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E SCREVER A DÚVIDA : PARA UMA POÉTICA ABELAIRIANA DO DIARISMO Em grande parte da obra romanesca de Abelaira, pontifica o protagonista que se

assume na primeira pessoa e que, muitas vezes, se dedica à escrita, deseja publicar um romance ou uma outra obra, e usa como ponto de partida as suas vivências e as suas memórias. Em alguns casos, o narrador assume-se como diarista, mas são também habituais, neste coeso universo romanesco, personagens secundárias que escrevem ou mantêm diários íntimos. No entanto, a leitura do conjunto da obra ficcional de Abelaira92 demonstra claramente a sua insistência no motivo da escrita diarística, na

92 Escassas são as obras de Augusto Abelaira que não incluem qualquer referência ou alusão ao diário

íntimo, mas podemos enumerar os exemplos de A Cidade das Flores (1959), Os Desertores (1960), Sem Tecto Entre Ruínas (1978) e Nem Só Mas Também (obra póstuma de 2004). É de referir, no entanto, que em O Triunfo da Morte (1981), apenas uma só vez se usa a expressão “diário íntimo” e entre parêntesis, num comentário marginal do narrador. No entanto, devido ao seu hibridismo genológico e à sua originalidade, a obra merecia aqui alguma atenção, mesmo que lateral, já que apresenta elementos comuns quer ao diário, quer ao subgénero memorialístico. Em primeiro lugar, é de referir a sua estrutura fragmentária numerada – contém cento e nove fragmentos, numerados de 2 a 110 (o primeiro é omitido e essa omissão é justificada no final pelo editor). Esta numeração dos fragmentos muito se assemelha à datação diarística que, consabidamente, pode ser substituída por outras fórmulas, como a numeração ou o recurso a simples espaçamentos ou a símbolos gráficos. O suposto autor dos fragmentos assume que, apesar de ter em vista a sua publicação, o que presentemente escreve constitui apenas um esboço, notas para um possível livro, mas que não passam de uma conversa consigo mesmo, tal como o diário, muitas vezes, serve de tubo de ensaio para obras a publicar:

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exploração das suas motivações e propósitos. Por vezes, são apenas referências laterais ou circunstanciais alusões ao diário sem grande relevância, mas que, não obstante, sinalizam a presença quase obsessiva do diário íntimo no universo ficcional abelairiano. Por exemplo, em Enseada Amena (1966), embora não se mencione propriamente a escrita de um diário íntimo, encontramos uma breve passagem que parece preludiar a sua escrita:

Antes de entrar em casa, e passando por uma papelaria, Ana Isa comprou um caderno de capa de oleado. Depois, escreveu a meio da primeira página, com letra desenhada: Ana Isa e Osório.

Na segunda página começa: “Aqui estou a escrever, Amândio, sem a certeza de vir a mostrar-te este caderno. Mas, quem sabe? Mesmo sem essa coragem talvez um dia ele vá parar às tuas mãos. Quem sabe até qual poderá ser a conclusão desta história com o Osório? Talvez decidamos viver juntos, porque não?

E, no entanto, não falámos ainda em nada – isso é somente o futuro, um futuro possível, pois não sei bem quais as intenções do Osório, não sei sequer quais as minhas intenções.” (Abelaira, 1997: 44)

Assim, Ana Isa decide comprar um caderno, não um caderno qualquer, para uso corrente, mas um “de capa de oleado”, resistente ao uso regular da escrita quotidiana, e possivelmente de maiores dimensões (em pequenos blocos ou cadernos com função

“E ao esboçar estas linhas não ignoro que virei logo a substituí-las por outras, caso o livro seja impresso, elas destinam-se somente a ensaiar a mão, já antes o disse. Uma forma de adquirir balanço. Os andaimes necessários para escrever, não para a leitura. Afinal, se não me engano, quem compõe um livro destina-o sempre aos leitores (de contrário tratar-se-á de um diário íntimo), mas antes de completá-lo vai conversando consigo próprio – e quem sabe se não se explicará assim, às vezes, o fracasso?” (Abelaira, 1981a: 3)

