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A arqueogenealogia foucaultiana como ferramenta para problematizar a formação de professores na Educação Especial

No documento A ORDEM DO DISCURSO NA EDUCAÇÃO ESPECIAL (páginas 40-45)

DIAGRAMA 02 – Situando minha pesquisa em um estrato rizomático

1.4 A arqueogenealogia foucaultiana como ferramenta para problematizar a formação de professores na Educação Especial

[...] Entre resumos de clássicos

E rudimentos de física O aprendiz insone

Descobre que neste cosmo Nada se segue a nada E não há súmula possível: Só um vasto turbilhão Que transborda de qualquer Volume da coleção.

[...] E agora, depois de centenas De livros, amores, certezas, Volta-lhe à mente a lição Das velhas lombadas azuis: “Não há sentido nem ordem Que não seja puro fruto Da mão cega e descontente A folhear, insaciável, Páginas, coisas e gente”. (Casimiriana, Paulo Henriques Britto, 1997)

Conforme anunciado acima, em um momento tardio, Michel Foucault irá resumir seu projeto filosófico como a investigação dos modos de subjetivação que fizeram com que os indivíduos se tornassem sujeitos. Assim, analisou suas relações com o saber, o poder e com a moral. Ainda afirmou o filósofo que seu trabalho se definia por uma ontologia do presente, do qual ele escavava o passado para problematizar sua contemporaneidade. É nessa perspectiva que desenvolvo meu trabalho coletivo com Foucault.

Através do mesmo ponto de vista, que localiza seus três domínios sobre a égide da genealogia, utilizo uma arqueogenealogia foucaultiana como mecanismo de pesquisa. Com isso, demarco que minhas preocupações estão mais centradas na análise das condições de possibilidade dos saberes que emergiram acerca da formação de professores e das estratégias de poder que funcionaram para tal. Não é pauta de investigação o domínio do ser-si, da subjetivação pela moral, possivelmente uma extensão desta pesquisa em outras esferas18.

Principalmente, trabalho com Foucault sabendo que dele não há a possibilidade de uma súmula19, como versa Britto (1997, p. 90), há sim “um vasto turbilhão que transborda de qualquer volume da coleção”. Tento assim acompanhar o ritmo dilacerante da trajetória foucaultiana, sem buscar transformar Michel Foucault em fórmulas, evitando cristalizá-lo e negá-lo, mas buscando transformá-lo em um novo, fazendo-o funcionar diante de meu objeto,

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A temática da formação de professores na perspectiva da inclusão, analisando o professor como sujeito político, tem muita ligação com a pesquisa sobre o governo de si, cuidado de si e as práticas de si. Penso que esse pode ser um desdobramento desta minha pesquisa, em um momento futuro.

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Ainda sobre o percurso do pensamento foucaultiano, Veiga-Neto & Traversini (2009) destacam jocosamente que antes de estudar um primeiro, um segundo ou um terceiro Foucault, é preciso levar em consideração o Foucault dois e meio, que se apresenta nos cursos do Collège de France.

da forma que este exige. Deixo assim que minha mão insaciável me conduza, ao lado de Foucault, entre as práticas sociais e as teorias-linguagens.

O termo arqueogenealogia é utilizado por alguns comentadores para tentar dar conta do cosmo foucaultiano. Utilizo-o aqui, inspirado inicialmente em Araújo (2006), que tenta organizar seu pensamento por via dos reversos, onde arqueologia e genealogia fariam parte de um mesmo mecanismo.

Como pontuam Dreyfus & Rabinow (1995), talvez para além de uma complementaridade entre arqueologia e genealogia, podemos pensar em uma reorganização da função arqueológica, em decorrência do trabalho do genealogista. Ou mesmo, como destaca Foucault (1995a), a arqueologia é um domínio da genealogia, um modo de operar. Tomando estas análises, o termo arqueogenealogia, na medida em que ponho de fundo a esfera da ética foucaultiana, representa minha proposta de trabalho e anuncia meu lugar dentro do pensamento foucaultiano.

Em linhas gerais, discorro sobre as conseqüências, na Educação Especial, da hipótese já consagrada que Foucault (1996, p. 08-09) anuncia na aula inaugural no Collège de France, onde afirma que

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Para apoiar esse uso, busco as contribuições de Sommer (2007) que aproxima a ordenação do discurso anunciada por Foucault (1996) ao campo educacional. A hipótese de Sommer (2007) é de que há uma ordem do discurso escolar, isto é, as práticas discursivas na escola são sancionadas e interditadas por determinadas regras. Ainda afirma que essas práticas discursivas controladas implicam na produção de identidades, concepções e regulam as práticas não-discursivas.

Alicerço-me ainda nas contribuições de Fischer (2001) que desenvolve um conciso trabalho de aproximação entre o pensamento foucaultiano e a análise do discurso na Educação. Enfim, esse é meu núcleo central, meu ponto de partida, de onde minha mão cega e descontente sai de forma insaciável na perseguição do turbilhão.

A idéia de se utilizar de uma teoria como uma ferramenta foi desenvolvida por Deleuze (1979) a fim de se estabelecer uma nova relação entre teoria e prática. Segundo este, tradicionalmente se concebeu essa relação de forma deturpada: ou se tomava a prática como uma aplicação da teoria, ou como inspiradora para uma forma futura de teoria. Ambas, pontua

Deleuze (1979) são formas que buscam um processo de totalização equivocado. Pois as relações entre teoria e prática são parciais e fragmentárias.

