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MÁRTIRES E CONFESSORES

2.1. Prisioneiros com Cristo, unidos a Cristo, imitando-O até ao fim

2.1.1. Cireneus uns dos outros

Reiteramos a opção por narrar uma parte da vida do Padre Zef, não apenas enquanto testemunha do que vive, vê e ouve mas porque se cruza com outros sacerdotes que vivem um martírio semelhante e acima de tudo porque nos permite perceber um pouco melhor a vida dos mártires e o que experimentaram os que foram condenados a trabalhos forçados. Depois da descrita estadia na prisão, o diretor da prisão reuniu os presos, proferindo um discurso extenso e “magistral”:

“O Partido e o Poder pensam sempre por vós. Marx e Engels explicaram-nos que o trabalho fez o Homem. O Homem tinha sido macaco e só o trabalho a tornou em ser humano. Assim a ‘mãe Partido’ pensa por vós com o maior cuidado. Vocês estão aqui para trabalhar e assim serem capazes de entrar em sociedade humana. O trabalho é glória. (…) A vossa ração diária será de 2 gr de óleo, 4 gr de massa ou arroz e 10 gr de açúcar por pessoa”207.

Dividiram os presos em cinco grandes brigadas para a concretização de trabalhos forçados e estabeleceram que os 29 sacerdotes permaneceriam juntos, como anexo da quinta brigada; tencionavam apontá-los, no decurso dos trabalhos, como a causa de todos os males do povo albanês, “o bode expiatório”.

78 Após uma longa e penosa viagem para Sul208, iniciam-se os trabalhos forçados, que consistiam no nivelamento de uma pequena colina em ordem a permitir a drenagem de água de um pântano. Os instrumentos de trabalho eram primitivos, como carrinhos de mão com roda de madeira. O trabalho era pesado, agravado pelos espancamentos que os guardas aplicavam sempre que se verificavam constrangimentos, demoras ou interrupções mesmo que momentâneas e o trabalho não fluía em cadeia, como desejado. Existiam também presos “cobardes” que trabalhavam pouco e também agrediam os restantes presos, com o objetivo de alcançar a benevolência do brigadier (chefe da brigada) e deste modo receber um reforço da ração diária, traduzida afinal no suplemento de duas colheres de sopa aguada. Para os outros prisioneiros, estes elementos eram ainda mais nefastos que os próprios comandantes pois, após as oito horas de trabalho pesado gritavam: “Em honra do amigo Estaline, mais meia hora de ataque ao trabalho” e, antes de terminar esse período, ouvia-se ainda outro a dizer: “Em honra do amigo Tito, mais meia hora”; e ainda outro, “Em honra do amigo Enver mais meia hora”, o que se tornava insuportável, pois neste final de dia os prisioneiros estavam exaustos – e por sua vez, os comandantes ficavam mais furiosos (pois imaginavam que os presos podiam tentar boicotar o trabalho nestes períodos suplementares como manifestação do seu desagrado relativamente aos líderes comunistas invocados) e os espancamentos aumentavam209.

No campo de concentração onde residiam os presos, para além de regressarem exaustos do trabalho, todas as noites eram confrontados com os maus tratos e castigos quotidianamente infligidos aos que não tivessem cumprido as normas do trabalho diário (4 m³ de terreno para picar ou carregar por prisioneiro) ou que tivessem quebrado a disciplina; no pátio, em frente à barraca-cozinha encontravam-se dois postes com um transversal, onde os prisoneiros eram

208 O condutor, que não dormia há mais de 48 horas, causou um acidente com a camioneta, pelo que foi agredido

pelos guardas que o insultavam de “reacionário” e o acusavam de provocar o acidente para permitir que os prisioneiros se evadissem. Foi imediatamente algemado e preso – e os prisioneiros distribuídos pelos demais camiões da caravana, o que agravou a sobrelotação e condições desumanas da viagem.

79 amarrados com algemas ou corda, por vezes suspensos com a cabeça para baixo, o que fazia com que gemessem, gritassem – e alguns até morreram ali, num espetáculo muito violento para os demais: “Era duro o trabalho, mas mais ainda o terror (que se via e ouvia) enquanto recebíamos aquela sopa envenenada / dolorosa”210.

Acabado o nivelamento da colina, os trabalhos forçados prosseguem com a secagem de um pântano, onde, no início, os prisioneiros procuraram beber água e lavar a roupa mesmo sem sabão, na tentativa de exterminar os piolhos que os mortificavam. O trabalho era aqui ainda mais pesado, uma vez que o carrinho de mão não andava na lama; quando o Padre Alex Baqlin se deteve com o carrinho encravado na lama, o comandante bateu nas costas com o pau da pá até se quebrar. Quando Zef acorreu para o ajudar, o comandante impediu-o e também lhe bateu; continuou a agredir o Padre Alex Baqlin, e mesmo quando este caiu na lama, pontapeava-o e gritava-lhe palavrões, acusando-o de querer sabotar o trabalho do Partido. E acrescentava: “Aqui morrereis todos!”211. Zef Pllumi testemunha que viu o Padre Gege Lumen e o Padre Mark Harapin no meio do pântano a serem enterrados na lama por outros presos – e assim morreram. Verificavam-se casos destes, em que os comandantes ordenavam que sepultassem na lama outros prisioneiros, apenas porque o seu estado de debilidade e esgotamento os impedia de trabalhar mais; vários perderam a vida deste modo, por afogamento. Devido ao trabalho extenuante, à falta de alimentação e de condições mínimas de higiene, surgiram muitas doenças entre os prisioneiros; no entanto, mesmo assim doentes, eram forçados a trabalhar212.

