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L EVIANA , DE A NTÓNIO F ERRO : “ TRINTA DIAS DE PRISÃO ”

2.1 U MA ARQUEOLOGIA APROXIMATIVA ‒ CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

2.2.5 L EVIANA , DE A NTÓNIO F ERRO : “ TRINTA DIAS DE PRISÃO ”

António Ferro (1895-1956), autor que não deixou de colaborar na aventura vanguardista de Orpheu, publicou, em 1921, Leviana, que, segundo a indicação paratextual, constitui uma “novela em fragmentos”. Curiosamente, num “Estudo Crítico” que antecede a novela, António Ferro faz uma apologia da renovação literária em Portugal, advogando que o romance português apresenta dimensões exageradas para o conteúdo que desenvolve, afastando o leitor que procura uma experiência de leitura breve e intensa, consentânea, pois, com a celeridade dos tempos modernos:

Nesses romances, carregados de sucata, de palavras ásperas, difíceis, de palavras de concurso, de quebra-cabeças, arrancados a

forceps, dos calhamaços, a emoção desaparece, por completo, some-se debaixo dos vocábulos duros, dos vocábulos de ferro, da cacaria, das palavras obsoletas. Os nossos romances, em geral, não teem personagens, teem palavras. (Ferro, 1929: 22-23)

Assim, António Ferro, ao publicar Leviana, fez uma “tentativa inconsciente, ingénua, para lançar em Portugal, o tipo do romance directo, sem atalhos”, alinhada com as tendências literárias francesas, ditadas por Delteil ou Giraudoux, ainda que tenha ficado “no meio do caminho”, com uma “novela, nas cento e tantas páginas”. (ibidem: 25)

O caráter fragmentário da novela, conforme anunciado na nota prefacial, é usado por António Ferro como estratégia de representação essencial para atingir a unidade, por forma a retratar fielmente a personalidade estilhaçada da Leviana:

A unidade da obra existe na conjugação dos fragmentos. O leitor vai, mentalmente, juntando as parcelas. Quando chega à última página, faz a soma, sem dar por isso, e obtém sempre um resultado. É o que se dá com «Leviana». O Proscénio, os episódios, as frases, o Diário, as anedotas, as cartas, constituem um todo, são as partes em que se divide o corpo de “Leviana”. De tôda aquela balbúrdia sai um tipo completo, com cabeça, tronco e membros, com sentimentos, com gestos, com palavras. Uma figura incoerente e dispersa só pode ser dada com incoerencia e dispersão. (ibidem: 26)

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Para que nesta novela, construída com fragmentos diversos, se reconstitua uma unidade de sentido, o autor introduz, no primeiro capítulo, “Proscénio”46, um narrador homodiegético que justifica a dispositio parcelar do texto:

Vou despejar aqui, aqui, a gâveta das recordações… O fragmento duma carta, um gancho de cabelo, a caixa de pó de arroz, certa madeixa, um dito, uma anedota… Êste livro será tumultuoso como essa gaveta, a gâveta da saudade, aberta, bruscamente, na minha inteligência. (ibidem: 46)

Assim, esta “gâveta de recordações” congrega vários tipos e formatos textuais, desde o registo diarístico, as cartas, um esboço dramático, fragmentos em estilo aforístico, convertendo a obra numa espécie de puzzle que o leitor deverá recompor. Aliás, o autor, numa espécie de advertência final, refere que a personagem de Leviana não se inspira numa mulher concreta, mas em várias mulheres que com ele se cruzaram e a partir de cujas idiossincrasias compôs uma boneca de trapos, construída com restos, fragmentos e estilhaços de múltiplas mulheres:

Leviana contra o que se tem dito, nunca existiu. Não é uma certa mulher, é um tipo. Há muitas mulheres levianas, mas não há uma que seja a Leviana. A minha personagem é uma boneca de trapos que fui cosendo, no meu espírito, com o nariz duma, os olhos de outra, sorriso daquela… De tôda esta dispersão nasceu um tipo que existe na Vida, mas que não existiu na minha vida. (ibidem: 141)

No interior deste mosaico de fragmentos que constitui Leviana, existe um capítulo, intitulado “Trinta dias de prisão”, que consiste no registo diário no decurso de um mês completo de abril. Nele se confirma a feição dispersa e pulverizada da protagonista, quando ela própria admite: “Tenho mil e tantas almas… Preciso duma alma com mil e tantos homens…” (ibidem: 63). Neste trecho do diário, complementado por vários episódios, se cauciona o título da obra, alusivo ao comportamento desregrado da protagonista, inconforme aos padrões morais da época.

