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PARA UMA TEOLOGIA DO MARTÍRIO HOJE

3.7. Narrar o martírio

Depois do que já foi dito, compreende-se agora melhor a importância da narração dos factos. Compreenderemos, ainda melhor, porque a Igreja, desde os primeiros mártires, sempre se preocupou por recolher e conservar as narrativas - acta, passiones, legendae - de martírio. Tal preocupação tinha em mente várias prioridades: manter viva a memória dos mártires; usar estas narrativas como exortação e preparação para o martírio de outros crentes e propor modelos de vida cristã, na pessoa daqueles que levaram à plenitude o seu compromisso batismal.

Por outro lado, o imperativo da narração do martírio impõe-se por si mesma, enquanto “testemunho” público da fé. Tal testemunho deve, como tal, ser “publicado” e celebrado, para ser atualizado em cada tempo. Neste sentido, o ato de narrar o martírio é, ele próprio, parte do testemunho/martírio.

A memória e narratio dos mártires teve e tem uma relevante função apologética e missionária, na medida em que afeta tanto os não crentes como os próprios oponentes ou perseguidores. Se, para os que têm fé, o testemunho dos mártires acrescenta e fortalece a fé, consistindo numa prova do amor de Deus para com a humanidade, também para os que não partilham dessa fé, constitui uma interpelação inapagável ou dificilmente olvidável.

Efetivamente, também para os não crentes, o martírio constitui um exemplo de humanidade na sua mais ampla e profunda expressão. Com efeito, se analisarmos os atos dos mártires em todo o processo que atravessaram, como as provas dos interrogatórios, as

492 DE SALDANHA, Teresa, Cartas na primeira República 1910-1915, Aletheia, Lisboa, 2006, 21. 493 DE SALDANHA, Teresa, Cartas na primeira República, 77.

167 torturas, a prisão e mesmo o fuzilamento, constatamos que, tendo a possibilidade de agir de outra forma, podendo por exemplo responder com revolta ou com a mesma violência verbal com que eram tratados, optaram sempre por uma atitude nobre, pacífica ao ponto de oferecer o perdão a quem os ofendia, maltratava, condenava sem razão e inclusivamente lhes tirava a vida. Os mártires e os confessores venceram-se a si mesmos e venceram também o seu adversário, demonstrando que é possível viver sempre de uma forma plenamente humana, ou seja, digna. E as atitudes que assumiram, que sabemos serem moldadas na fé em Deus e fortalecidas por Ele, são simultaneamente louváveis sob o ponto de vista cristão e humano.

Nesta reflexão, optamos por destacar o perdão como a atitude por excelência que os mártires oferecem à posteridade, a crentes e não-crentes, como exemplo extremo de superação do mal e da capacidade de acolhimento do seu semelhante, como expressão da maior humanidade, porque expressão máxima da configuração com Jesus.

Como Jesus, os mártires conseguiram perdoar aos torturadores e algozes que nunca lhes pediram perdão que não admitiram que estavam a agir erradamente. Perdoaram a quem fez acusações falsas contra si, a quem os julgou, torturando, e até a quem disparou para lhes tirar a vida. Perdoaram o passado e também o mal ainda não cometido mas já planificado, perdoando assim por antecipação. Também os sacerdotes que sobreviveram ao comunismo e foram libertados foram capazes de perdoar, pois, optaram por não acusar ou apresentar queixa, perante o tribunal, contra os seus torturadores nem tão pouco intentaram qualquer tipo de vingança.

Para citar um exemplo significativo e muito concreto de perdão na vida do Padre Zef Pllumi, referimos um carcereiro, que para subir na carreira, aproveita uma situação em que, por ter ouvido murmúrios provenientes da cela onde estavam quatro presos, um deles o Padre Zef Pllumi, acusa esses presos de estarem a planificar uma fuga. Um destes presos, para se livrar das torturas, cede e confessa a mentira enquanto o Padre Zef Pllumi nega-se a mentir e pede a morte. É, por isso, espancado brutalmente pelo comandante Ali Xhunga, de tal modo

168 que fica coberto de hematomas dos pés à cabeça. Ali Xhunua bateu em Zef até ficar cansado e, como estava calor, limpou o suor e disse: “Vês o que me fizeste? (…) mas vais ver agora o que te vai acontecer”495. Quando se encontram todos de novo, o comandante disse:

“Lourenço Vata, vês o que fizeste ao rapaz? - Não, Lourenço não tem culpa nisto. -Quem tem culpa, eu?

-Não! Ninguém tem culpa, não se trata de culpa, esta foi a nossa sorte, à qual devemos submeter-nos.