Apesar de muitos fragmentos se aproximarem da tonalidade evocativa das memórias e do arranjo textual que pressupõem, encontramos também a escrita do hic et nunc, para além de vários motivos recorrentes na ficção diarística, como a justificação e a motivação da escrita. No entanto, ao longo do texto, a vontade de aproximar este livro do fim último – a publicação – catalisa a idealização de um leitor, que passará a ser um tu, um interlocutor, constantemente evocado na obra:

“De facto, para quem escrevo? Para mim, de modo a pôr em ordem as ideias? Certamente não (ou não apenas). A prová-lo, a minha procura de um equilíbrio estético, já antes o disse. Dirijo-me pois ao público situado num futuro longínquo […]. E no entanto, como direi?, vou sentindo o bafo dele, estabelecendo uma certa intimidade, adivinhando as perguntas e escrevendo de acordo com elas, procurando responder-lhes. Um público cúmplice. […] E sem saber porquê, começo a tratá-lo por tu, imagino-o sob a forma de uma mulher extremamente formosa, de colectivo transformou-se em individual. Não vejo ainda as feições dela e, no entanto… Sim, começo a imaginar como quererá essa formosa mulher imaginar-me e isso interfere comigo, interfere com este próprio texto, tira-lhe talvez uma certa espontaneidade.” (ibidem: 35)

Tal como acontece em Bolor com a enigmática página 115, só sensivelmente a meio, no fragmento 55, o autor desoculta algumas das convenções do seu “jogo”, que serão complementadas no final na “Nota do Responsável desta edição”, mas, na verdade, o mistério apenas se adensa e nunca se dissipa, apelando à mobilização detetivesca do leitor. Esta nota também aproxima a obra do romance- diário, na medida em que surge a figura do editor fictício, que justifica o seu acesso ao manuscrito (neste caso, aliás, às “cassettes” que continham a leitura do manuscrito). Assim se explica a deliberada complicação genológica do texto que, apesar de não incluir referências explícitas ao diário, apresenta alguns pontos de contacto com o género.

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exclusivamente utilitária não é usado este tipo de material que, naturalmente, onera o objeto), pormenor recorrente na tópica que subjaz ao registo. Além disso, o caderno tem por objetivo inscrever uma relação “proibida” entre Ana Isa e Osório, ambos casados, e, como tal, Ana Isa parece desejar confidenciar ao caderno o devir desta relação interdita. O caderno novo representa, assim, uma etapa inaugurante, uma nova relação e, tal como acontecerá em Bolor, as páginas em branco figuram o futuro imprevisto, o fluir do tempo, a incógnita do curso da sua história amorosa. Ana Isa duvida também da sua “coragem” para mostrar este caderno, acentuando o seu caráter secreto e íntimo. Assim, este excerto, aparentemente destituído de implicações textuais significantes, parece indiciar a escrita intimista de um diário, revestindo um valor acrescido, quando inserido no conjunto da obra romanesca abelairiana, na medida em que ratifica o valor do diário como modelo instituinte da ficção para o autor.

Também em O Único Animal que? (1985), encontramos um diário íntimo que serve para desvendar um segredo e resolver um enigma, pois vem lançar luz sobre o desejo e atração incontroláveis de Sara, filha do professor Garden, pelo protagonista, um macaco hominizado. O diário é encontrado num “baú” (Abelaira, 1986: 137), junto com outros papéis importantes, convergindo naturalmente no seu secretismo, aproximando-o de um tesouro a ser preservado da curiosidade alheia. No entanto, o diário do professor Garden é, em si mesmo, enigmático, como se o diarista temesse a sua violação. O diário, “um diário íntimo com numerosas folhas arrancadas” (ibidem: 137), de onde constariam alguns tentames poéticos do professor, não contém o segredo explicitamente formulado, mas ele pode ser inferido, como se o professor Garden tivesse pudor de se confessar a si próprio ou temesse a indiscrição de alguém que ilicitamente desejasse aceder ao seu diário:

O diário referia-se várias vezes a um “amor pecaminoso”. Não imagino bem o professor exprimir-se nesta linguagem, mas a letra era dele e bem dele. Ora, amor pecaminoso…

