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Armas no Convento Franciscano – manobra de incriminação

1.3. Uma Igreja perseguida e silenciada

1.3.1. Armas no Convento Franciscano – manobra de incriminação

Neste ponto sobre a perseguição movida pelo Comunismo à Igreja pareceu-nos pertinente destacar, como exemplo paradigmático, o episódio das armas no Convento Franciscano em Shkodra, encenado pelo regime para mobilizar a massa popular contra o clero. Shkodra era a cidade da Albânia que correspondia ao maior centro do cristianismo do país; aí concentrava-se um número muito significativo de cristãos e localizavam-se os vários seminários da Albânia, bem como a única Catedral naquela altura, diversas igrejas e conventos. Após o final da Segunda Guerra Mundial, o Partido toma algumas providências no sentido de extirpar as oposições e fortalecer o regime: para além de determinar a captura e entrega dos fugitivos, obrigou ainda a que o povo cedesse ao Estado todas as armas pessoais e as moedas em ouro.

O convento dos Franciscanos em Shkodra albergava a maior Biblioteca e Museu da Albânia, e, ao sentir a ameaça do regime comunista ao património da Igreja, o Arquivista Padre Pali, nonagenenário, tomou a iniciativa de pedir ao então ainda frade Zef Pllumi para esconder, num muro, duas arcas de chumbo contendo os livros mais preciosos do seu Arquivo, verdadeiras relíquias do património histórico da Igreja e do País, assim como as Crónicas e Diários do convento. Em novembro de 1946, um funcionário do partido, Pjerin Kçira, entrou neste convento com chaves falsas e escondeu armas sob o altar, o que fazia

57 parte de um plano de incriminação; este comunista confessou posteriormente o crime e foi também morto139.

No dia 14 desse mês140 as tropas entram e ocupam o convento franciscano, detendo os frades no refeitório e revistando as suas celas. A biblioteca foi confiscada, bem como as peças preciosas do museu, igualmente património histórico da Albânia. Fez-se, entretanto, a encenação de que se estava a descobrir as armas no altar. Os padres franciscanos foram acusados e o convento tornou-se prisão, totalmente controlado pela polícia do Estado, inclusive relativamente aos frades que saíam para fazer as compras141. Estes eram vítimas de ofensa por parte dos militares que os insultavam de “fascistas, burgueses” e também se lhes dirigiam violentamente como “Cristo”. Um dia, Zef Pllumi perguntou ao militar se sabia quem era Cristo, ao que este respondeu: “um fascista nojento como vós”142. Os padres, frades e seminaristas eram ainda submetidos a interrogatórios, gabando-se os militares que possuíam “uma vara mágica que lhes revelava tudo” (o chicote) 143. Nas buscas que realizavam no interior do convento, os militares, não conseguindo abrir o Sacrário, apesar de o tentarem com ferros, pediram para que fosse aberto (referindo-se-lhe como “o cofre”, no qual imaginavam poder recolher riquezas por se tratar de uma peça dourada); o Padre Aleks pôs a estola e ajoelhou-se para o abrir; ao deparar-se com o conteúdo, perguntaram “de que servia isto que estava guardado em louça de ouro”, referindo ainda que a posse de objetos de ouro era proibido e devia ser entregue ao Estado. O Padre respondeu que o Estado apenas confiscava as moedas de ouro e pediu para respeitarem as Hóstias, pois tratava-se de Cristo. Então perguntaram “como conseguem ver Cristo ali?”, ao que o Padre respondeu: “Eu assim o creio

139 Ao ser julgado, Pjerin Kçira, declarou na sala perante os juízes: “não penses que fazes comigo como fizeste

com o clero católico, que meteste armas na igreja e com torturas desumanas os obrigaste a aceitar que eram deles… para encobrir malandrices vossas e do Enver, vocês condenam inocentes”. PEPA, Pjeter, Dosja e

Diktarurs, 199.

140 Cf. PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 75.

141 De acordo com o testemunho de Fritz Radovani, esta tornou-se “na mais sangrenta prisão da URSS”. Cf.

RADOVANI, Fritz, Kleri Katolik Shqiptar – Perballe gjenocidit Komunist te Shekullit XX, (1944-1991), 33.