-És fatalista?

- Hoje não sou capaz de conversar mais.

- Está bem, eu gosto de discutir contigo. Deixamos para quando ficares curado”496.

Considero este exemplo grandioso, pois o Padre Zef não só perdoa a culpa de Ali Xhunga, mas perdoa de tal modo que procura até libertar a consciência de quem errou. E reparemos na desproporção: Ali culpa Zef de o ter feito transpirar e Zef não o culpa de o ter espancado em todo o corpo, ficando azul-roxo e a sangrar. A sua atitude de perdão, misericordiosa para com o comandante mostra-nos um caminho que diríamos mais que humano, remetendo-nos para o episódio em que Jesus disse a Pilatos: “tu não tens culpa, mas quem me entregou”, e nessas palavras é como se consolasse o próprio Pilatos. Trata-se na verdade de um grande desafio para a nossa humanidade imperfeita, perdoar de modo tão completo, com uma delicadeza tão extrema, a ponto de querer poupar quem nos feriu de sentir sequer o sentimento de culpa. E constatamos que este exemplo não deixa o ser humano indiferente, pois mesmo o torturador do Padre Zef sente nascer em si o desejo de diálogo. Com esta atitude, Padre Zef demonstra, mesmo aos perseguidores, que sobrevive para transmitir o testemunho do Seu Mestre e partilhar com todos os outros o que é perdoar, o que é amar, o que é viver.

O Padre Jul Bonati, citado na obra Një monument nan dhe, enfatizou:

“A fé católica tem como inimigo principal o erro e não os errantes, sendo que o erro é o comunismo, mas os comunistas temo-los por irmãos. Eu vivi torturas nunca ouvidas e nunca lidas. Massacraram (...) sem qualquer razão”.

495 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 134. 496 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 138.

169 Em contraponto com o seu comportamento, as atitudes dos carcereiros, comissários, procuradores, causam repulsa, pois que, em nome da “libertação do povo”, agem de modo brutal relativamente a pessoas que são também elementos do povo. Vimos como, sob a justificação de que pretendiam alcançar a justiça e a igualdade, se multiplicaram os espiões e os carrascos. O comportamento dos torturadores, por exemplo, revela o pior de que a humanidade é capaz.

Neste aspeto particular, daríamos razão ao filósofo Pascal quando refere a “Necessidade da aposta”497 Sob esta ótica, os atos dos mártires são, em simultâneo, lição de fé para os crentes e lição de humanidade para os não crentes. Daí a importância de narrar o martírio hoje: ao analisar os atos desumanos e humanos, respetivamente dos comunistas e dos crentes, transparece a superioridade de “apostar” seguindo o modelo da interioridade destes mártires, que, acreditando no Transcendente, se transcendem também no bem humano. O homem interior moldado por Deus constitui um testemunho muito forte para vivermos no dia a dia as dificuldades. Há quem avance mais, quem avance menos e quem tropece na primeira contrariedade e dificuldade, mas o modelo dos mártires ajuda, pelo menos aos crentes, a acolher o dom de Deus498 e, aos não crentes, a compreender que mesmo em situações-limite se pode ser humano e irmão de quem nos ofende e maltrata, pagando o mal com o bem. Ainda que não exista a fé numa vida eterna, o padrão de dignidade que nos propõem os mártires permite viver esta vida de maneira exemplar, ainda mais livre que na prisão, e com um padrão muito superior ao dos que se orgulhavam de se “aquecer na lareira” ou que tinham prazer em ofender e bater.

Com o exemplo dos mártires, e de acordo com o raciocínio de Pascal, é possível ganhar sempre a vida presente, independentemente de uma vida futura na eternidade, e esse é um desígnio querido a toda a humanidade.

497 PASCAL, Pensamentos, Difusão Europeia do Livro, São Paulo, 1961.

498 PINTO, António Vaz, Ateísmo e fé – à busca de Deus, Editorial A. O., Braga, 1997, 329. “Se o dom de Deus

170 Dos que protagonizaram diretamente os interrogatórios como “inspetores”, não há conhecimento que fossem presos depois dos anos 90, com a extinção do regime comunista; não existiu qualquer pedido de perdão, em público, nos meios de comunicação social. Há, no entanto, notícia de pedidos de asilo político, inclusive a Roma ou a outros países estrangeiros. Entre os que torturaram o Padre Zef Pllumi e outros mártires ferozmente, vários houve que foram condecorados pelo governo, como Shyqyri Çoku, que foi agraciado com a mesma medalha e título concedido ao Padre Zef. O que é certo é que com o exemplo e obras dos Sacerdotes que sobreviveram, e com o testemunho que o Padre Zef Pllumi499 nos legou, aprendemos que mesmo esta história terrível pode ser contada pacificamente, em tom de perdão: para as gerações futuras, estes homens citam nomes e constroem memória, sem raiva ou rancor, redigem obras que refletem, questionam e convidam a fazermos o mesmo. E assim, este testemunho torna-se um legado de paz para as novas gerações.