[…] Concretamente: um “amor pecaminoso” durante a expedição antropológica do casal Leakey ao Tanganica, em busca do primeiro homem. E como duvidar? Ousadamente, concluí: Garden amara uma macaca, dormira com ela, tivera uma filha. A seguir… Abandonara a mãe, levando consigo a Sarah. (ibidem: 138)

No entanto, o motivo diarístico comparece com mais consistente elaboração e representatividade em outras obras, permitindo deduzir o ascendente temático-estilístico do género sobre o autor. Um exemplo disso mesmo surge em As Boas Intenções (1963), onde Alexandre, pai de Maria Brenda, fisicamente incapacitado e profundamente

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desgostoso da sua condição, é incentivado pelo padre António Navas a escrever para ocupar o seu tempo e reconquistar o seu amor-próprio, recuperando “as pernas que lhe faltam” (Abelaira, 1971: 73). Assim, Alexandre retoma a escrita de “um caderno já começado”, um diário esquecido e agora recomeçado:

Com esse objectivo põe sobre os joelhos um livro a servir de mesa e sobre o livro um caderno já começado. Escreve: “Quantas foram exactamente as ideias que instilei no espírito de Maria Brenda, aquelas de que sou responsável, aquelas que são minhas? E quais as que não me pertencem, as que se apossaram dela contra os meus desejos e a minha pedagogia, as que eu teria evitado se pudesse?” (ibidem: 73)

Esta reflexão acerca da educação da filha, cujo ativismo político contrasta com a inércia (forçada ou talvez não) do pai, repete-se no diário ipsis verbis (ibidem: 85) algumas páginas volvidas, demonstrando o seu caráter autorreflexivo, em registo de balanço acerca da sua tarefa e responsabilidade paterna93, agora que a filha se assume como adulta e independente da sua tutela.

No entanto, o diário de Alexandre contém também comentários sobre o seu casamento com Maria Carlota. A este propósito, refere-se que Alexandre relê o que escrevera dois anos antes (talvez porque tenha decidido ler o diário desde o início, ou, antes, porque esse tenha sido o momento em que terá descontinuado o diário e tenha relido as últimas passagens?), em particular uma conversa que manteve com o amigo e padre António Navas, em que este lhe confessa “ter enganado um amigo ao amar-lhe a esposa.” (ibidem: 159) Esta conversa – idêntica à que Humberto de Bolor terá com Aleixo – fez deflagrar, agora à distância de dois anos, obcecantes suspeitas de ter sido ele próprio o marido traído e o amigo enganado. O episódio sugere ao narrador algumas considerações acerca do valor da escrita diarística:

Mas um diário é um modo artificial de conservar as coisas que, de outro modo, talvez sabiamente, a memória esqueceria, coisas que, no momento próprio, não chegaram a ter grande importância, foram escritas por disciplina, pois nada mais havia nesse dia a dizer. O tempo vai passando, elas ficam ali, levedam, crescem, mudam de sabor e de significado. De repente, quando lidas de novo, tornam-se importantes – elas que se não tivessem sido escritas estariam mortas. Tão importantes que Alexandre pensará: “O marido sou eu, o marido enganado sou eu.” (ibidem: 160)

93 “Ensinei-lhe o valor da generosidade. Mas quais os meus gestos generosos? Certa vez ela deu à filha da

porteira uma boneca caríssima. Repreendi-a. Contrafeito, mas repreendi-a. E assim, sob a aparência das grandes palavras, aconselhei-a sempre a acomodar-se aos costumes do tempo. Mas não é característico dos costumes do tempo essa acomodação sob a capa das grandes palavras?” (Abelaira, 1975: 86-87)

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Assim, se, por um lado, a escrita diarística é apresentada, neste excerto, como uma confissão ritualizada, um exercício de disciplina para o seu cultor; por outro, este gesto programado não é isento de perigos, na medida em que as palavras, assim congeladas, se degradam e desvirtuam, revelando novos matizes nos momentos registados, alterando-lhes a forma com o auxílio da (difusa) memória, permitindo novas e perturbadoras leituras do passado. Esta desconfiança de Abelaira face à escrita diarística acentua-se quando Maria Carlota lê o diário íntimo do marido, sem a sua permissão, e conjetura sobre a verdade do seu conteúdo:

– Deixaste em cima da secretária um caderno enquanto dormias a sesta… Foi para eu ler?