142 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 76. 143 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 84.

58 e vejo com os olhos da fé”, o que provocou risos sarcásticos no chefe que o interrogava, de nome Duli144.

Um evento essencial nesta ocupação do convento por parte dos comunistas consistiu na entrega aos militares das duas arcas de chumbo escondidas no muro com a parte mais valiosa do Arquivo. Depois de impiedosamente torturado, o Padre Pali, com a sua idade muito avançada não resistiu e, confessando que os maus tratos o tinham tornado “metade de um ser humano”, pediu ao jovem frade Zef Pllumi que entregasse as duas arcas de chumbo, pois não estava a aguentar mais as torturas. Zef Pllumi compadecendo-se do seu estado tão frágil e sofredor, “optando pelo humano e sacrificando o que é material”145, decide então entregar aquela porção do Arquivo escondida dentro da parede. Perante esta “capitulação”, o chefe Duli, particularmente realizado, confessa a Zef Pllumi que, quando era comerciante enganava o povo na balança, quando vendia, e que por isso era especialista nesta matéria e não podia ser, por sua vez, enganado. Os comunistas apreenderam o conteúdo das arcas, com particular interesse pelos Diários, que lhes revelavam todos os pormenores da vida do convento e subsequentemente encheram as arcas de armas e fotografaram os padres por detrás das mesmas, divulgando a acusação de que tinham encontrado, no convento, duas arcas cheias de armas, alegadamente para perpetrar um golpe contra o regime comunista e disseminando esta acusação contra os padres franciscanos. Esta história foi estrategicamente rentabilizada pelo partido como uma arma de propaganda contra o clero e a Igreja, através de uma sistemática e profusa divulgação através de todos os jornais, emissões radiofónicas e televisivas, tendo sido propositadamente realizados documentários e escritos livros sobre este acontecimento.

No dia 11 de dezembro de 1946 chegou um decreto para fecharem o Convento Franciscano. Os seminaristas e frades ainda não ordenados foram convidados a sair e regressar às suas casas. Uma das autoridades comunistas fez um discurso aos estudantes,

144 Cf. PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 83. 145 Cf. PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 80.

59 dizendo-lhes que para eles este se tratava de um dia de liberdade, uma vez que ficariam livres “daquelas paredes escuras” e da influência dos pensamentos reacionários do clero franciscano; doravante fariam parte integrante da juventude que gozava os bens do socialismo e não deveriam olhar para trás. No mesmo discurso avisaram, simultaneamente, que os “olhos do Partido” seguiriam todos os passos das suas vidas, ficando registadas as moradas para onde iam. Os comunistas despediram assim os seminaristas, os jovens estudantes e os frades ainda não ordenados, como Zef Pllumi, a quem o chefe Duli refere: “tu estás habituado a confessar- te e a receber como penitência a oração de cinco Ave Maria, mas nós comunistas confessamos de modo diferente, dando cinco anos de prisão” 146. Zef Pllumi, retorque que “conhece bem os comunistas e admira-se por o seu procedimento para com o povo ser muito mais duro do que tinham feito os próprios alemães, alegando que os comunistas por um morto mataram dez na casa do seu tio”147 e nem os alemães tinham procedido tão impiedosamente no contexto da Segunda Guerra. De facto, Duli e os outros chefes entendiam que tinham todos os direitos sobre eles e podiam dar-lhes a prisão ou até a morte quando e conforme entendiam.

Para o então frade e diácono Zef Pllumi, este dia não representou qualquer libertação, muito pelo contrário. Enquanto caminha sobre uma ponte, reza o Salmo 137 Super Flumina Babilonis, illic sedimos et flevimnus, dum recordarmur Sion (Sobre os rios da Babilónia nos sentamos a chorar com saudades de Sião). Confessa que não sabia onde estava, para onde ia ou o que iria fazer. Todos os sonhos de se tornar um sacerdote, um santo, um sábios desapareceram num instante, “fica connosco, Senhor, porque anoitece” (Lc 24, 29)148. Poucos dias depois, no dia 14 de dezembro durante a noite, a casa do seu tio foi cercada e no dia 15 de dezembro de madrugada, Zef Pllumi foi preso pela primeira de muitas vezes na sua vida149.