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CAPÍTULO 2 – POR UM CONCEITO DE CLICHÊ

2.4 Percepção visual e a gaveta dos esquemas mentais

2.4.3 Fascínio ou atratividade

Mas o que torna uma imagem ou forma tão propícia à imitação ou derivações? Essa questão nos leva a crer que algumas imagens parecem exercer um fascínio, uma forte atração, e por isso são retidas na mente, mas também são de alguma maneira simples o suficiente para serem imitadas, copiadas, replicadas. Vimos que os clichês participam de uma economia de trocas simbólicas, mas que podem também ser vestígios de imagens arquetípicas. Restringindo o escopo da análise à forma da imagem e sua configuração particular, a imagem-clichê possuiria atributos que lhes são próprios? Na direção de uma possível resposta, consideramos que algumas imagens, formas ou esquemas tornam-se clichês por possuírem certos atributos, quais sejam, a pregnância e a replicabilidade.

Sobre a persistência de algumas imagens, isto é, sua pregnância, encontro em Leonor Areal (2011) a seguinte perspectiva de análise:

Um clichê será pois um tropo [figura de linguagem ou figura de estilo] tornado imagem. E enquanto imagem, afirma-se como um todo uno. Imprime-se na retina das nossas mentes como um dado instantâneo, sem dar espaço nem tempo a uma reflexão. Seduz e penetra pela sua simplicidade. Tem uma perfeição que nos faz reféns da sua forma, com a mesma força das formas elementares explicadas pela teoria da Gestalt. Também no cinema e na vida, a força do clichê está nessa psicologia da forma simples, numa gestalt do pensamento. A forma impõe-se diante dos nossos olhos e do nosso cérebro como modo de percepção e compreensão (AREAL, 2011, p. 8).

Para a teoria da Gestalt69, a pregnância é um princípio que orienta nossa percepção na

direção da clareza, da unidade e do equilíbrio. Gomes Filho (2000) explica que quanto melhor for a organização visual da forma do objeto, em termos de facilidade de compreensão e rapidez de leitura ou interpretação, maior será o seu grau de pregnância (GOMES FILHO, 2000, p. 37).

O termo pregnância também incorpora o sentido de algo que nos causa forte impressão, e nessa direção vamos encontrar a concepção do instante pregnante, formulada ainda no século XVIII, pelo crítico e dramaturgo alemão Gotthold E. Lessing, ao analisar o processo de criação artístico. Um pintor, por exemplo, terá de ser capaz de selecionar o instante mais expressivo de um acontecimento para representá-lo na tela. Esse único instante, para Lessing, deve tornar compreensível o todo do acontecimento, o que já se passou e o que está por vir. Por outro lado, e ironicamente, tal instante deve ser de algum modo incompleto, pois deve deixar brecha para a imaginação do público.

Se o artista só pode utilizar da natureza sempre em transformação nunca mais do que um único momento e o pintor, em particular, esse único momento também apenas a partir de um único ponto de vista; se ainda as suas obras são feitas não apenas para serem meramente olhadas, mas, antes, consideradas, serem longamente e repetidas vezes consideradas: então é certo que aquele momento único e único ponto de vista desse único momento não podem ser escolhidos de modo fecundo demais. Mas só é fecundo o que deixa um jogo livre para a imaginação. Quanto mais nós olhamos, tanto mais devemos poder pensar além (LESSING, 2011, p. 101).

Segundo Aumont (2005), é difícil definir um instante que contivesse a essência de um acontecimento. Representar “um acontecimento por um 'instante' só é possível buscando apoio,

69 A teoria da Gestalt, que subsidia vertentes da psicologia e das artes visuais, busca explicar o processo de

percepção como resultante de “um dinamismo auto-regulador que, à procura de sua própria estabilidade, tende a organizar as formas em uma totalidade coerente e unificada” (GOMES FILHO, 2000, p. 19). Nesse aspecto, o fenômeno da percepção visual é espontâneo e involuntário, pois independe de qualquer aprendizado.

bem mais do que pensava Lessing, nas codificações semânticas dos gestos, das posturas, de toda a encenação” (AUMONT, 2005, p. 232). Da ponderação de Aumont, inferimos que o instante pregnante é um elemento codificado no todo da encenação, seja no âmbito da imagem pictórica, quando da imagem cinematográfica. Para além da intencionalidade da cena ou até mesmo da interpretação peculiar do ator, há gestos que se consagraram como simbólicos70, em

razão da sua pregnância. Esses gestos são também indiciais, porque remetem ao todo do filme, de tal modo que mesmo retirados do contexto da obra são facilmente reconhecidas pelo público como pertencentes ao filme. Como exemplo podemos citar o gesto de Scarlet O' Hara, interpretada por Vivien Leigh, no filme E o vento Levou (Victor Fleming, 1939) ao prometer, diante das adversidades que a acometiam naquele momento, que jamais passaria fome novamente. A personagem se levanta do chão, em meio a uma plantação arrasada, e com o punho cerrado profere seu juramento de resiliência.

