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J B ELLEZA M IRANDA E D IÁRIO E C ARTAS DUMA M ULHER :

2.1 U MA ARQUEOLOGIA APROXIMATIVA ‒ CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

2.3.4 J B ELLEZA M IRANDA E D IÁRIO E C ARTAS DUMA M ULHER :

CONFESSIONÁRIO DE TANTA PEQUENA LOUCURA

Embora hoje praticamente desconhecido, Jorge Belleza Miranda foi autor de expressiva produção literária, recebida, ao que parece, com apreciável sucesso, uma vez que praticamente todas as suas obras foram objeto de várias reedições. Uma delas, intitulada Diário e Cartas duma Mulher, foi originalmente dada à estampa em 195856, seguindo-se-lhe múltiplas reedições, sempre com alterações e acrescentos57.

Este diário recupera a tradição da letter-journal-novel, inaugurada por Richardson, uma vez que combina os subgéneros do romance-diário e do romance

56 A edição utilizada neste trabalho é a 2ª edição de 1960.

57 Esta obra será publicada, anos mais tarde, em 1975, na sua edição definitiva, sob o título Fragmentos

da Vida de uma Mulher. No prólogo, o autor justifica as sucessivas revisões da obra como produto da “permanente insatisfação vivida pelo espírito do artista” (Miranda, 1975: 9).

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epistolar. Deste modo, a novela integra trinta e quatro páginas de diário, datadas e com referência ao local de escrita, e dez cartas. Os dois subgéneros complementam-se, embora, na realidade, sem a indicação das páginas antecedentes58, não fosse possível discernir uma página de diário de uma carta, uma vez que o estilo e formato de ambas são flagrantemente próximos. No entanto, podemos dizer que a tónica das páginas do diário de Ana Maria recai sobretudo nos seus sentimentos íntimos e, nas cartas, aborda- se também o eco social do seu relacionamento com Marcelo, delineando-se em ambos os géneros – nem sempre com meridiana clareza – a dicotomia público/privado.

O editor introduz um prólogo apresentativo sobre Ana Maria de Aragão, a diarista, que será vítima de um desfecho trágico, e que explica em que circunstâncias59 e com que finalidade este diário e as cartas são agora dadas a lume:

Um acaso, aquele bondoso deus protector dos novelistas, fez- nos encontrar alguém que, possuidor dum maço de papéis de Ana Maria, se prontificou a mostrar-no-lo, e, entre contas de modista e de sapatarias, receitas de médicos e contas de farmácia, deparou-se-nos um pequeno caderno de folhas um pouco cansadas, e cartas, muitas cartas, das quais recolhemos algumas para, juntamente com as páginas de um “Diário”, darmos a conhecer aos nossos leitores o perfil mental de uma das mulheres mais elegantes que no nosso tempo se têm mirado nos escaparates das lojas do velho Chiado.

“Diário” e cartas completam-se, formam um todo, e fazem-nos assistir ao seu drama íntimo, ao descalabro da sua vida, dominada por uma paixão avassaladora que a humilhou como mulher, mas acabou por elevar o seu espírito para além do pesadelo do caixão que encerra o seu corpo […]. (Miranda, 1960: 17)

O enredo é, mais uma vez, de uma incipiência rudimentar: Ana Maria, recém- viúva, apaixona-se por Marcelo, um sedutor e jogador inveterado que abusa da generosidade do seu amor, destrói a sua família – após ter seduzido e abandonado também a meia-irmã, Maria Luísa – e a conduz à aniquilação absoluta, acabando por

58 Nesta edição, as entradas do diário ou as cartas são antecedidas de páginas de rosto, deixadas em

branco, com a indicação, no canto inferior direito, do tipo de documento que se seguirá: “Página de diário” ou ”Carta à sua amiga…”.

59 Na versão definitiva, de 1975, este prólogo é convertido num capítulo, onde o editor do diário conta

que foi a um leilão, no solar de Ana Maria, e aí encontra Maria Emília, amiga e destinatária das suas cartas. Aí, Maria Emília oferece ao editor o diário, para que este tome conhecimento da tragédia da amiga, três anos volvidos sobre a sua morte: “ – Contar-lhe-ei com o maior gosto. Ou melhor, emprestar- lhe-ei o diário de Ana Maria, que conservo, preciosamente, num velho cofre de sândalo. Mas farei ainda mais: quero socorrer a sua falta de imaginação fornecendo-lhe outros documentos e testemunhos. Não lhe peço, exijo-lhe, em nome da nossa amizade, que conte esta história de amor.” (Miranda, 1975: 20)

Maria Emília entrega também ao autor outros documentos – as cartas – que poderão auxiliá-lo no processo de reconstituição arqueológica pela escrita: “Vou entregar-lhe antes o cofre de sândalo com o diário de Ana Maria, a que juntarei um maço de cartas que o esclarecerão acerca do caso e servirão para completar o drama vivido pela minha amiga.” (ibidem: 22)

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sucumbir de tísica do corpo e da alma. Numa previsível manobra melodramática, decide esperar pelo regresso do amante in extremis, antes de expirar, mas Marcelo nunca chega. No derradeiro momento, em Lisboa, o sedutor amoral parece enlouquecer, numa espécie de tardia justiça retributiva.

