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Exemplo de um novo sacerdote, o último dos 38 mártires: Padre Mikel Beltoja

MÁRTIRES E CONFESSORES

2.2. Martírio e Igreja: Igreja na Albânia ou Igreja da Albânia?

2.2.2. Exemplo de um novo sacerdote, o último dos 38 mártires: Padre Mikel Beltoja

Tendo em conta esta “primavera da Igreja presente na Albânia”, parece-nos importante apresentar de modo mais aprofundado o testemunho de um dos sacerdotes e mártires cujas vocações surgiram em pleno comunismo, depois de terem visto o que acontecia aos sacerdotes, e aceitando, pois, o dom da vocação ao sacerdócio e o dom do martírio.

256 Detentores de terras.

99 O Padre Mikel Beltoja nasceu em Beltojë-Shkoder a 17 abril de 1935 (conforme o registo civil, terá nascido a 9 de maio de 1936, com o nome de Hile). Realizou os estudos primários em Beltoje nos anos 1948-1951, subsequentemente frequentou um outro ano em Berdice, tendo posteriormente realizado sete meses de estudos na Escola Pedagógica em Tirane, que interrompeu para cumprir o serviço militar entre os anos 1954-1957. Quando terminou, apresentou-se para ser Padre perante Mons. Ernest Çoba, então Bispo de Shkodra. Entre 1959 e 1962 realizou os estudos religiosos. Depois de ter estudado Filosofia e Teologia, foi Ordenado Padre a 8 de dezembro de 1961. Celebrou Eucaristia e administrou os Sacramentos até 22 de fevereiro de 1967, ano que correspondeu ao do completo encerramento das Igrejas258. Regressando à casa familiar, trabalhou na cooperativa de agricultura até 1973259, ano em que é preso e chamado a responder perante o tribunal do regime comunista.

Perante a acusação de se manifestar contra o comunismo e de ter criado, em diversas aldeias e vilas, “centros reacionários”, o Padre Mikel Beltoja revelou-se peculiarmente convicto e corajoso nas suas respostas, e assumiu posicionar-se abertamente contra os erros do comunismo. Declarou-se “inimigo declarado do poder popular” e nem por um momento se arrependeu das “obras criminosas que desenvolveu”. Nas atas do arquivo do tribunal, as autoridades registaram: “manifestou sempre ódio contra o nosso sistema socialista”260.

Defendeu incondicionalmente o clero e afirmou-se totalmente contra a divisão da Igreja na Albânia relativamente ao Vaticano. No decurso dos processos de interrogatório, assumia ser “cidadão do Vaticano, servidor do Papa261; dizia claramente: “Todos nós, e sobretudo nós

258 Vd. Capítulo I, ponto 1.2.2. Perseguição aos opositores ao regime e à religião, concretamente a 3ª fase da

perseguição à Igreja Católica, iniciada em 1967 e que se prolongou até 1990.

259 De sublinhar, no entanto, que no decurso destes cinco anos, à noite, clandestinamente, celebrou a Eucaristia e

administrou os Sacramentos do Batismo, Crisma, Unção dos Enfermos, Reconciliação. Este ministério pastoral foi denunciado nas atas de acusação do seu Processo de Julgamento, em que se incriminava igualmente o Padre Mikel Beltoja de, durante o dia e embora comparecendo com assiduidade na cooperativa agrícola estatal trabalhar apenas o mínimo, alegando que tinha a sua mãe doente e por conseguinte, não podendo permanecer no posto de trabalho pela necessidade de lhe prestar assistência.

260 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2367. 261 Cf. Positio Super Martyrio, Vol. II, 2367.

100 os sacerdotes, como vamos respirar, como podemos viver sem o Vaticano? É dali que nós tomamos os ensinamentos da fé, e não fazemos política. Eu não sei o que é a política”262.

“Foi interrogado dia e noite e horrivelmente torturado, mas resistiu heroicamente, desafiando todos (os algozes) como um verdadeiro atleta de Cristo. A primeira vez que, acompanhado por polícias, entrou na sala de Processo, em condições físicas de tal modo lastimosas que suscitavam piedade, a primeira coisa que fez foi saudar em voz alta todos os presentes, dizendo com convicção e orgulho: «Seja Louvado Jesus Cristo!», recebendo insultos, injúrias e verdadeiras zombarias, às quais respondia com um sorriso aberto. Depois de interrogado, respondeu com tom de voz firme: «Já vos respondo, mas primeiro quero mostrar- vos uma coisa, rapidamente», e despindo a camisa, exibiu as nódoas negras e chagas sangrentas no peito e nas costas, resultantes de pontapés com botas e golpes com bastão e outros objetos contundentes. Seguidamente, falou com audácia e paixão: «Eu conheço o meu fim, vós já o tendes pré-estabelecido (…) eu sei que o comunismo é o inimigo jurado da fé e da nação». Este ódio contra a fé e especialmente para com os sacerdotes foi demonstrado também noutros países (…) e aqui na Albânia, depois da vinda do comunismo com o genocídio sem precedentes do clero das três religiões (islâmica, ortodoxa e católica). Eu não sou nem o primeiro nem o último sacerdote que estou a ser condenado. Mas que Deus vos perdoe, e que um dia vos possais arrepender-vos do vosso ateísmo. Deus é grande na misericórdia para aqueles que regressam, no caminho do arrependimento (…). Que mal fez a fé à nação, ao país? Durante os séculos e até aos nossos dias, as três religiões têm vivido em harmonia, oferecendo forças intelectuais no plano cultural, moral e espiritual, em favor da fé do povo (…). A fé é bálsamo da alma e conduz o homem nos caminhos justos de Deus, contra a corrupção moral; com os seus ensinamentos, cria a dignidade da vida familiar e social para o bem do povo. Olhai a Bíblia com os seus Dez Mandamentos. Queria perguntar-vos ainda: onde estão as sete Igrejas de Shkodra que, por ordem do ditador Enver Hoxha foram destruídas e transformadas em armazéns, depósitos, centros de cultura?”263.

