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CAPÍTULO 1 FABULAÇÃO DE IMAGENS FÍLMICAS

1.4 Enquadramento metodológico para olhar as imagens fílmicas

1.4.1 O clichê na textura das imagens

Ao escrever sobre a história do estilo no cinema, Bordwell (2013) esclarece não se tratar de estilísticas pessoais, ainda que seja possível falar sobre o estilo de alguns cineastas, mas refere-se ao conjunto de usos no domínio da técnica e da linguagem em certo contexto. Estilo é compreendido como:

[...] um uso sistemático e significativo de técnicas da mídia cinema em um filme. Essas técnicas são classificadas em domínios amplos: mise-en-scène (encenação, iluminação, representação e ambientação), enquadramento, foco, controle de valores cromáticos e outros aspectos da cinematografia, da edição e do som. O estilo, minimamente, é a textura das imagens e dos sons do filme, o resultado de escolhas feitas pelo(s) cineasta(s) em circunstâncias históricas específicas (BORDWELL, 2013, p.17 – grifo nosso).

Alinhar as imagens ao seu ambiente histórico de produção nos fornece parâmetros para olhá-las. Essa constatação nos auxiliou na delimitação de um primeiro corpus desta pesquisa, pois nos fez retroceder aos gestos e codificações do cinema silencioso. Ali vamos encontrar as primeiras fabulações, invenções e urdiduras das imagens fílmicas. Do ponto de vista metodológico, podemos buscar nos filmes, dentro deste contexto estilístico selecionado, os planos e as cenas que melhor revelem as imagens que, nesse exercício diacrônico, hoje enxergamos como clichês.

Se num primeiro momento esse percurso metodológico pareceu ideal, a ausência de um arcabouço conceitual sobre os clichês, que pudesse nos fornecer categorias de análise, tornou inconsistente a investigação. Conforme sublinha Annick Fiolet (2000)43, o clichê cobre tudo o

que produz a impressão de já visto. Convenhamos que é um espectro muito difuso e vasto de possibilidades, algo pouco adequado à uma investigação científica que se pretenda criteriosa. Nos pareceu evidente, assim como argumenta Fiolet (2000), que se quiséssemos tomar o clichê como uma categoria relevante para a teoria do cinema, seria preciso saber identificar suas formas de manifestação no próprio cinema. Um caminho metodológico possível: “eliminar as

43 A revista francesa L’art du cinéma lançou em 2000 uma edição com artigos dedicados exclusivamente ao tema

formas de repetição chamadas ‘clichês’ de forma abusiva, para chegar a uma definição padrão do clichê cinematográfico” (FIOLET, 2000, p.6).

Fomos percebendo que parte importante do esforço desta pesquisa era mesmo o de buscar “um padrão do clichê cinematográfico”, em razão do uso indiscriminado da palavra clichê para nomear a ocorrência repetitiva de quase tudo no cinema. A opção pelo termo imagem-clichê visa justamente distinguir as imagens que, segundo alguns critérios, poderiam ser adjetivadas de clichê. Nesse sentido, reduzimos o escopo da pesquisa para delimitarmos um alvo mais preciso: a textura das imagens.

Identificar as possíveis imagens-clichê sugeridas ou intencionadas no roteiro foi nosso primeiro movimento, mas estudar as imagens do cinema silencioso registradas em texto se mostrou inviável, pois conforme expusemos anteriormente, não há registros acessíveis. Ou porque sucumbiram ao descarte ou porque a escrita cinematográfica foi uma atividade desenvolvida aos poucos, de modo inconstante e impreciso, até ser realmente incorporada nos sistemas de produção. Desse modo, recorrer aos filmes mostrou ser o recurso metodológico possível, mas ao fazer isso não estaríamos relegando a escrita cinematográfica a segundo plano? É então que compreender o processo de fabulação de imagens fílmicas nos auxilia a pensar o roteiro como algo que extrapola o texto e deixa marcas na “textura das imagens”.

É preciso deixar claro que, no cinema narrativo, imagem e storytelling são indissociáveis. Todos os elementos visuais dentro do quadro estão, em maior ou menor grau, implicados na narrativa. Podemos olhar para duas dimensões narrativas: uma macro e outra micro. No nível macro está o arco dramático do enredo, abrangendo o seu desenvolvimento desde o começo ao fim do filme. O desenrolar dos acontecimentos, encadeados por relações causais que mantêm entre si, confere um sentido de unidade à trama, o que nos possibilita um olhar geral sobre o filme, que se tomado como referência pode ser decupado até a menor unidade narrativa: o plano. Pressupondo a existência de duas camadas de narratividade no cinema, concordamos com Gaudreault e Jost (2009) quando sugerem que o filme seria a meganarrativa e o plano a micronarrativa.

Nosso interesse reside em destacar e analisar os esquemas presentes na micronarrativa, o que abrange os planos, as cenas ou seu conjunto em sequência. É nessa dimensão que buscaremos identificar como os clichês se mostram e articulam a narrativa.

