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CAPÍTULO 2 – POR UM CONCEITO DE CLICHÊ

2.2 De novo e de novo

2.2.1 Estereótipos e clichês

Nas primeiras décadas do século XX, o estudo das ideias dominantes, esquemas mentais e fórmulas cristalizadas na sociedade se tornaram de interesse das Ciências Sociais, sendo “estereótipo” o termo adotado para nomear esse fenômeno. Amossy e Pierrot (2010, p. 31) informam que o publicitário norte-americano Walter Lippman (1889 – 1974) foi o primeiro a utilizar a noção de estereótipo para designar as imagens mentais (representações cristalizadas e esquemas culturais preexistentes) responsáveis por mediar a relação do indivíduo com o mundo. O desenvolvimento desse argumento está na obra Opinião Pública, lançada em 1922. Lippman (2008, p. 91) diz que por causa dos estereótipos imaginamos a maior parte das coisas antes de as experimentarmos, e essas “preconcepções governam profundamente nossas percepções”.

56 Texto original: “Words tarnished, by passing thro' the mouths of the vulgar, are laid aside as inelegant, and

obsolete. So thoughts, when become too common, should lose their currency; and we should send new metal to the mint, that is, new meaning to the press” (YOUNG, 1918, p. 8).

Para Lippman (2008, p.90-91), recorremos aos estereótipos porque seria exaustivo e provavelmente impossível examinar todas as coisas de uma maneira nova e em detalhes, sem vinculá-las a generalizações. Quando observamos um traço que marca um tipo muito conhecido, completamos esse traço com os estereótipos que carregamos em nossas mentes. Assim, temos uma série de imagens sobre como são padeiros, mecânicos, professores, brasileiros, portugueses, mulheres, negros, homossexuais e diversas outras imagens que compõem nosso acervo de generalizações. “Essas imagens de nossa mente são fictícias, não porque são mentirosas, mas sim porque expressam um imaginário social”57 (Amossy e Pierrot,

2010, p.32 – tradução nossa).

Amossy e Pierrot observam que o termo estereótipo foi também apropriado pela Psicologia Social, que ressaltou o aspecto redutor e nocivo dos estereótipos e sua tendência a simplificar e recortar o real, o que levaria a uma visão esquemática, deformada e preconceituosa do outro. Esse sentido pejorativo ligado ao termo prevalece até os dias atuais. Para Amossy e Pierrot, contudo, é um conceito ambivalente.

Em uso corrente, [...] o termo estereótipo continua geralmente designando uma imagem coletiva cristalizada, considerada a partir de um ângulo pejorativo: o velho judeu avaro, a menina pura e inocente, o cientista distraído. Com frequência é assimilado ao clichê, quando se insiste em seu caráter trivial, seu caráter automático, redutor. O uso vulgar coexiste com o uso erudito, que vai além da questão da falta de originalidade para levantar, em toda sua profundidade, a relação entre as mediações sociais e a comunicação (AMOSSY; PIERROT,2010 p. 34 – tradução nossa). 58

As autoras chamam a atenção para a mediação que os estereótipos exercem no processo de comunicação e interação social. Mediações são aqui compreendidas como “as variáveis que articulam a comunicação entre público e mídia, favorecendo e condicionando a produção de sentido” (LEVY, 2006, p. 19). Alinhado aos estudos culturais de recepção latino-americanos,

57 Texto de referência: “Estas imágenes de nuestra mente son ficticias, no porque sean mentirosas, sino porque

expresan um imaginario social” (AMOSSY; PIERROT, 2010, p.32).

58 Texto de referência: “En el uso corriente, [...] el término estereotipo continua generalmente designado una

imagem colectiva cristalizada, considerada desde un ángulo peyorativo: el viejo judio avaro, la niña pura e inocente, el científico distraído. Con frecuencia se lo asimila al cliché, cuando se insiste em su carácter trivial, su carácter automático, reductor. El uso vulgar coexiste con el uso erudito que va más allá de la cuestión de la falta de originalidad, para plantear en toda su profundidad la de las mediaciones sociales y la comunicación” (AMOSSY; PIERROT, 2010, p. 34).

Orozco Gomes (1997) compreende que múltiplas mediações59 interveem no consumo midiático, sendo que as mediações individuais são os esquemas mentais ou repertórios pessoais através dos quais percebemos o mundo e lhe damos sentido.

Justamente por considerar que as imagens nos ajudam a compreender e categorizar o real, Lippman (2008) se posiciona criticamente sobre a influência que a mídia exerce, como produtora de imagens, em nossa mente, nossos afetos e humores. As mídias audiovisuais e o cinema, em particular, invariavelmente promovem generalizações em decorrência do modelo massivo de distribuição de suas imagens. Para fazer justiça à história do cinema é preciso falar em cinemas, no plural, tamanha a variedade de escolas, de estilos e procedência geográfica e cultural. Com isso não se ignora o fato de que há um cinema hegemônico, que movimenta uma indústria bilionária (a norte-americana), e que oferece modelos identitários e culturais estereotipados. Se admitirmos que as imagens audiovisuais materializam as imagens mentais, o que teríamos na tela seria um espelhamento das visões provenientes do imaginário social. Contudo, é de se considerar que as imagens mentais são também alimentadas pelas imagens audiovisuais. Há, portanto, uma dupla implicação, uma relação de reciprocidade entre o imaginário social e a mídia no engendramento de estereótipos.