A teoria, ainda segundo Deleuze (1979), é sempre localizada em um pequeno domínio, embora se permita transpassar para outro. Os obstáculos, em seu próprio domínio, permitem elaborar outro tipo de discurso que por sua vez permite com que essa teoria possa passar de outro modo (nunca de forma semelhante) para um novo domínio. A partir desse raciocínio, a prática se define como um conjunto de revezamento de uma teoria, e esta, por sua vez, é o revezamento de uma prática a outra. Dito de outro modo, a teoria para ultrapassar seu limite, seus obstáculos, engendra uma prática, que irá engendrar novos possíveis na teoria.

Deleuze (1979) aponta com esta nova configuração entre teoria e prática que não há aplicação de teoria na prática, como modelos a serem reproduzidos. Destaca, nesse sentido, que uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Ela não funciona em si mesma, é preciso que sirva, que aja, que encaixe. Alerta ainda que não se refazem teorias, mas se fazem outras, novas. A teoria não totaliza, mas se multiplica. E para que esta teoria funcione, como as ferramentas, é necessário que o campo prático permita isso.

Não há uma aplicação do pensamento de Michel Foucault na Educação Especial, mas uma possibilidade desse uso (não utilitarista) a partir dos obstáculos apontados no campo de pesquisa, sendo que esse uso transforma o pensamento foucaultiano nos moldes que o objeto se apresenta. Como aponta Gonçalves (2003), os conceitos precisam ser questionados e só terão seu valor se tiverem funcionamento no campo de pesquisa, se forem “conceitos- utensílios”.

Nesse sentido, este trabalho, inspirando-se em Deleuze & Guattari (1995), funciona como um mapa, uma cartografia e jamais como um decalque. Longe de dar eco a uma teoria, reproduzindo-a infinitamente, busco ancorado no meu campo de pesquisa, dar-lhe cartografias, desenhando-a nas suas possibilidades e impossibilidades.

No uso de Michel Foucault como ferramenta, não quero voltar a ele mesmo, mas permitir que sua performance no campo de pesquisa produza um novo olhar. Assim, o ato de movimentar os conceitos dá-se quando a política se movimenta para dar conta de um problema, fazendo com que o sentido desse problema possa emergir.

Passo então a inventariar minhas intenções (GONÇALVES, 2003). Analisar, à luz de Britto (1997), o que temos de outro quando o turbilhão trans-borda, quando ele sai de si e vai

a outro lugar. Descrevo como intento que os conceitos/noções20 foucaultianas funcionem na minha pesquisa.

Para A ordem do discurso na Educação Especial utilizo como ferramentas alguns conceitos/noções que circulam na trajetória filosófica de Michel Foucault, notadamente no que tomo aqui como arqueogenealogia, tais como: discurso/formação discursiva, dispositivo, acontecimento, sujeito/subjetivação, saber, verdade, poder, estratégia/luta/tática, identidade, governamentalidade, biopoder, biopolítica, Estado e Educação. Embora descreva esses conceitos separadamente, destaco que no pensamento foucaultiano, a análise toma todos eles imbricados, engendrados em atividade na manifestação do discurso e das práticas sociais. No DIAGRAMA 03, apresento as relações possíveis entre as noções aqui discutidas, puxando o discurso como a linha de fuga da caixa de ferramentas.

Discurso é um conceito-chave para analisar a obra de Foucault. Castro (2004) destaca que o termo reflete um dos temas centrais de seu trabalho. É um conceito também de difícil apreensão21 e deve ser analisado criteriosamente, pois embora nos últimos escritos o filósofo tenha promovido a idéia de um projeto geral na sua obra, ele apresentou concepções diferentes de discurso ao longo dos seus três domínios.

Pode-se pensar, em primeiro plano, em duas concepções diferentes de discurso, no que tange à sua relação com as denominadas “práticas não-discursivas”. Em um primeiro momento, Michel Foucault, no projeto arqueológico, assume uma primazia dos enunciados e das formações discursivas em relação às não-discursivas, vinculando o discurso à épistémè. Em um segundo momento, desenvolve o conceito de dispositivo, já com uma concepção de poder vinculada a uma estratégia, aqui a análise do discurso é feita entrelaçada com a do não- discursivo ou as práticas em geral (CASTRO, 2004).

A primeira definição de discurso que temos é que este é um acontecimento histórico que é formado pelas ligações de unidades de análises funcionais, os enunciados. Constituem um conjunto denominado de formação discursiva, um feixe de relações em série descontínua e regular que dão a possibilidade de certas coisas serem ditas e outras não, em um determinado tempo e espaço. Neste momento, a noção de épistémè tem papel central na arqueologia foucaultiana. Segundo Michel Foucault, esta não seria uma espécie de

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A idéia de conceitos/noções aponta para a compreensão de que no pensamento foucaultiano não há espaço para conceitos ou categorias, como é concebido tradicionalmente. Freitas (2009) destaca que em Foucault os conceitos ou categorias revelam práticas sociais. Assim trabalhar com noções se aproxima mais de algo aberto a um movimento de mudança e se afasta da idéia de conceitos fixos a serem aplicados. Neste texto ora utilizo conceitos, ora noções, mas sempre na mesma perspectiva foucaultiana.

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conhecimento, como tentavam marcar os epistemologistas, mas sim um conjunto de relações de uma dada época ao nível das regularidades discursivas, que por sua vez darão lugar às figuras epistemológicas, eventualmente, sistemas formalizados de pensamento (FOUCAULT, 2008a).

No documento A ORDEM DO DISCURSO NA EDUCAÇÃO ESPECIAL (páginas 40-45)