Os 29 sacerdotes eram segregados pelas autoridades relativamente aos restantes prisioneiros, pois temiam que exercessem influência sobre os demais. No seu dormitório, antes de dormir, encontravam um momento para se consolarem mutuamente e também para

210 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 187. 211 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 188.

212 Certo dia foi recebido no campo um médico; embora dispusesse apenas de uma caixa de aspirinas, uma

caneta e papel, a sua chegada foi motivo de alívio, pois prescrevia que alguns dos prisioneiros deveriam ficar deitados.

80 tentar coordenar o trabalho do dia seguinte, no sentido de que os mais jovens e aptos fisicamente pudessem auxiliar os mais idosos e débeis a cumprir as duras metas impostas em termos de trabalho diário. “Para nós estava claro que aí morreríamos, pois nos tinham declarado isto muitas vezes. Contudo, queríamos viver”213. Nenhum dos 29 sacerdotes estava habituado a trabalhar fisicamente e “aquele trabalho era pesado mesmo para animais de carga”214 como narra Zef. Como referido, a “norma de trabalho” diária correspondia a 4 m³ de terra por prisioneiro (para cavar, furar ou transportar) e quem não o conseguisse cumprir seria, à noite, preso na cruz. O Padre Ciril Cani tinha 75 anos e como é natural, não conseguiria executar a “norma”; na mesma situação se encontravam muitos outros, quer por serem idosos quer porque apresentavam fracas condições de saúde. Para estes não serem mortos nas torturas, os mais novos realizavam diariamente duas ou mais “normas”. O Padre Pjeter Gruda chegou a realizar até 5 normas, ou seja, 20 m³ diários, praticamente sem comer e nas condições inóspitas descritas. “Era uma verdadeira máquina escavadora como lhe chamavam os demais sacerdotes, assim como o Padre Djoniz Makaj e o Padre Mehill Miraj, aos quais Deus tinha dado uma excecional força física”215. Trabalhavam sempre sob apertada vigilância de guardas que lhes gritavam: “Padres! padres! Preguiçosos típicos!” e era-lhes entregue o terreno mais difícil em termos de trabalho. Mas como refere Zef:

“Mas nós eramos padres de verdade e mesmo no trabalho falávamos uns com os outros, refletindo e partilhando sobre que parte da Bíblia se aplicava melhor àquela vida. A maioria dos sacerdotes respondia: «O cativeiro da Babilónia». Mas certamente, em Babilónia o povo de Israel viveria, em comparação connosco, bastante melhor. Enfim, tudo seja oferecido a Deus e para desconto dos nossos pecados”216.

Os sacerdotes são declarados pelo comandante do campo como “traidores de Tito e da Jugoslávia”217. Para além de se ajudarem entre eles, os sacerdotes foram ajudados por outros,

213 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 189. 214 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 189. 215 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 189. 216 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 190. 217 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 191.

81 como é o caso de um prisioneiro de etnia cigana. Quando marchavam em fila de dez, o Padre Nikoll Laska caiu. O Padre Pjeter Gruda e Zef acorreram para o tirar do caminho, tentando assim evitar que fosse pisado; porém, já não tinham forças para o erguer. O Padre Djoniz Makaj correu para o soerguer e tentou transportá-lo às costas até ao campo, mas cansou-se de tal modo que não conseguia prosseguir. De outra brigada, acorreu um prisioneiro de etnia cigana que o carregou, mas predisse que não demoraria a morrer, explicando que estava habituado a carregar pessoas para o hospital (e pela sua experiência sabia que pouco antes de morrer o moribundo pesava muito mais) e na verdade assim se verificou. Não se soube onde o sepultaram. Este episódio de morte no caminho, por exaustão e esgotamento, tornou-se habitual à medida que o período de trabalhos forçados avançava. Naquele contexto de exiguidade alimentar, alguns prisioneiros tapavam com um cobertor o irmão ou colega morto, com o intuito de beneficiarem da sua ração de sopa por um dia, antes que se descobrisse o falecimento e para assim aumentarem a probabilidade de, por sua vez, tentarem assegurar mais um dia de vida218.

Um chefe de brigada italiano, apreciando a postura cooperante dos sacerdotes, pediu aos oficiais para ser o responsável pelo seu grupo, dizendo-lhes: “Com esta organização que tendes demonstrado, recebereis a bandeira”. A bandeira era um retalho vermelho pendurado num pau de 2 m, e era atribuído à brigada que tivesse o melhor resultado de trabalho, a nível semanal219. A vantagem deste prémio consistia no facto de, nessa semana, os prisioneiros da brigada a quem fosse entregue a bandeira não serem espancados. De facto, os sacerdotes conseguiram ganhar a bandeira, o que motivou o espanto dos chefes e inclusivamente o furor do diretor do campo, que invetivou os demais prisioneiros pelo facto de os sacerdotes, que nunca tinham executado trabalho manual e sempre tinham sido intelectuais, se sobreporem,

218 Zef Pllumi adotou a prática de apanhar diariamente uma ou duas tartarugas no canal que se encontrava a

escavar, pedindo depois ao cozinheiro que as cozesse num tacho, num canto do campo. Este aporte nutricional foi fundamental para que sobrevivesse às condições de subalimentação a que os prisioneiros eram sujeitos no campo de trabalhos forçados. Cf. PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 199-200.

82 pelo seu desempenho prático, aos restantes presos, que “ tinham nascido com a pá e a picareta na mão”220.