193)

Além disso, esta vontade de partilha conduz Sara a ponderar o projeto de publicá-lo como o seu “primeiro romance” e, para tal, procede a uma seleção dos cinquenta e seis fragmentos, numerando-os e introduzindo-lhes alterações, de modo que, como refere Paula Morão, “assim se define a passagem do diário ao romance”89.

(Morão, 1988: 122) Desconhecemos a amplitude das suas modificações, mas a organização do texto em capítulos, e não em fragmentos datados, é decerto fruto do seu labor de revisão do texto.

Desta forma, a publicação do diário, bem como a sua divisão em capítulos não datados, parece tornar incerta a sua caraterização genológica:

A primeira observação que podemos apontar é que, na realidade, não se trata propriamente de um diário, visto que não há referência às datas, como seria de esperar neste género literário. Com efeito, Olga Gonçalves não respeita […] o calendário […]. Outra característica do diário é o segredo. A partir do momento em que decide transformar os seus cadernos em romance, Sara procura claramente um destinatário. (Besse, 2000: 42-43)

Nesta linha de argumentação, Maria Graciete Besse opta por designar Sara como um “romance íntimo” e não como um romance-diário. Preferimos, ainda assim, a segunda designação, uma vez que o critério da datação não é, como repetidamente temos insistido, imprescindível à conformação do subgénero90 e porque a publicação

89 Segundo Paula Morão, a incursão de Olga Gonçalves no território da literatura juvenil não é

inteiramente bem sucedida, na medida em que o texto apresenta várias fragilidades, como um desequilíbrio evidente no plano da escrita, com recurso (por vezes, exagerado) ao calão e à gíria. Numa tentativa de se evidenciar uma personagem livre e sem preconceitos, Sara não deixa de formular, porém, alguns juízos de valor, propagando tabus de vigência imemorial. Assim, apesar de Paula Morão destacar o desfecho do romance-diário, sobretudo a autoanálise a que Sara procede dos seus sentimentos e a sua clara evolução, como o ponto mais positivo do romance, refere também que “isso não chega para o remir das incapacidades várias, a nível da escrita e das próprias ideias, que demonstra na intenção implícita de fazer um retrato convincente da juventude urbana dos anos 80.” (Morão, 1988: 123)

90 Segundo Trevor Field, apesar de a menção da data ser um aspeto recorrente, não é prerrogativa

obrigatória do género: “Although dates are very frequently used in such accounts, and represent the most obvious mimetic device of all, they are not in fact a necessary condition of the diary novel.” (Field, 1989: 7)

Este é um aspeto importante a reter, uma vez que pode conduzir a alguns equívocos. Nem todos os diários fazem anteceder de datação os fragmentos, optando, por exemplo, pela sua numeração. Por outro lado, a datação não é exclusiva deste género, sendo também presença habitual, por exemplo, no género epistolar. Olga Gonçalves publicou, aliás, duas outras obras que são, de facto, reminiscentes do diário, chegando, por vezes, a serem consideradas como tal: “Se considerarmos o diário de ficção como uma narrativa destinada a publicação, escrita na primeira pessoa do singular em forma de diário, onde fragmentariamente se regista um tempo presente a decorrer e sobre ele se reflete, então teremos que incluir neste género três das obras em prosa de Olga Gonçalves: A Floresta em Bremerhaven, 1975, Este Verão o Emigrante Là-Bas, 1978 e Sara, 1986”. (Silva-Brummel, 2000: 187)

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intencional de diários tem sido práticacorrente, a ponto de o diálogo entre o diarista e o seu leitor ter já sido apontado como uma das marcas distintivas do género diarístico moderno. (Boerner, 1978: 220). Além disso, apesar das anunciadas alterações introduzidas por Sara no manuscrito, este conserva ainda marcas da escrita diarística original: uso de um registo descuidado e espontâneo (com recurso ocasional ao calão), informações pontuais sobre o local de escrita e até episódios suspensos por interrupções externas (como a hora do lanche), alusão a episódios banais do quotidiano, etc.

A diarista vai registando as suas conquistas e a resolução dos seus conflitos íntimos, apresentando-os como decorrentes de um processo natural de maturação. Uma destas etapas consiste na superação do conflito de gerações, bem vincado no romance

Mandei-lhe uma Boca, aprendendo a aceitar a diferença e emancipando-se em relação ao código comportamental e ético preceituado pela família e pelo meio de origem. Uma segunda etapa deste processo relaciona-se com a libertação de uma relação insatisfatória com Guilherme, cuja mentalidade machista e preconceituosa a desgosta. Será, portanto, a mulher, convencionalmente encarada como elemento passivo da relação, a pôr fim a um compromisso estável. Durante este processo, Sara reflete sobre o seu futuro como estudante finalista de Filosofia, o seu papel na sociedade e outras questões socialmente candentes ao tempo, como a infidelidade, a homossexualidade, o aborto, as drogas, entre outros. Depois de exorcizar os seus “fantasmas” interiores, conclui a construção da sua identidade e a justa perceção de si própria e dos seus desejos, condição necessária para a etapa final – uma relação satisfatória e altruísta com o Outro, aqui corporizado em Diogo. O diário acompanha Sara durante toda esta trajetória maturacional, documentando a educação sentimental da protagonista. Num dos capítulos iniciais, Sara esclarece a data de início do registo e o valor que lhe atribui:

Escrevo.