Temos buscado aproximações do conceito de clichê em variadas fontes e áreas do conhecimento, o que nos leva a considerar também as contribuições do biólogo evolucionista Richard Dawkins. Na obra O gene egoísta, Dawkins discorre sobre a dinâmica dos genes e seu caráter replicador. Os replicadores têm por objetivo garantir a sobrevivência do material ou da informação que armazenam. No caso dos genes, o objetivo é preservar o DNA. Já em 1976, quando o livro foi publicado, Dawkins destinou um capítulo para tratar do que denominou “memes”, para ele, os novos replicadores. A palavra “meme” seria uma adaptação do termo grego mimese.

Exemplos de memes são melodias, ideias, slogans, modas do vestuário, maneiras de fazer potes ou de construir arcos. Da mesma forma como os genes se propagam no arquivo genético pulando de corpo para corpo através dos espermatozoides ou dos óvulos, da mesma maneira os memes propagam-se no arquivo de memes pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. Se um cientista ouve ou lê uma ideia boa ele a transmite a seus colegas e alunos. Ele a menciona em seus artigos e conferências. Se a ideia pegar, pode-se dizer que ela se propaga, espalhando-se de cérebro a cérebro (DAWKINS, 1993, p. 218 – tradução nossa)71.

70 Referimos aqui ao conceito de símbolo na acepção de Peirce.

71 Texto de referência: “Ejemplos de memes son: tonadas o sones, ideas, consignas, modas en cuanto a vestimenta,

formas de fabricar vasijas o de construir arcos. Al igual que los genes se propagan en un acervo génico al saltar de un cuerpo a otro mediante los espermatozoides o los óvulos, así los memes se propagan en el acervo de memes al saltar de un cerebro a otro mediante un proceso que, considerado en su sentido más amplio, puede llamarse de imitación. Si un científico escucha o lee una buena idea, la transmite a sus colegas y estudiantes. La menciona en sus artículos y ponencias. Si la idea se hace popular, puede decirse que se ha propagado, esparciéndose de cerebro en cerebro” (DAWKINS, 1993, p. 218).

Os memes são agentes que trabalham para a sua própria sobrevivência, por isso, assim como os genes, seriam egoístas. Tomando como referência que as qualidades dos replicadores são a longevidade, a fecundidade e a fidelidade da cópia, Dawkins observa que, diferentemente dos genes, os memes não são replicadores de alta fidelidade, no sentido de produzirem cópias fidedignas, pois estão submetidos a mutações e fusões constantes, próprias do ambiente cultural. Os pressupostos de Dawkins, apesar de estarem amparados na biologia evolucionista, é análogo a constatações que as ciências humanas e sociais já haviam chegado sobre estereótipos e imaginário. Também sem muito esforço, podemos encontrar pontos de contato com as formulações junguianas sobre os arquétipos. Como visto anteriormente, Jung recorreu a argumentos evolucionistas para explicar o desenvolvimento da psique e a herança de imagens ancestrais, além de sugerir uma espécie de memória da raça humana.

Com a presença da internet e as novas formas de sociabilidade nas redes sociais, podemos atestar que os memes encontram um campo fértil para sua propagação. Sobre este fenômeno, alguns estudiosos, como Raquel Recuero (2006) e Susan Blackmore (1999), têm dedicado especial atenção.

Blackmore (1999) dá prosseguimento às ideias de Dawkins e expõe que a evolução do cérebro humano, da linguagem, hábitos e tecnologias são resultantes do processo de imitação e variação. Desse modo, uma ideia passa de um cérebro para um outro, que a modifica, em maior ou menor grau, e a replica. Com o tempo, o que se tem não é uma cópia um pouco diferente, mas melhor. Esse princípio de que a cópia aprimora o modelo foi explorado algumas páginas atrás, segundo a abordagem de Gombrich (1986) do “esquema e da correção”.

E aqui quero destacar um conjunto de imagens que parecem confirmar o caráter replicável dos clichês e seu uso, por vezes, involuntário. No filme Édipo Re (1967), do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, um pastor encontra o bebê Édipo, que havia sido abandonado, e o leva para o rei de Corinto, que o adota como filho. A ação do pastor é expressa num gesto característico de levantar o bebê em direção aos céus.

Figuras 44 e 45 – Édipo Re. 1967. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini

Na animação O Rei Leão (1994), produzida pelos estúdios Disney, encontramos cena parecida no momento em que Simba é apresentado à toda a tribo.

