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CAPÍTULO 4 – IMAGENS-CLICHÊ E CONVENÇÕES DE GÊNERO:

4.2 O cinema rumo ao Oeste

4.2.3 Em busca de novas fronteiras

O século XXI tem revisitado o western algumas vezes, mas não encontramos ainda estudos que avaliem em profundidade a produção desse gênero a partir dos anos 2000. Os editores da BBC Culture convidaram 177 críticos de 36 países para a escolha dos 100 maiores filmes deste século. Verificando a lista, uma das primeiras dificuldades seria categorizar os filmes por gênero e, mais ainda, identificar aqueles que poderiam ser enquadrados, com segurança, como western. Brokeback Mountain (O Segredo de brokeback mountain, 2005) está entre os 100 filmes do século XXI da referida lista. Quando do seu lançamento, o filme dirigido por Ang Lee, foi chamado de western gay. A versão cinematográfica é uma adaptação do conto de Annie Proulx, e narra a história, ambientada no século XX, de um relacionamento proibido e secreto entre dois caubóis. O filme foi muito premiado, tendo levado o Oscar de melhor direção, melhor roteiro adaptado para Larry McMurtry e Diana Ossana e melhor trilha musical

para Gustavo Santaolalla. Concorreu ainda em outras cinco categorias, incluindo a de melhor filme.

O crítico Peter Bradshaw (2006) comenta que as convenções da vida de caubói tornam invisíveis a identidade homossexual, por isso o filme inova corajosamente ao remover o manto da invisibilidade e perguntar como os homossexuais podem existir sem viver uma mentira. No plano da narrativa, os caubóis não assumem publicamente o romance, de modo que o casamento e a família que cada um constituiu encobre a vida clandestina que os dois mantêm por anos. Os encontros furtivos em meio a paisagens idílicas mostram que eles se sentem integrados ao ambiente natural e em harmonia com suas próprias naturezas, conforme observa Bradshaw.

De fato, a vida de caubói convencionada nos filmes ignora a homossexualidade. A pesquisadora Jane Tompkins (1992) toma o exemplo do filme Gunfight on O.K. Corral (Sem

lei e sem alma, 1957), de John Sturges, para destacar que, de muitas maneiras, a mulher existe

no western para atender às necessidades do homem. No referido filme, a personagem Laura Dembo é uma jogadora ousada e inteligente, de quem, a princípio, o xerife Wyatt Earp quer se livrar. Com o tempo, ele passa a cortejá-la, mas o romance não progride porque, segundo Tompkins (1992, p. 40), quem Wyatt Earp realmente ama é Doc Holliday, um médico, também jogador e encrenqueiro.

Assim, a personagem Laura Dembo é uma extensão de Wyatt Earp (quando ela começa a usar blusas de gola alta de mangas compridas, ela fica cada vez mais parecida com ele [...]; mas, ao mesmo tempo, como jogadora de cartas e bagunceira, ela é uma manto para Doc Holliday, um álibi que o filme fornece a Wyatt Earp, para que seu amor por Doc não o marque como ‘queer’. De qualquer forma, ela é a sombra de um homem mais importante (TOMPKINS, 1992, p.40 – tradução nossa). 140

Sem usar os subterfúgios narrativos do filme de Sturges, Brokeback Mountain joga luz sobre a sexualidade, a subjetividade, os afetos e os desejos, fronteiras ainda por serem desbravadas pelo western, evidentemente, não sem o risco de abalar as convenções do gênero. Apesar de protagonizado por caubóis, não há consenso sobre o pertencimento de Brokeback

Mountain ao gênero western, especialmente se considerarmos o recorte temporal da narrativa

que tem sido usado para a classificação, isto é, de meados ao final do século XIX.

É dentro desse contexto histórico, por exemplo, que se desenvolve Django Unchained (Django Livre, 2012), de Quentin Tarantino, mais especificamente durante a Guerra Civil

140 Texto original: “Thus, the Laura Dembo character is na extension of Wyatt Earp (as she starts to wear high-

necked, long-sleeved blouses, she gets more and more like him [...]; yet at the same time, as gambler and troublemaker, she is a screen for Doc Holliday, na álibi the movie supplies Wyatt Earp with so that his love for Doc won’t mark him as “queer”.Either way, she’s the shadow of a more importante male” (TOMPKINS, 1992, p. 40).

Americana, que opunha os estados do norte aos estados do sul escravagistas. O filme rompe com várias convenções do western, entre as quais, ser protagonizado por um negro. Django é um escravo liberto, que com a ajuda de um caçador de recompensas alemão, busca resgatar sua esposa, que foi vendida para um violento fazendeiro do Mississipi. O filme foi premiado com o Oscar de melhor roteiro original para Quentin Tarantino e ator coadjuvante para Christoph Waltz.

A ausência de negros nas produções de western é algo muito flagrante. Tanto que a presença de um xerife negro, observa Grant (2007), é uma das piadas da comédia western

Blazing saddles (Banzé no Oeste, 1974), de Mel Brooks. São poucos os filmes com negros

interpretando algum papel de destaque, entre eles, Grant (2007) destaca The Buckaroo Bronze (O vaqueiro de bronze, 1939) e Harlem Rides the Range (1939). A produção Sergeant Rutledge (Audazes e Malditos, 1960), dirigido por John Ford, narra o julgamento de um oficial negro acusado, por engano, de estupro e assassinato. Com o movimento Blaxploitation, a partir dos anos 1970, houve um aumento na produção de western com a presença de negros na frente e atrás das câmeras. O termo Blaxploitation é a junção das palavras black (preto) e exploitation (exploração). Na prática, esse movimento significou a produção de filmes protagonizados e realizados por atores e cineastas negros. Grant (2007) destaca Buck and the Preacher (Um por

Deus, outro pelo diabo, 1972), dirigido por Sidney Poitier, sobre caçadores de recompensas

brancos que buscavam ex-escravos como mão-de-obra barata para trabalhar nas plantações do sul dos Estados Unidos, após a derrota dos confederados na Guerra Civil. Segundo Grant (2007), o filme emprega muitas convenções do gênero western sem, contudo, deixar de colocar em primeiro plano as questões raciais.

