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CAPÍTULO 2 – POR UM CONCEITO DE CLICHÊ

2.3 Do clichê ao arquétipo e vice-versa

2.3.2 Símbolos, mitos e sintoma

Façamos um aparte para analisar com mais atenção o conceito de símbolo. De acordo com a semiótica de Charles Peirce (1839-1914), o signo é, grosso modo, aquilo que representa algo para alguém. Há, portanto, um objeto representado, a representação em si e o significado da representação. Essa relação triangular é composta pelo referente (objeto), o significante ou

representamen (a representação do objeto) e o interpretante (o significado, a interpretação). Na

relação do signo com o objeto (ícone, índice e símbolo)62, o símbolo é aquilo que representa

algo por convenção. O signo simbólico não precisa ter qualquer relação de aparência (ícone) ou contiguidade (índice) com o objeto, bastando que tenha sido socialmente convencionada a sua significação. Por exemplo, em certas culturas uma pomba branca simboliza a paz ou uma cruz pode simbolizar sacrifício, especialmente em sociedades cristãs. Os símbolos são arbitrários e sua significação aceita socialmente, tais como as bandeiras dos países e os sinais de trânsito.

McLuhan e Watson (1973) destacam que o sentido convencionado é, de fato, um acordo entre as partes e que tal ideia está presente na origem da palavra símbolo.

Ajuda ter em mente o sentido original e a estrutura do termo ‘símbolo’ como justaposição de duas coisas. Originalmente, as duas partes contratantes quebravam um graveto e cada uma ficava com uma metade. Ao se completar a relação, os interessados justapunham os dois gravetos, criando o símbolo. Isso vem de symballein, que em grego quer dizer ‘jogar junto’. Uma chaleira não é um símbolo a não ser justaposta a um fogão, uma panela ou comida. As coisas isoladas não são símbolos (MCLUHAN; WATSON, 1973, p.53).

Há, porém, uma sensível diferença entre os conceitos de símbolo aqui apresentados, pois se para a Semiótica a arbitrariedade é constitutiva do símbolo, para Jung os símbolos não são

62 Segundo Peirce (2005), quando a relação do signo com o seu objeto é dada por convenção, tal signo é um

símbolo. Quando o signo mantém uma relação de contiguidade com o objeto que representa, esse signo é um índice. Por sua vez, temos um ícone, quando a relação entre signo e objeto é por semelhança.

exatamente arbitrários, mas uma expressão especial dos conteúdos inconscientes pessoais ou coletivos (arquétipos). Os quais, podemos inferir, quando “justapostos” aos conteúdos conscientes “jogam junto” e podem fazer sentido.

Por existirem inúmeras coisas fora do alcance da compreensão humana é que frequentemente utilizamos termos simbólicos como representação de conceitos que não podemos definir ou compreender integralmente. Esta é uma das razões por que todos as religiões empregam uma linguagem simbólica e se exprimem através de imagens (JUNG, 2008, p. 19).

É possível analisar que as imagens simbólicas, para Jung, surgem da insuficiência da linguagem lógico-verbal de representar ou descrever nossas percepções. As imagens tornam-se símbolos dos conteúdos da psique, tais como medo, desejo, fantasias, instintos básicos, formas arcaicas de pensamento, entre outros. No inconsciente pessoal, nós tecemos essa trama simbólica segundo nossas experiências, condições individuais e estado de espírito. Já na dimensão coletiva do nosso inconsciente há imagens herdadas, resultantes da experiência milenar da espécie humana. Tais imagens são os arquétipos e permanecem em nossa psique como vestígios de um longo processo evolutivo.

Essa psique, infinitamente antiga, é a base da nossa mente, assim como a estrutura do nosso corpo se fundamenta no molde anatômico dos mamíferos em geral. O olho treinado do anatomista ou do biólogo encontra nos nossos corpos muitos traços deste molde original. O pesquisador experiente da mente humana também pode verificar as analogias existentes entre as imagens oníricas do homem moderno e as expressões da mente primitiva, as suas ‘imagens coletivas’ e os seus motivos mitológicos (JUNG, 2008, p. 82).

Como exemplo, Jung cita que há muitas representações do motivo irmãos inimigos em várias narrativas religiosas, mitológicas e literárias63. Podemos mencionar Caim e Abel; Esaú e

Jacó; Etéocles e Polinices e um sem-número de enredos literários e cinematográficos. A tendência para formar representações baseadas no mesmo motivo seria algo instintivo ou, em outras palavras, arquetípico. “O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho e o das formigas para se organizarem

63 A dissertação de mestrado de André Luís de Oliveira (2017), intitulada Da tragédia ao trágico: relações

fraternas aborda a representação das relações fraternas, marcadas pelo trágico, na literatura dramática. Foram

analisadas as tragédias gregas que apresentam os filhos de Édipo e Jocasta, bem como os de Agamêmnon e Clitemnestra. No teatro brasileiro, a pesquisa privilegiou as peças de Nelson Rodrigues cuja ação central decorre de relações fraternas. As relações estudadas não significam fraternais, no sentido de amorosas, pois que muitas delas se estabelecem na rivalidade entre irmãos ou irmãs. A pesquisa foi desenvolvida sob a orientação do Prof. Dr. André Luís Gomes, ao abrigo do Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade de Brasília.

em colônias” (JUNG, 2008, p. 83). E se soa estranho vincular as ações humanos a tendências instintivas, um Jung evolucionista questiona: “Então por que supor que seria o homem o único ser vivo privado de instintos específicos, ou que a sua psique desconheça qualquer vestígio da sua evolução?” (JUNG, 2008, p. 93).