Figuras 46 e 47 – O Rei Leão, 1994. Direção: Roger Allens e Rob Minkoff. Roteiro: Irene Mecchi; Jonathan Robert e Linda Woolverton

O filme e a animação são produções diferentes sob vários aspectos, mas utilizaram o mesmo esquema narrativo para apresentar o novo herdeiro à comunidade. A narrativa das duas tramas pode ser considerada mítica. O mito é uma forma de explicar o mundo e o homem, por meio de uma linguagem imagética simbólica, é uma “criatura criada pela fabulação do homem” (ALVARENGA, 2010, p. 41) e emerge em todas as culturas. Os estudiosos divergem quanto às razões para a repetição e persistência dos temas míticos. Para alguns, a coincidência de temáticas em narrativas provenientes de culturas e épocas diferentes seria uma comprovação da existência da dimensão inconsciente e primordial dos arquétipos, apregoados por Jung. Outros, observa Alvarenga (2010), como os filósofos pré-socráticos, consideravam os mitos um relato dos grandes feitos de pessoas célebres ou alegorias de fenômenos da natureza qualificados como manifestações divinas. Para Alvarenga (2010), tal interpretação é muito redutora, pois desconsidera a dimensão simbólica do mito.

O filme de Pasolini é baseado na tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles (496-406 a.C.). Conta a trajetória de um herdeiro que ascende ao trono, mas vai à ruína por causa de um destino caprichoso, uma herança maldita e a condição inelutável de ignorância humana. Em O Rei Leão, Simba é apresentado a todos do reino que ele herdará e, justamente por causa do trono, será vítima da inveja e impedido, mesmo que provisoriamente, de assumir seu lugar. O enredo afirma que tudo é cíclico, por isso uma cena similar a das Figuras 46 e 47 fechará o filme com o sucessor de Simba. Podemos chamar essa imagem-clichê de “Eis o herdeiro” e encontrar ressonâncias desse gesto em narrativas míticas ainda mais antigas.

Mircea Eliade (1992, p.71) nos conta que há um costume antigo da mãe colocar o recém- nascido no solo e o pai erguer a criança em sinal de reconhecimento. Eliade (1992, p.89) explica que os ritos de passagem desempenham um papel importante na vida do homem religioso, porque sinalizam uma mudança radical de regime ontológico e de estatuto social. Sobre o rito de passagem do nascimento, ele diz:

Quando acaba de nascer, a criança só dispõe de uma existência física; não é ainda reconhecida pela família nem recebida pela comunidade. São os ritos realizados imediatamente após o parto que conferem ao recém-nascido o estatuto de ‘vivo’ propriamente dito; é somente graças a esses ritos que ele se integra à comunidade dos vivos (ELIADE, 1992, p.89).

Ao que tudo indica, este é um gesto ancestral, arquetípico, e que em razão do aspecto mítico das duas narrativas, pode ter sido intencionalmente utilizado para significar o rito de passagem do nascimento. Diferente da peça de Sófocles, que nos apresenta Édipo já adulto, o filme de Pasolini faz uma digressão e representa cronologicamente a trama desde o nascimento de Édipo. A imagem “Eis o herdeiro” não está, portanto, sugerida no texto grego, é possivelmente uma imagem-clichê que Pasolini, também responsável pelo roteiro, buscou no seu acervo mental de imagens, ou involuntariamente foi interpelado por ela, por efeito da sua pregnância.

No conjunto dos fotogramas selecionados, temos um esquema similar nos dois filmes: um plano aberto (Fig. 44 e 46) e um plano mais aproximado com ângulo em contra-plongèe (Fig. 45 e 47). Na gramática cinematográfica, quando a câmera é posicionada abaixo do nível dos olhos, contra-plongèe, o objeto filmado engrandece na tela, causando uma impressão de superioridade em relação ao observador. Há que se considerar que o enquadramento é um ponto de vista óptico, captado pela câmera, mas no nível da conotação das imagens, das tramas simbólicas ou codificações semânticas da linguagem audiovisual, enquadrar é também delimitar o campo de visão e o modo de ver.

Ainda que a repetição esteja na origem do próprio termo “clichê”, este não é a mera repetição. Imagem-clichê está sendo aqui compreendida como uma imagem replicada em seus aspectos formais, podendo ser utilizada em contextos diversos, conduzindo a uma produção de sentido com pouca ou nenhuma variação. Portanto, são imagens que carregam em si um conjunto pré-definido e limitado de significados. Elas são também imagens funcionais no processo de comunicação, pois são reconhecíveis e familiares, o que garante a significação convergente e compartilhada, condição necessária ao entendimento e à comunicação. Se o uso intencional de imagens-clichê pode se dar por razões narrativas de ordem funcional, a pregnância de algumas imagens talvez justifique o seu uso involuntário. Por serem tão funcionais e versáteis, as imagens-clichê parecem, de fato, servir a quaisquer usos, e é justamente seu excesso de uso (overuse) que compromete sua reputação e seu valor estético.

Isso nos indica que certas imagens são adjetivadas como clichês por razões extrínsecas à sua forma e dependentes de um sistema valorativo. O caráter dinâmico das imagens-clichê, por serem refugadas ou desqualificadas esteticamente por alguns ao mesmo tempo em que reiteradamente usadas por outros, será melhor compreendido na discussão que empreenderemos sobre clichê e valor estético no próximo capítulo.