Assim como a palavra clichê, estereótipo vem de estereotipia, que é também um mecanismo de impressão tipográfico. Não obstante serem usados como sinônimos, o termo estereótipo, empregado nos estudos sociais, e o termo clichê, nos estudos da linguagem, envolvem abordagens distintas. Por exemplo, no âmbito da narrativa fílmica parece mais apropriado o uso do termo estereótipo, na acepção de Lippman, para se referir à premissa60 do roteiro, isto é, o ponto de vista da obra, seus pressupostos, a “moral da história”. Assim, os estereótipos podem estar na premissa, que é a ideia motriz que catalisa todos os elementos

59 O pesquisador mexicano Orozco Gomes (1997) observa que múltiplas mediações interpelam os sujeitos no

processo de recepção de produtos midiáticos, sendo cinco delas facilmente identificáveis: as mediações individuais, conforme expusemos no texto; as mediações institucionais, tais como a família, a escola, a igreja dentre outras instituições que produzem cultura; as mediações massmediáticas, uma vez que a própria tecnologia desenvolve uma linguagem própria que influencia a percepção do sujeito; mediações situacionais, isto é, o contexto de recepção do produto midiático pode condicionar o nível de atenção e mesmo de produção de sentido e mediações de referência, que dizem respeito ao lugar social de pertencimento do sujeito receptor, ou seja, sua idade, classe social, etnia, gênero, dentre outras referências.

60 Na obra The art of dramatic writing, o dramaturgo húngaro Lajos Egri (1888-1968) define premissa como uma

proposição declarada ou assumida e que conduz a uma conclusão. Egri (1960, p.2) adverte que outras palavras são usadas com o mesmo fim, tais como: tema, tese, ideia raiz, ideia central, objetivo, força motriz, propósito, emoção básica. Sua escolha é pela palavra premissa, pois considera que ela contém todos os elementos que os outros termos tentam exprimir.

narrativos do filme. Nota-se que não estamos falando de imagens fílmicas, que está no plano da materialidade, mas de uma outra esfera da concepção do filme: o discurso.

Claro está que os pressupostos dos realizadores da obra vão se evidenciar na dimensão imagética do filme. Revelam-se nas escolhas dos elementos narrativos: dos diálogos à atuação dos atores, do cenário à iluminação, do ritmo da música ao ritmo da câmera, enfim, no manejo da linguagem audiovisual. Todos esses elementos fornecem pistas sobre o discurso do filme e os estereótipos nele contidos.

Ainda que eventualmente os estereótipos presentes no corpus desta pesquisa possam ser discutidos, o ponto de interesse está nos clichês. Amossy e Pierrot fazem uma importante distinção entre clichês e estereótipos.

O clichê emerge da superfície do discurso sob a forma de uma expressão imediatamente reconhecível: “uma doçura angelical”, “uma palidez sepulcral”, “branco como um papel”. O estereótipo, pelo contrário, nem sempre se deixa detectar na superfície do texto. A imagem familiar da mulher doce, frágil e pura, necessariamente não se constrói com fórmulas cristalizadas, pois admite uma multiplicidade de variantes (AMOSSY; PIERROT, 2010, p. 78 – tradução nossa).61

Trazendo para a esfera do cinema, estamos considerando que os clichês se mostram na materialidade das imagens fílmicas, em sua mise en scène ou, como dissemos no capítulo anterior, na textura das imagens. Diferentemente dos estereótipos que remetem ao discurso do filme, os clichês são encontrados na dimensão micronarrativa: em seus planos, cenas ou sequências. Esse campo formal engendra imagens-clichê presentes na gestualidade dos atores, na configuração das cenas e no uso de esquemas narrativos plasmados em imagens fílmicas. A afirmação de que o clichê é a camada superficial de um estereótipo profundo, como sustentam Amossy e Pierrot (2010), paira como uma provocação neste momento. O conjunto de imagens fílmicas selecionadas nesta pesquisa para discussão e análise, a seu tempo, e no amadurecimento do processo investigativo poderá confirmar ou negar as questões preliminarmente levantadas. Assim como admitimos a possibilidade de elaboração de novas perguntas.

61 Texto de referência: “El cliché, en efecto, emerge a la superficie del discurso bajo la forma de una expresión

hecha inmediatamente reconocible: ‘una dulzura angelical’, ‘una palidez sepulcral’, ‘blanco como un papel’. El estereotipo, por el contrario, no siempre se deja detectar en la superfície del texto. La imagen familiar de la mujer dulce, frágil y pura no necesariamente se construye con fórmulas cristalizadas, y además admite una multiplicidad de variantes” (AMOSSY; PIERROT, 2010, p. 78).