Conforme a esfera na qual atuam, os esquemas narrativos demonstram níveis diferentes de articulação dramatúrgica. Vamos encontrar fórmulas que são usadas recorrentemente no cinema em sua dimensão macronarrativa (ou meganarrativa), de modo a organizar os acontecimentos e conectá-los para que façam sentido. Esse esquema, que está no nível da fábula

ou história, é um plot. O roteirista Doc Comparato (2009, p.130-131) fornece alguns exemplos:

plot de amor - um casal que se ama é separado por alguma razão, volta a se encontrar e tudo

acaba bem; plot Cinderela - é a metamorfose de uma personagem humilde em personagem ilustre, segundo os padrões sociais vigentes; plot triângulo amoroso – um novo membro interfere na relação do casal; plot do regresso - filho pródigo volta à casa paterna, marido volta da guerra; plot vingança - um crime foi cometido e o herói faz justiça pelas próprias mãos ou vai em busca da verdade; plot sacrifício – um herói que se sacrifica por alguém ou por alguma coisa.

Na dimensão micronarrativa, priorizada neste trabalho, também encontraremos esquemas narrativos, contudo, estão plasmados em imagens fílmicas e cristalizados na composição das cenas e planos do filme, daí nossa opção pelo estudo iconográfico da mise en

scène na etapa de seleção das imagens. Apesar de termos recorrido ao cinema narrativo em

seus primórdios, não nos fixaremos apenas nesse período, porque à medida que novas questões surgirem acerca do “padrão do clichê no cinema”, outras obras fílmicas poderão ser buscadas para iluminar as reflexões. Por exemplo, notamos ser necessário fazer distinções entre clichês e estereótipos, assim como clichês e convenções de gênero. Nesse particular, optaremos por um

corpus de filmes do gênero western, acusado de esgotamento em razão da falta de renovação

de seus esquemas narrativos.

Se a hipótese de que há um padrão de clichê no cinema nos conduz a um percurso exploratório e conceitual, os desdobramentos da pesquisa visam, em primeira instância, responder ao problema que surge no âmbito da escrita cinematográfica, qual seja, como as imagens-clichê participam do processo de fabulação de imagens fílmicas.

Entendemos que identificar como os clichês se mostram na textura das imagens é uma forma de problematizar a recomendação, explícita ou tácita, de que se deve evitar os clichês na escrita cinematográfica. Esta é uma advertência difusa, presente em manuais de roteiro, nas falas de roteiristas e diretores, de críticos e teóricos do cinema e em afirmações tão despretensiosas quanto estigmatizantes: Isso é clichê!

O consultor de roteiros, Robert McKee declara guerra aos clichês em um dos capítulos de seu livro Story (2010). Ele observa que os dias atuais são os mais difíceis para um escritor, tamanha a saturação de histórias vindas do cinema, TV e das mais diversas mídias disponíveis.

O clichê está na raiz da insatisfação do público, e como uma praga espalhada pela ignorância, ele infecta agora toda a mídia da estória. Muito frequentemente, fechamos os romances e saímos dos cinemas chateados por causa de um final que era óbvio do princípio, desapontado porque vimos essas cenas e personagens clichês inúmeras vezes antes. A causa dessa epidemia global é clara e simples; a fonte de todo clichê

pode ser ligada a um único problema: o roteirista não conhece o mundo de sua estória (MCKEE, 2010, p.75).

Seguindo o raciocínio de McKee, quando o roteirista não conhece “o mundo da sua estória” ele vai buscar referências no que já viu, no vasto repertório audiovisual compartilhado e acumulado em nossas mentes. O roteirista francês Jean-Claude Carrière corrobora essa ideia dizendo que o clichê é aquilo que é oposto ao original. “O primeiro homem a fazer a imagem tremer a fim de indicar uma mudança na percepção foi um verdadeiro inovador. O segundo copiou o primeiro, talvez aperfeiçoando o processo. Na terceira vez, o efeito já era clichê”. (CARRIÈRE, 2015, p. 19). Glauber Rocha (2006) acrescenta um aspecto ideológico aos clichês, ao considerá-los uma forma de alienação. “Partindo do pressuposto de que o homem de classe média quando entra no cinema procura uma fuga e não espelho da realidade, os produtores [de Hollywood] capricham nos clichês de entorpecimento e retiram o público do social para o alienante fantástico” (ROCHA, 2006, p. 68).

Sabemos que se deve evitá-los, que eles atestam falta de originalidade e que eles podem ser alienantes, mas afinal, o que são clichês? Como se mostram nas imagens fílmicas? Discorreremos sobre essas questões no próximo capítulo, atentos à possibilidade de dar um passo adiante, que é delimitar a imagem-clichê como uma categoria de análise viável a um enquadramento metodológico nos estudos fílmicos.