Escrevo um diário desde que entrei para a faculdade.

Ainda que Fernanda Silva-Brummel distinga as duas primeiras obras referidas de Sara, pela inclinação intimista patente nesta última, não as consideraremos como romances-diário, devido ao projeto anunciado, em ambas, de recolher elementos para um estudo, de contornos quase sociológicos, sobre a emigração. De facto, apesar da datação comum ao género diarístico, Maria Graciete Besse considera-os uma espécie de “roteiros”: “Escrito sob a forma de roteiro, o romance oscila ao sabor de uma deambulação que ocupa quinze dias de férias. […] no entanto, não se trata de um diário íntimo, apesar de encontrarmos o respeito pelo calendário, típico deste género literário, como indica Blanchot, uma vez que o objectivo da obra não é a análise da intimidade da narradora, mas antes uma hábil construção das mundividências dos emigrantes regressados há pouco tempo da Alemanha.” (Besse, 2000: 17)

Apesar de estas palavras aludirem ao romance A Floresta em Bremerhaven, o projeto ficcional de Este Verão o Emigrante Là- Bas é muito semelhante.

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153 No Baú foi aumentando o volume dos cadernos, e porque

ninguém alguma vez os leu, tudo sobre mim é vago. As pessoas aproximam-se, tacteiam, mas eu estou para cá da porta. Não sei se faço o estilo, se me falta, se algum dia estarei na posse dele.

Muitas vezes, as palavras surgem com o seu corpo necessário, o seu papel específico, algumas repetições, o pensamento cru, das imagens. Esquadrinho a mente em seu poder oculto, dou-me conta de que escrever é perigoso. Delicado e perigoso. Mas ímpar. Fantasiosa ou não, agrada-me o comando deste labor, que por pedras escorregadias me comanda, em cada página assentando uma sombra descomunal do seu próprio mecanismo. Então dói-me, e sigo-a. Não por disciplina, e tão-somente por gosto: o mesmo que sinto ao pôr tudo em questão. (Gonçalves, 1986: 16)

De facto, neste processo dialético de demanda identitária, Sara reconhece o valor da escrita diarística como instrumento crucial para a sua autodescoberta e equilíbrio interior:

Até para me compreender, frente ao que me vai chegando de mim própria no rasto do que escrevo. Por que o que escrevo desintegra as minhas tensões, sitia a desordem, solta e separa as notas graves. Se os relatos dão ênfase ao quotidiano, observar e reflectir revalorizam as cores que ficaram de pé, e que podem fazer-nos chegar ao nosso possível, ao nosso impossível, ao que não sabemos que somos.

Tem sempre acontecido perante a folha branca a grande descoberta. Na folha branca não me traio nem sou traída. Nela aprendo que somos todos ar livre e calabouço, e que vivemos em tribos. (ibidem: 152)

É em conversa com Riva, a habitual interlocutora, que Sara revela o seu projeto de publicar o diário. Com tal objetivo em mente, sublinha que fará anteceder a sua publicação de um trabalho de revisão:

Porque lhe contei o meu projecto: rever os diários que escrevo há mais de quatro anos; seleccionar textos de forma a construir um romance, fazendo as alterações necessárias para a sequência; trabalhar mais o diálogo; ou mesmo introduzir mais diálogos; decidir quanto ao número de capítulos. E achar um final para o livro, acrescentei dando aos ombros em sinal do que poderíamos classificar de desânimo. (ibidem: 201)

Este projeto de metamorfosear o diário em romance implica, necessariamente, pôr-lhe um ponto final. É comum, como dissemos, os adolescentes escreverem diários, mas nem todos se prolongam durante a idade adulta. Sara, apesar de ter encetado este projeto numa fase já tardia – a entrada para a faculdade –, faz coincidir o seu termo com

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o fim deste período da sua vida – o fim do curso. Visto não ser este o final que ambiciona, Riva propõe-lhe uma alternativa:

‘Um final para o romance que, se quiseres, já não será a tua biografia…’ Ouvi bem. Que se quiser já não será a minha biografia. Que me permitirá mexer, jogar com as imagens. Mas assusta-me. Assusta-me um pouco a operação em que estarei envolvida, ainda que livre para inventar um fim que se ajuste ou não ao meu desejo.