Nos meses em que esteve detido, escreveu nas paredes da prisão: “Desapareça para sempre o ateísmo! Triunfe (viva) a fé em Cristo! Abaixo a «fé» em Enver Hoxha! Resplandeça a Albânia e o mundo de Cristo e do Clero! O ateísmo é infiel, sanguinário, cruel, injusto, sem pátria! Em latim escreveu: “Ave T Crux, quia per sanctam Crucem tuam redimiste mundum”. No seu julgamento, foi interrogado sobre as frases que havia

262 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2360. 263 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2363.

101 gravado na cela e, com coragem e veemência, explicou: “Com «Abaixo o ateísmo! Abaixo a ideologia de Enver Hoxha!» quis dizer: Desapareça aquele que destruiu a alma e o coração dos fiéis!” E à pergunta: «Porque escreveste na parede e não numa carta?» respondeu: «Para que o maior número de pessoas pudesse ler»264.

O seu sobrinho Frano Gjergji, que pertencia ao Partido Comunista, relata:

“As pessoas que estavam com ele no cárcere contaram-me que ele era sempre cortês e paciente para com todos os que estavam presos com ele. Não odiou ninguém, nem mesmo os polícias que apagavam a beata do cigarro na sua testa quando ele se encontrava preso com as mãos atrás das costas. Como não se submetia às acusações que lhe faziam, torturavam-no cada vez mais violentamente e quem foi seu companheiro de prisão, como o Bispo Zef Simoni, testemunha: «Nele sentia-se a força do Espírito Santo, pois humanamente não se pode entender a resistência extraordinária que mantinha»”265.

Foi condenado a sete anos de prisão, mas quando ouviram as últimas palavras do Padre Mikel Beltoja, que constituíam uma completa desconsideração relativamente ao regime comunista, agravaram a sua condenação para a de fuzilamento. O Bispo Zef Simoni relata este episódio: “Depois de ter recebido a condenação a sete anos de prisão, o Padre Mikel levantou-se e disse: «Que tribunal é este? Que regime é este? Aqui na parede tendes a foto de Enver Hoxha! Deitai-a abaixo! Aí deve estar em destaque a cruz de Cristo!»”. Nesse momento, a sessão de tribunal foi suspensa, o Padre Mikel foi despido e começaram a torturá- lo violentamente com um furador, fazendo o seu corpo cobrir-se de sangue. O seu irmão Kol, que estava presente, dizia-lhe: «Cuidado, Padre Mikel!» ao que este respondia: «Fica no teu lugar. Eu sei o que devo fazer!» Depois destas torturas, a sua condenação de prisão foi comutada em condenação à morte por fuzilamento”266. O sobrinho refere:

“Quase pensei que [meu tio] Padre Mikel Beltoja tinha enlouquecido, por falar com aquela audácia contra a ditadura comunista, defendendo abertamente a fé e o Senhor”. O Padre Mikel tinha dito, entre outras coisas: «Pensais causar-me dano ao fuzilar-me, mas errais; na

264 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2364. 265 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2364. 266 Positio Super Martyrio, Vol. II, 2365.

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verdade fazeis-me uma honra fuzilando-me, pois eu sou um soldado de Cristo e por Ele morrerei como mártir». E voltando-se para o público que se encontrava na sala de Julgamentos, teve a coragem de defender os sacerdotes já mortos e disse com mágoa: “Irmãos, os sacerdotes deram a sua vida nestes vinte e cinco anos nas celas desta prisão; foram fuzilados gritando e proclamando até ao fim Cristo e a Sua vitória! Eles foram os verdadeiros albaneses, não traíram nem a Cristo nem à fé, nem à Pátria nem a Albânia! Mesmo se eles colaboraram com os italianos e com os outros Estados, fizeram-no só para combater o comunismo ateu, sem fé! Eu também sou da mesma ideia e permanecerei fiel até ao fim da minha vida!”267.

De facto, assim aconteceu: de acordo com uma testemunha do processo, quando lhe pediram, antes da execução, para dizer as suas últimas palavras para que ficassem registadas, o Padre Mikel Beltoja disse: “Vivam as sete rainhas de Shkodra”268. E exclamou: “Viva Cristo Rei!”, acrescentando: “Matais-me a mim, mas não matais Cristo!”269

Calaram-no para sempre com o fuzilamento, no dia 10 de fevereiro de 1974, numa zona situada abaixo da Igreja do Santuário de Nossa Senhora do Bom Conselho, onde se unem os rios Drin e Kir. Os seus restos mortais nunca foram encontrados e a sua mãe nunca pode derramar uma lágrima sobre a sua sepultura.

De acordo com o testemunho de Arcebispo Frano Illia270:

“Prestou corajosamente serviços religiosos (…) Escrevia sobre as paredes e onde podia, na prisão, em honra e defesa da religião e contra o ditador. Era um feroz santo, procurando a própria morte, como se não quisesse mais viver sob o ateísmo. Um verdadeiro mártir, sui

generis”271. E o Bispo Zef Simoni remata: “Sentimo-nos um nada perante pessoas de tal

elevação”272.