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CAPÍTULO 2 – POR UM CONCEITO DE CLICHÊ

2.3 Do clichê ao arquétipo e vice-versa

2.3.1 Arquétipos e inconsciente coletivo

Os textos Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo e O conceito de inconsciente

coletivo são resultantes de conferências proferidas por Carl Jung em 1933 e 1936

respectivamente. Nesses textos, o psicólogo busca esclarecer dois conceitos basilares de seu arcabouço científico: o que são arquétipos e o que é inconsciente coletivo. Jung admitia que seu conceito de arquétipo era uma reelaboração de concepções similares já esboçadas por outros pesquisadores, tais como o etnólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857-199), que utilizava o

termo representações coletivas para as figuras simbólicas da cosmovisão de algumas culturas, ditas primitivas; os sociólogos franceses Henri Hubert (1872-1927) e Marcel Mauss (1872- 1950), por exemplo, que abordavam as categorias da imaginação presentes em diversas manifestações religiosas e o etnólogo alemão Adolf Bastian (1826-1905), que identificava a existência de pensamentos elementares ou primordiais nas mais diversas culturas.

O conceito de arquétipo para Jung, contudo, é tributário de um pensador ainda mais antigo: Platão. Jung (2002) dizia que arquétipo é um termo explicativo do eidos platônico. “Arquétipo nada mais é do que uma expressão já existente na Antiguidade, sinônimo de ideia no sentido platônico” (JUNG, 2002, p. 82). Segundo a teoria platônica, as ideias (ou formas) são imateriais, imutáveis e eternas.

Sigmund Freud (1856-1939) já notava que em alguns sonhos apareciam elementos que pareciam não fazer parte da experiência pessoal do sonhador. A esses elementos, Freud chamava

resíduos arcaicos, isto é, “formas mentais cuja presença não encontra explicação alguma na

vida do indivíduo e que parecem, antes, formas primitivas e inatas, representando uma herança do espírito humano” (JUNG, 2008, p. 82). Freud, porém, não admitia a existência de um inconsciente coletivo e é justamente esta concepção formulada por Jung que reconfigura e redimensiona o conceito de arquétipo, pois para ele, são os arquétipos os conteúdos do inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal repousaria sobre uma camada mais profunda, denominada inconsciente coletivo. Tal dimensão da psique humana é inata, uma vez que não tem origem em experiências ou aquisições pessoais e é coletiva por ser universal e existir em toda parte e em todos os indivíduos. “Estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais, isto é, de imagens universais que existem desde os tempos mais remotos” (JUNG, 2002, p. 16).

Para Jung, a racionalidade não é o único recurso para a apreensão do mundo, pois a consciência se orienta em relação à experiência por diversos caminhos. O psicólogo destaca quatro tipos funcionais e suas formas evidentes: “A sensação (isto é, a percepção sensorial) nos diz que alguma coisa existe; o pensamento mostra-nos o que é esta coisa; o sentimento revela se ela é agradável ou não; e a intuição nos dirá de onde vem e para onde vai” (JUNG, 2008, p.74).

Não sendo a razão o meio de acessar os arquétipos, como provar que eles existem? Jung (2002) avaliava que atestar a essência dos arquétipos é uma possibilidade tão remota quanto a de provar os instintos. Por outro lado, é possível percebê-los, concretamente, em ação. O psicólogo ressaltava que seu trabalho era de natureza empírica e que suas formulações foram resultantes de sua experiência prática, seja no contato com seus pacientes, ou nas evidências

manifestas nos conhecimentos esotéricos e em narrativas mitológicas. Talvez Jung tenha se perguntado por qual motivo era (e continua sendo) possível notar imagens recorrentes nos sonhos de pessoas tão diferentes entre si ou, ainda, como é possível que haja mitos semelhantes em culturas e contextos absolutamente diversos.

A título de ilustração, podemos apontar algumas imagens arquetípicas: a noção da existência de uma entidade divina e onipotente; a morte como transmutação, passagem ou transformação; a existência de uma entidade que gera, cuida e abriga; o herói que supera os obstáculos em favor da coletividade; o mártir que oferece a si mesmo em sacrifício pelo bem de todos; o sábio ancião ou oráculo, etc. Segundo Jung (2002, p.57), “há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida”.

Ainda na tentativa de clarificar o conceito de arquétipo, Jung alerta para a distinção entre arquétipos e ideias arquetípicas. Os arquétipos dizem respeito à forma e não ao conteúdo. “O arquétipo é um elemento vazio e formal em si, nada mais sendo do que uma possibilidade dada a priori da forma de sua representação” (JUNG, 2002, p. 91), e segue dizendo que uma imagem primordial “só pode ser determinada quanto ao seu conteúdo, no caso de tornar-se consciente e, portanto, preenchida com o material da experiência consciente” (JUNG, 2002, p. 91). Ele conclui que o que herdamos são as formas (arquétipo) e não o conteúdo. Se tomarmos o arquétipo da “entidade que gera, cuida e abriga”, por exemplo, e nos reportarmos ao âmbito da experiência consciente vamos encontrar tal arquétipo (forma) vivificado na figura da mãe (progenitora) ou mãe natureza, mãe terra, a alegoria da pátria como mãe, Nossa Senhora (virgem-mãe) e outros conteúdos ou ideias arquetípicas semelhantes.

No texto Chegando ao inconsciente, que compõe a coletânea O homem e seus símbolos (1964), Jung nos diz que o arquétipo se expressa na experiência consciente por meio de símbolos, que são imagens dotadas de conotações especiais, além do seu significado evidente ou convencional.

Assim, uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além do seu significado manifesto e imediato. Esta palavra ou esta imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance da nossa razão (JUNG, 2008, p. 19).

Um fato psicológico importante para Jung (2008) é a capacidade que o homem tem de também produzir símbolos, de modo inconsciente e espontâneo, na forma de sonhos. Por compreender os sonhos como canais de acesso ao inconsciente, o psicólogo dedicou ao tema

muito dos seus esforços empíricos ao longo de 60 anos de clínica e pesquisa. “Os símbolos são a melhor expressão possível para um conteúdo inconsciente apenas pressentido, mas ainda desconhecido” (JUNG, 2002, p.18).