‘De qualquer maneira, ficarás sempre nele inscrita.’ (ibidem: 201)

Este fragmento torna o desfecho, na sua semântica inconclusiva, muito mais desafiante, na medida em que o leitor não chega a perceber se os dois últimos capítulos, escritos no mesmo estilo de todos os anteriores, integram o diário que se crê de Sara ou constituem antes o desenlace romanesco que procurou dar-lhe. Para explicar o fim da relação de Diogo com a suposta namorada, Sara diz que é “hora de voltar a câmara para um tempo mais adiante, de contar também em flash-back, de transpor o limiar de grutas que não constam nos cadernos tirados do baú.” (ibidem: 205). Sara conta, então, como estão felizes juntos e revela os seus projetos de vida em comum.

Esta sobreposição de diferentes hipóteses ficcionais constitui um traço verdadeiramente original do modo de narrar de Olga Gonçalves:

[…] nos romances de Olga Gonçalves, a experiência da palavra confunde-se geralmente com a experiência da vida. No entanto, a textualização do real funciona quase sempre como um espaço de ambiguidades, pela confusão que se estabelece voluntariamente entre a ficção e a realidade. (Besse, 1999: 9)

Assim, Olga Gonçalves, através da estrutura do romance-diário, investe os conflitos de Sara de um alcance paradigmático e transindividual, sinalizando, por seu intermédio, os dilemas de uma geração e a crise identitária de um país à deriva, filtrados pela subjetividade libertária, e mesmo insurreta, desta jovem:

Consequentemente o diário de ficção na obra de Olga Gonçalves […] transforma-se no diário da consciencialização do leitor para a realidade. Em última analise, ele é também o diário de um certo tempo português, um tempo de crise e de ruptura: as três últimas décadas do século XX. (Silva-Brummel, 2002: 194)

Como esperamos ter demonstrado, o diário ficcional e, sobretudo, o romance- diário, desde a sua génese em Portugal, no final do século XIX, até às suas plurais modulações contemporâneas, têm sido presenças assíduas no campo literário português.

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Os vários exemplos aqui recenseados pretenderam-se, sobretudo, expressivos da latitude ideotemática e técnico-compositiva do subgénero, bem como do seu fecundo proteísmo. As múltiplas concretizações originais de que tem sido objeto, a incessante renovação estilística e processual que tem evidenciado, aliadas a uma capacidade de permanente adaptação a novos públicos, linguagens e mundivisões, permitem preludiar uma promissora trajetória literária ainda por cumprir. Será, previsivelmente, por via da exploração intensiva de um amplo repertório de estratégias de representação ficcional – da refuncionalização do aparato paratextual à criação de ficções editoriais, da rendibilização da semântica espacial do texto à indeterminação plurivocal – que o romance-diário poderá ainda garantir o seu devir.

Esta proposta de mapeamento cronológico da ficção diarística – e, especialmente, do romance-diário – em Portugal, permitindo elencar os seus gestos processuais e dar conta das suas capacidades de reconfiguração genológica, esclarecerá o caminho que nos propomos, em seguida, percorrer: a análise da produtividade semântica e técnico-narrativa do diarismo em cinco narrativas portuguesas contemporâneas. É, portanto, do diário na mesa de trabalho do romancista que agora nos ocupamos.

Sem Teto, entre Ruínas: o Diário na Ficção de Augusto Abelaira

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3.SEM TETO, ENTRE RUÍNAS: O DIÁRIO NA FICÇÃO DE

AUGUSTO ABELAIRA

Mas o que mais me apaixona nos carteiristas é que algo existe neles que os aproxima dos escritores. Vejamos: o carteirista rouba carteiras, não é? O escritor também rouba alguma coisa. Que coisa?

Palavras.

(Abelaira, 1995: 45)

Augusto Abelaira foi um dos autores que trilharam os caminhos do romance- diário no campo literário português, constituindo a narrativa de Bolor um dos exemplos mais notáveis e estimulantes do subgénero, tendo em vista a sua inaugurante originalidade.

A obra abelairiana é, sobretudo, marcada por uma amarga consciência da desagregação do universo social e da falência das suas estruturas, da impotência do homem perante o fluir do Tempo e por um disfórico ceticismo em face do (im)poder da linguagem como meio de comunicação e como dispositivo de representação do real. No entanto, as suas reflexões em torno desta última questão são talvez o traço distintivo mais peculiar da sua obra. O comentário reproduzido em epígrafe foi colhido numa crónica publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias e reflete exatamente a preocupação do autor com o valor da linguagem e a natureza convencional das palavras, impregnadas de um sentido que lhes foi atribuído pelo tempo e pelo consenso comunitário, que o indivíduo utiliza e reutiliza sem, no entanto, conseguir dizer-se plenamente. Para o criador literário, o drama acentua-se, na medida em que se apropria continuamente do mesmo material verbal, embora persiga o desejo de atingir uma obra única e singular, onde possa refletir, não apenas a si próprio, mas o seu leitor, para que a comunicação se efetive:

Explico-me: o escritor procura, no seu desafio aos leitores, roubar as palavras que eles conhecem mas não sabem utilizar para descrever certas situações, e a única diferença (alguma diferença