Esses “vestígios da nossa evolução” manifestar-se-iam por meio de imagens, cujas origens são desconhecidas, mas que compõem nossa psique. Com isso, Jung (2008) quer destacar que certas formas de pensamento, gestos e atitudes possuem compreensão universal, dado que é um esquema (uma forma) estabelecido antes mesmo do homem ter desenvolvido a consciência. Consequentemente, o homem moderno repete atos evocados por imagens que o interpelam de modo instintivo. Quanto ao processo criativo, este “consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada” (JUNG, 1985, p.71).

Nos detivemos no tópico sobre os arquétipos, porque há um volume considerável de estudos sobre o tema, provenientes da Antropologia e se ramificando em investigações mais específicas sobre mitologia, segmento, aliás, que o próprio Jung admite ter buscado referências. O trabalho do sociólogo e antropólogo francês Gilbert Durand (1921 – 2012) é um dos que se destaca, a partir dos anos de 1960, nos estudos sobre os arquétipos. Diferentemente de Jung, Durand opta pela categoria “imaginário”, ao invés de “inconsciente coletivo”, para designar a dimensão que congrega as imagens arquetípicas. Para ele, o imaginário é “o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” (DURAND, 2012, p.18). Ainda conforme Durand (2004), imagens como o mito, o sonho, o rito e os desejos compõem o imaginário e dão-se a conhecer por meio da repetição e pela redundância dos temas e manifestações simbólicas.

No campo da Narratologia, estudos estruturalistas investigavam as narrativas mitológicas, as lendas e contos populares na tentativa de encontrar padrões e modelos arquetípicos, os quais passaram a ser classificados segundo tipologias definidas. Podemos citar o trabalho de Vladimir Propp (1895-1970), Morfologia do conto maravilhoso, de 1928, na busca por elementos invariáveis e recorrentes nos contos populares russos. O linguista lituano Algirdas Julius Greimas (1917-1992), em Semiótica estrutural, de 1966, recuperou a tipificação de personagens de Propp e, com base no funcionamento da sintaxe do discurso, propôs um modelo actancial que pode ser observado nas funções dos agentes da ação (personagens).

O mitólogo norte-americano Joseph Campbell (1904-1989) discute o monomito, uma categoria que desenvolveu na obra O herói de mil faces, publicada em 1949, e que considera que nas narrativas mitológicas, nas mais diversas culturas, o herói percorre uma jornada cíclica,

com etapas definidas e previsíveis. As obras de Campbell inspiraram o roteirista norte- americano Christopher Vogler a publicar, em 1998, o livro A jornada do escritor: estrutura

mítica para roteiristas. O livro é a reelaboração de um documento anterior, que Vogler havia

escrito quando era roteirista dos estúdios Disney, em Hollywood. Vogler viu no monomito e nos modelos dos personagens arquetípicos um caminho para ajudar o estúdio a produzir filmes mais atraentes, já que a Disney havia passado por alguns fracassos de bilheteria na década de 1980. Além disso, havia o inquestionável sucesso da série Guerra nas estrelas, de George Lucas, um “discípulo” declarado de Campbell.

Como é possível notar, a persistência de certas imagens, em seus padrões e formas recorrentes, tem sido objeto de estudo de diversos segmentos teóricos. Numa vertente mais antropológica e atento aos conteúdos simbólicos como resultantes de expressões da cultura, o historiador alemão Aby Warburg (1866-1929) também se dedicou ao estudo dessas imagens que, a despeito do tempo e espaço, perduram. Ao pesquisar a presença de elementos da cultura da Antiguidade Clássica no Renascimento, Warburg elaborou o conceito de nachleben, algo de difícil tradução, cujo sentido aproximado pode ser compreendido como vida póstuma, pós-vida ou sobrevivência. Há certas imagens, formas ou esquemas, sejam eles concretos ou imaginários, que são imorredouros ou, se de fato morrem, ressurgem do passado, em seu aspecto fantasmático, para assombrar o presente. Muito adequadamente, o título da obra brasileira, organizada por Leopoldo Waizbort (2015), que compila alguns textos de Aby Warburg, é Histórias de fantasmas para gente grande.

Para Warburg, essas imagens sobreviventes não são apenas representações visuais, mas “sintomas”, uma expressão visível de uma memória social. Nesse sentido, a visão de Warburg parece tangenciar as concepções de Jung quanto à existência de uma experiência imagética coletiva. Entretanto, na psicologia junguiana as imagens arquetípicas são dimensões apriorísticas e instintivas da psique da espécie humana presentes no inconsciente coletivo, já em Warburg é a cultura que fornece os mapas para se desbravar os longos itinerários das imagens que sobrevivem na memória social e coletiva.