Relativamente ao diário, Ana Maria lamenta, muitas vezes, não ser tão regular na escrita quanto gostaria, uma vez que este é o seu “confessionário de tanta pequena loucura e também de algumas dores e horas de desalento.” (ibidem: 85) Porém, à medida que o tempo passa, são cada vez mais “tristezas e amarguras o que a [sua] alma dolorida extravasa sobre o papel”. (ibidem: 113) A escrita do diário torna-se mesmo penosa pela presentificação do passado que supõe, como aliás a diarista admite: “Escrever isto aqui é como esgotar de novo o cálice de fel que […] bebi”. (ibidem: 117)

O editor, neste caso, parece desenvolver um trabalho quase jornalístico de apuramento de dados, como tentativa de se credibilizar, enquanto instância de mediação narrativa, perante o leitor. Prova disso é um acrescento constante da segunda edição, relatando o fim de Marcelo, que se redimiu de todo o mal que fizera, alistando-se nas fileiras da Legião Estrangeira e morrendo heroicamente, factos revelados por uma sua parente octogenária60:

Como vê, meu caro senhor, precisa de corrigir o “Diário e Cartas duma Mulher” se quiser ser verdadeiro quanto ao destino de Marcelo. […] E agora, que tudo sabe a seu respeito, seja benevolente, caridoso para com ele em nova edição da sua novela. (ibidem: 213)

Assim, no final desta novela, o editor reflete sobre a sua própria composição e insiste na subalternização do trabalho ficcional em benefício de uma suposta verdade factual:

E aqui estou eu a meditar nos seres que no palco do teatro da vida, onde cada um de nós é actor, se vêem coagidos a desempenhar

60 Curiosamente, na versão definitiva, é Maria Emília quem se oferece para apresentar a parente de

Marcelo ao novelista: “E para que esta história tenha um epílogo, apresentá-lo-ei, em Lisboa, a uma deliciosa velhinha, que, com os seus oitenta anos bem vividos, porá ponto final à sabedoria do destino, pois, neste caso, ele tomou o lugar do artista.” (Miranda, 1975: 22)

Assim, o autor, além de justificar o encontro com a octogenária, altera o final da novela. Em primeiro lugar, inverte a ordem deste encontro que, na edição de 1960, ocorre depois de a “velhinha” tomar conhecimento da 1ª edição, censurando-o pela injusta memória de Marcelo. Na versão definitiva, supõe-se que o encontro terá acontecido antes da redação da novela: “ – Ah, meu caro senhor – exclamou ela –, propõe-se então escrever sobre Marcelo? E que vai dizer do meu pobre sobrinho? Será implacável para com ele?” (ibidem: 225)

Supostamente, a velhinha entrega-lhe umas folhas de Marcelo, onde se revela que ele amava genuinamente Maria Luísa, irmã de Ana Maria, e desejara casar com ela, tendo esta recusado como sinal de veneração da memória da irmã.

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110 papéis vários impelidos pela força das circunstâncias, tal como ao

sabor do vento que sopra rodopiam as folhas desprendidas da árvore. E agora ponho ponto final no “Diário e cartas duma mulher” com a declaração de que outro destino não podia ter dado às suas personagens senão aquele que realmente foi o seu, ao viverem o drama que tamanha sensação provocou nessa época e que, apesar de decorridos já alguns anos, ainda hoje não está inteiramente sepultado no olvido, pois é recordado por um restrito número de pessoas.

Fazer o contrário seria falsear a verdade, muito embora em benefício da ficção. E, assim, estes apontamentos, coligidos em forma de novela e como novela, a alguns se afigurem banais e destituídos de valor. Em contrapartida, resta ao autor a convicção de ter dado à estampa, como se diz no prólogo, a linhas tantas, o conhecimento do perfil mental de uma das mulheres mais elegantes que no nosso tempo se têm mirado nos escaparates das lojas do velho Chiado. (ibidem: 215)

Participando da lógica pragmático-comunicativa do texto paraliterário, é interessante verificar o sucesso editorial da obra que justificou inúmeras reedições, além do trabalho meticuloso de reescrita de uma novela-diário que o público parecia apreciar. Para além deste aspeto, é de destacar a laboriosa construção da personagem do autor- editor do diário-novela, detetivescamente empenhado na busca da verdade documental, assim como a afinidade que o texto revela com a letter-journal-novel, convertendo-o, assim, num estudo de caso particularmente estimulante.

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2.4V

ARIATIO: ALGUMAS MODULAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

No fim do século XX e no início do século XXI, desenham-se novas perspetivas de renovação e alargamento das potencialidades ficcionais do diário. O registo do quotidiano, filtrado por uma cultura do fragmento, converte-se numa pulsão comum, frequentemente revisitada pelos autores portugueses. Quer pelo recurso à forma do romance-diário, quer pela transplantação de entradas ficcionais de diário noutros modelos ou contextos narrativos, o subgénero tem sido objeto de concretizações originais, numa demonstração eloquente da sua renovada vitalidade.

2.4.1M

ARIA

G

ABRIELA

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LANSOL E

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PASSAGENS

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