Não é incorreto concluir que a invisibilidade de homossexuais, negros e mulheres é parte das convenções do western. Tompkins (1992, p.28) pontua que o faroeste “é secular, materialista e antifeminista; foca no conflito no espaço público, é obcecado pela morte e adora o falo”. Resume a autora: “é uma narrativa da violência masculina”.141 Mesmo em produções

protagonizadas por mulheres, como em Bad Girls (Quatro mulheres e um destino, 1994), as convenções observadas por Tompkins conduzem a narrativa. O filme foi dirigido por Jonathan Kaplan, com roteiro de Ken Friedman e Yolande Turner. Protagonizado por Madeleine Stowe, Mary Stuart Masterson, Andie MacDowell e Drew Barrymore, o enredo narra a história de

141 Texto original: “[...] is secular, materialista, and antifeminist; it focus on conflict in the public space, is obsessed

quatro prostitutas perseguidas por causa de um crime. O crítico Scott Weinberg (2005) avalia que as pretensões feministas do filme soam como piada, pois o enredo repete os esquematismos narrativos dos filmes que colocam as mulheres em apuros para serem resgatadas por homens.

Voltando às produções do século XXI, The Homesman (Dívida de Honra, 2014), de Tommy Lee Jones, confere uma diferente representação do feminino no western ao trazer o ponto de vista de uma mulher forte, que vive sozinha numa pequena vila no Velho Oeste. Ela tem a missão de levar três mulheres que perderam a sanidade mental de volta para suas famílias de origem na região leste. Durante a perigosa travessia de Nebraska rumo a Iowa, ela salva a vida de um criminoso, que em retribuição vai ajudá-la a cumprir sua missão. Na análise do crítico Marcelo Hessel (2018), os dois carregam a culpa do insucesso, que é também de todos aqueles que não encontraram no Oeste a prosperidade que era prometida. O filme é uma coprodução dos Estados Unidos e França e foi indicado à Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014.

Merece destaque o remake dos irmãos Joel e Ethan Coen, True Grit (Bravura Indômita, 2010), que recebeu 10 indicações ao Oscar, entre elas: melhor filme, melhor direção e melhor roteiro adaptado. A versão de 1969 do filme, dirigido por Henry Hathway, conferiu à John Wayne o Oscar de melhor ator, único de sua carreira. O enredo narra a história de uma adolescente que pede ajuda a um oficial para encontrar o assassino de seu pai. The ballad of

Buster Scruggs, de 2018, é outra produção do gênero western dos Irmãos Coen e sobre a qual

falaremos mais adiante.

Somando-se à categoria dos westerns biográficos, que já renderam diversos títulos sobre as lendas do Velho Oeste, podemos incluir o filme The Assassination of Jesse James by Coward

Robert Ford (O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, 2007), de Andrew

Dominik. Com uma incursão no gênero terror, temos Bone Tomahawk (Rastro de Maldade, 2015), dirigido e roteirizado por S. Craig Zahler. Ainda em 2015, a história de um caçador de recompensas e seu prisioneiro conduz o enredo do filme The hateful eight (Os oito odiados, 2015), com roteiro e direção assinados por Quentin Tarantino. O filme Slow West (Oeste sem

lei, 2015), com roteiro e direção de John Maclean, venceu o Sundance Film Festival de 2015 e

levou o prêmio de melhor roteiro conferido pelo Western Writers of America. O filme mais premiado de 2015, The Revenant (O Regresso), que deu a Alejandro G. Iñárritu o Oscar de melhor diretor, é enquadrado nos gêneros ação, aventura, drama, biográfico e também como um western, o que demonstra o quão elástica é a classificação genérica nos tempos atuais.

O faroeste chega ao século XXI com alguma vitalidade para se reinventar por meio do contágio com outros gêneros. Com a direção e o roteiro no domínio criativo de uma mesma

pessoa, algumas das principais obras produzidas nestas quase duas décadas são marcadamente autorais. Tem sido assim nos filmes dos Irmãos Coen, de Quentin Tarantino, e em quase todos os exemplos aqui citados após os anos 2000, assim como os filmes do começo do século passado, que eram produzidos, roteirizados, dirigidos e ainda atuados pelo mesmo artista. No âmbito da narrativa, quanto do sistema de produção, o western continua sendo um reduto majoritariamente masculino. Uma possível tendência depreendida dessa pequena amostra elencada, parece ser a problematização das convenções do gênero. No campo da linguagem, isso permite a incorporação de elementos estilísticos provenientes de outros gêneros, quanto o uso da paródia e da citação como recursos que indicam a autoconsciência do filme frente aos tradicionais esquematismos do gênero. Narrativamente, esse tensionamento das convenções tem possibilitado a criação de enredos, cujo protagonismo é assumido por outros possíveis agentes envolvidos na conquista do Oeste.