Não é revelado o que motivou Leviana a iniciar este projeto de escrita confitente, mas talvez a decisão decorresse da voga disseminada de manter um diário, conforme é sugerido na primeira entrada:

Um de Abril – Parece que é bom ter um diário. Dá a impressão que se pensa. Não me custa nada a rabiscar meia dúzia de palavras,

46 É curioso o recurso ao vocábulo “proscénio”, de evidente inspiração teatral, designando, por um lado,

por analogia, o preâmbulo, mas, por outro, a vontade de apenas colocar em palco Leviana, de fazer incidir sobre ela as luzes da ribalta que tanto aprecia, enquanto o narrador deseja permanecer na parte anterior do palco, no anonimato, até porque não se identifica e escassos são os traços que o individualizam.

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83 todos os dias. Não é mais aborrecido, certamente, do que pôr

papelotes nos cabelos. Fazer frases é, afinal, fazer caracóis. A alma também se friza. (ibidem: 63)

No entanto, a escrita regular e disciplinada implica um imobilismo meditativo e um recuo introspectivo incompatíveis com a energia e com a propensão para a exterioridade de Leviana, o que explica a sua dificuldade em parar o fluxo da vida para escrever: “Cinco de Abril – Que hei-de escrever hoje? Ora… Escrevo isto mesmo…” (ibidem: 63)

Sete dias apenas após o início do diário, onde admite que seria fácil escrever umas linhas por dia, Leviana revela o seu enfado e até algum desconforto relativamente à sua inconstância e dificuldade em rever-se no seu caderno íntimo:

Sete de Abril – Eu sempre me meto em cada uma… Lembrar- me de escrever um diário, eu, que nem tenho paciência para ler o

Diário de Notícias… Que ganho eu com isso… Por mais que me torture não consigo ser sincera… Não me pareço nada com o que escrevo… O meu Diário é um jornal da última hora: só tem telegramas do estrangeiro… (ibidem: 64)

No entanto, Leviana insiste em continuar o diário, até que na entrada de 21 de abril, profundamente entediada, decide destruí-lo, aduzindo, porém, uma justificação sui

generis, que torna explícita a sua visão distorcida acerca do registo diarístico, bem como uma personalidade egocêntrica e megalómana:

Vinte e um de Abril – Não sei, não sei o que hei-de escrever… Sinto que me vou repetir. Estou insípida, sensaborona. Se eu pudesse valsar, aqui, neste papel… Vou rasgar tudo… Vou?... Não vou?... Vou! Uma, duas, três. Daí, não… Um diário íntimo é para todos lerem. Ainda não mostrei êste a ninguém… (ibidem: 65)

No entanto, nem o desejo de usar o diário para se exibir perante olhos alheios consegue mitigar as dificuldades incontornáveis da escrita, admitindo que esta mais parece ser o “cumprir uma pena – uma pena de tinta permanente…” (ibidem: 66)

No dia 30 de abril, decide pôr termo a esta experiência efémera de escrita diarística, cujo fim anunciado evidencia bem a incompatibilidade do caráter volátil e inconstante de Leviana com a “prisão” que o diário representa:

Trinta de Abril – Uf! até que enfim… Acabou-se o diário. Um mês chega… Não me meto noutra. Esta tinta azul não presta, não se vê nada. Prefiro o carmim. O meu diário é o meu corpo. Boa noite. Desce o pano. D’ora-avante, pano subido – só nas saias… (ibidem: 67)

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Por sua vez, nos capítulos “Motivo imprevisto” e “Retalhos”, encontramos a narração de alguns episódios que, em muito, se assemelham à inscrição de um possível diário do narrador, devido à narração quase simultânea dos factos e à sucessão de fragmentos, sempre enunciados no presente do indicativo, e aos informantes de tempo e espaço.

O contributo desta Leviana para o estudo do romance-diário é, obviamente, modesto. No entanto, a sua inclusão na linhagem aqui reconstituída deve-se, sobretudo, à intenção renovadora da ficção romanesca por parte do seu autor, reconhecendo que esta reinvenção formal passava necessariamente pela poética do fragmento e que esta se encontrava, por sua vez, associada aos formatos intimistas de cunho autobiográfico, tais como o diário, as cartas e as memórias.

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