Não tinha sido. Mas Alexandre responde:

– Foi…

– Falas do baile em que nos conhecemos. Escreves que me aproximei de ti com um cravo branco na mão e disse: “Porque não me convida para dançar?” Que tu disseste: “Porque gosto de si.” E eu: “Ah, se soubesse como o espreito dia após dia atrás das cortinas…” Etc. Porque escreveste isto?

– Apeteceu-me. Não gostas de recordar o passado?

– Sabes que nada disso se passou assim.

– Foi há tanto tempo, Carlota! Sabemos nós lá se se passou ou não assim!

Não, não… (ibidem: 223-224)

Alexandre admite que a escrita intimista não pode aspirar à fidedignidade, pois é filtrada pela memória e pela própria subjetividade, o que expõe a natureza paradoxal da própria essência do diário, que se assume como uma escrita mais sincera, dado não solicitar um outro leitor que não o próprio diarista. Curiosamente, até neste aspeto o narrador descredibiliza o próprio diário, cujo secretismo foi transgredido pela leitura de Maria Carlota, que, longe de ser acidental, era permitida e conhecida pelo próprio diarista94:

– Li o teu diário… Li o que escreveste… Escreveste que não gostavas de mim, escreveste que gostavas de mim. […]

Alexandre teve sempre a certeza de que ela folheava o diário e lembra-se agora que escreveu aquelas palavras – as últimas, as do amor que persistia – para mantê-la numa piedosa ilusão. Sim, o amor por Carlota estava morto, mas ela não tinha mais ninguém… (ibidem: 200)

94 É de notar que, em Bolor, também Maria dos Remédios afirma ler e até escrever no diário do marido,

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Assim, apesar de o diário constituir motivo marginal nesta obra, as referências que para ele reenviam permitem deduzir a poética abelairiana deste género autobiográfico. O diário é uma modalidade de registo disciplinado que permite reviver o passado e fixar os seus instantes no curso do Tempo, mas é também um ilusório cômputo dos dias, pela inescapável corrupção que a memória impõe aos factos, tornando indestrinçáveis ficção e realidade. Para além desta diluição dos limites entre a experiência e o seu registo, encontramos também a falta de sinceridade no caderno íntimo atribuível à suspeição de que ele seja lido por terceiros.

Quatro Paredes Nuas (1972) é um livro de contos que colige sete narrativas e uma advertência. Curiosamente, o índice contém menção à advertência como “escrita em 1982 e retirada dum diário íntimo descoberto depois da morte do autor” (Abelaira, 1972: 203). Assim, Abelaira demarca-se da figura autoral, quando lhe sentencia a morte anterior a 1982 e quando subverte o próprio tempo cronológico, ao publicar, precisamente em 1972, o texto que seria supostamente descoberto dez anos depois. Desta forma, ao ficcionalizar um autor para este seu livro de contos, Abelaira idealiza um diarista, que mantém o seu diário secreto até ao momento da sua morte, mas que conta com a sua “descoberta”, na medida em que deixa nele averbados projetos de trabalho e uma advertência para ser publicada.

Além disso, no conto “Nem mesmo tu”, a personagem masculina, cujo nome desconhecemos, encontra-se dividida entre a esposa de sempre, com quem se torna difícil comunicar, e o fascínio por uma outra mulher, despertado nos primeiros encontros, quando a rotina ainda não desgastou o diálogo. Em virtude dos seus sentimentos dispersos, ele confessa manter um diário íntimo, como meio de se decifrar a si próprio, descobrindo, porém, a sua ineficácia:

Comecei a escrever um diário para descobrir não sei o quê, esse segredo cujo sentido ignoro, mas nada encontrei, não fiz sequer um único achado importante acerca de mim próprio. […] E o papel e a caneta só nos respondem com o silêncio, o vazio, são um espelho das aparências e nada mais. As próprias necessidades do estilo atraiçoam o que queremos dizer. (ibidem: 76)

Esta reflexão acerca das limitações da escrita diarística antecipa, no fundo, a subsequente problematização de Bolor, onde a tentativa de se conhecer ou apreender o

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outro através da escrita é malograda e o diário se resume a um “espelho” ilusório de enganos e desencontros95.