Para além dos objetivos já referidos, narrar o martírio tem ainda esta finalidade: moldar as consciências e os corações humanos no sentido de os transformar para que a barbárie não se repita e o nosso mundo possa ser realmente melhor.

Se narrar o martírio é importante para reforçar a identidade cristã onde quer que seja, não podemos esquecer o que disse o Papa João Paulo II aos albaneses: “Por isso, caros albaneses, o vosso drama deve interessar a todo o continente europeu: é necessário que a Europa não o esqueça”500. A história e exemplo dos seus mártires pode iluminar o caminho da nova Albânia que procura o seu lugar na Europa, ajudando a valorizar e promover as virtudes e os princípios culturais ancestrais. Como povo, cabe-nos decidir os critérios com os quais queremos educar as futuras gerações, formar a sua identidade e podemos aprender com a história ainda muito recente e refletir se é melhor para nós acreditarmos num Deus criador e salvador ou pomos outros deuses no Seu lugar.

499 PLLUMI, Zef, Vivi solo per testimoniare, trad. Keda Kaceli, Buongiorno Italia Editore, Milano, 2015, 14. –

“Aspirando ao paraíso no Senhor, viveu um verdadeiro inferno”.

500 Já citado supra, na Introdução, nota 2. RANCE, Didier, Hanno voluto ucidere Dio – La persecuzione contro

171 De facto, quando ouvimos relatos como os que se verificavam nos trabalhos forçados, em que “havia casos em que enterravam os Sacerdotes vivos na lama só porque não podiam mais trabalhar”501 é legítimo pensar se será este o trabalho que dignifica e que o regime comunista defendia ser a chave de evolução do ser humano, que assim deixava para trás a condição de macaco? Cabe-nos a nós escolher quem será o nosso Deus: Jesus Cristo, Lenine, Estaline, Mao-Tse-Tung ou Enver Hoxha? Em contraste com a ignorância, o testemunho narrado relativamente aos mártires edifica, mostra-nos que o conhecimento de Deus salva; traz a Salvação pois leva o Homem a aceitar a graça, não apenas em benefício do próprio, mas dos que contactam com ele e acolhem este testemunho. Este conhecimento de Deus liberta interiormente das inclinações como a opressão ou a vingança. E habilita a perdoar a injustiça e até a própria perda da vida, em muitas circunstâncias.

Se aqueles que destruíram lugares de culto ou maltrataram indizivelmente os seus semelhantes tivessem tido este temor de Deus, talvez não tivessem agido dessa forma. Tomamos as palavras de um montanhês que se dirige a um responsável comunista quando este proibiu que nomeassem Deus daquele dia em diante, pelo facto de o partido ter afirmado que Deus não existia. O montanhês pergunta por três vezes a este comunista se estava verdadeiramente convencido de que Deus não existia. Apos a confirmação, replica:

“Digo-te a ti que quando eu ficar convencido de que Deus não existe, então nada nesta terra deixarei de fazer do que me apeteça e não existirá governo que me meta na linha, nem alguém que me impeça, porque se não existe Deus e não existe alma, então não existe obra boa ou má, mas tudo o que me convenha a mim será bom”502.

Na verdade, os que agiram sem Deus tiveram primeiro de se enganar a si próprios e “eliminar Deus da sua consciência” para que pudessem agir daquela forma e acreditar que esta consistia num bem para a Albânia. Estavam convictos de que este modo de agir em

501 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 188. 502 PLLUMI, Zef, Rrno vetem per me tregue, 458.

172 função do amor ou temor de Deus consistia numa estratégia dos sacerdotes para explorar o povo, e que agora competia ao regime eliminar a sua influência nefasta sobre este.

Narrar o martírio tem, por fim, uma função evangelizadora, e, se não tornar os homens amantes de Deus, apresentando-lhes um modelo divino, ao menos apresenta-lhes como referência um modelo mais humano.

De facto, se ninguém narrar e testemunhar, “como hão-de invocar Aquele em quem não acreditam? E como hão-de acreditar n’Aquele de quem não ouviram falar? E como hão-de ouvir falar sem alguém que O anuncie?” (Rom, 10, 14-15).