No último conto da obra, “Instantâneo”, Manuel João, o protagonista, reflete sobre a importância de um obsessivo e minudente registo diuturno que pudesse, mais tarde, coadjuvar a memória na retenção de todos os pequenos detalhes, que, embora insignificantes no presente, poderiam vir a revelar-se cruciais no curso da vida:

Ter qualquer coisa como um diário de bordo onde escrevesse tudo! Minuto a minuto, segundo a segundo… […] Às dez horas e cinco minutos e trinta e sete segundos, começara então a chover, espirrei novamente. Aos trinta e oito segundos desdobrei o lenço… Quem sabe se três semanas depois esses pequenos nadas não virão a revelar-se de uma extrema importância? A maior parte das coisas esquecemo-las. E se tivéssemos delas um simples apontamento, compreenderíamos… […] Talvez todo o sentido da minha vida pudesse ser decifrado num espirro, num olhar, algo que se passou muitos anos antes, que esqueci, que nunca mais… (ibidem: 176)

No entanto, quando Maria Evelina questiona Manuel João acerca da viabilidade de tal projeto, devido ao tempo que ele tomaria, este reconhece que o diário nunca poderia acolher ou retratar fielmente a vida do sujeito diarístico e que a sua representação temporal é necessariamente reduzida, até porque, para obter os resultados pretendidos, seria igualmente necessário reservar tempo para o ler:

– E, além de anotar tudo, o tempo de ler o diário. Mas como viver, anotar o que se viveu, ler o que se anotou acerca do que se viveu… tanto mais que isso ainda é viver e será preciso, portanto anotar e ler e… E assim por diante. Cada segundo deveria ter três dimensões para que nenhuma delas pudesse destruir as outras… (ibidem: 177)

Talvez pelo reconhecimento da impossibilidade de transvasar, na escrita, o tempo e o real, Manuel João deixa este projeto no plano do eventual, daquilo que se intenta fazer, mas que nunca é verdadeiramente objeto de concretização.

Em Deste Modo ou Daquele (1990), encontramos nova problematização autorreflexiva do lugar do diário íntimo na ficção romanesca abelairiana, visto o romance eleger como protagonista um Narrador, um biólogo, que se dedicou ao estudo de um diário íntimo descoberto por acaso na sua nova casa:

95 Como refere Maria Alzira Seixo, o sujeito abelairiano procura a retenção de uma autoimagem, usando

o diário íntimo como percurso, quase sempre votado ao fracasso: “Para que tal imagem se constitua, tenta-se o diário (de si para si) que falha como todo o monólogo na sua exigência premente de um interlocutor […]; o espelho das aparências simulando o nada, falta o outro para abrir a possibilidade do abismo – e aí se entra na ficção, na invenção da segunda pessoa, que verdadeiramente cria o universo romanesco […].” (Seixo, 1973: 87-88)

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166 Depois, o anúncio do Diário de Notícias resolveu o problema:

um sótão acabado de vagar. A morte do inquilino. Um tal António Luís Bastos, veio a saber depois.

Num gavetão por debaixo da mesa de pedra do fogão, um caderno escondido. Folheou-o, leu-o, impressionado por a apaixonada do tal António Luís se chamar Ágata. A sua Ágata que já alguns anos antes sentira o desejo de explorar os vários caminhos? (Abelaira, 1990: 152)

No entanto, este diário, cuidadosamente escondido, coloca um desafio ao Narrador e, por este motivo, o manuscrito passa a constituir o seu objeto de estudo:

Biólogo, a investigar presentemente as abelhas […], o Narrador tenta conhecer, a partir dum Diário íntimo, a vida “verdadeira” do António Luís Bastos, submetendo esse Diário à minúcia microscópica que lhe permitirá distinguir – venham as grandes palavras! – a verdade da falsidade. Ou seja: quando fala a verdade o António Luís? Quando mente? E não haverá, em determinados contextos, verdades que são mentiras e mentiras que são verdades? (ibidem: 6)

Abelaira transforma, deste modo, em romance a vexatio quaestio que tem ocupado teóricos, críticos e investigadores da escrita biográfica: a da (im)possibilidade