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É “preciso” continuar o que nunca acaba?

No documento A ORDEM DO DISCURSO NA EDUCAÇÃO ESPECIAL (páginas 108-111)

DIAGRAMA 07 – Signos que se associam à idéia de formação

3.2 É “preciso” continuar o que nunca acaba?

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: “Navegar é preciso; viver não é preciso”. [...] (Navegar é preciso, Fernando Pessoa, 1914)

Venho então tentando trazer de volta o signo da problematização, assim como o trata Foucault (2010), para as questões da formação de professores. Um ponto fulcral nesse exercício é problematizar e polemizar a formação continuada38 nos moldes que ela vem sendo trabalhada pela governamentalidade neoliberal brasileira. É “preciso” continuar o que nunca acaba? Ou dito de outra forma: pensando que formação é uma ação contínua a que serve o discurso da formação continuada e em que medida essa finalidade não está em função da re- afirmação das questões que levantei na seção anterior sobre as políticas de conformação dos professores? Irei tentar trabalhar essas questões como motes desta seção, mais uma vez me utilizando do exercício cartográfico e da função de genealogista. Pessoa (2010) me acompanha reavivando eternamente os navegadores romanos e sua máxima, atualizada e em diálogo com as questões faustianas: Quando me irei sentir capacitado? A quantos cursos de formação continuada terei que me submeter? É preciso navegar sempre e o que me garante a precisão desta regulação?

Como afirmam Collares et al (1999), a formação continuada que mantém a separação entre produção e utilização de conhecimentos, entre sujeitos e conhecimentos, não só desvaloriza os saberes, mas também os sujeitos que os produzem e são produzidos. Trabalho com a percepção de que a formação dos professores, assim como qualquer profissão, é uma atividade não restrita apenas ao conhecimento e contínua, isto é, remete a uma série, uma

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“Adjetivar como ‘continuado’ um processo educacional é já admitir uma certa concepção de educação” (COLLARES et al, 1999, p. 209).

rede, uma topologia sem espaços vazios, um continuum. A certificação exigida na modernidade para atestar conhecimento e competência nas profissões, segundo o modelo “universitarizado”, não mantém nenhum vínculo com a idéia de terminalidade (assim como de um tempo zero) na formação. Não há uma formação inicial e uma continuada, não existem dois momentos, na topologia formacional não há espaços vazios. Collares et al (1999, p. 212) traduzem bem essa visão, destacando que

em contraste com a ruptura, elemento essencial da continuidade, a descontinuidade caracteriza-se pelo eterno recomeçar em que a história é negada, os saberes são desqualificados, o sujeito é assujeitado, porque se concebe a vida como um “tempo zero”. O trabalho não ensina, o sujeito não flui, porque antropomorfiza-se o conhecimento e objetifica-se o sujeito.

Este é um primeiro problema a ser analisado no discurso das políticas de conformação que buscam intensificar o valor da descontinuidade sem discutir a terminalidade (assim como o tempo zero) e a continuidade. Acrescenta-se a esse aspecto um outro problema de ordem prática tão vigente nas questões faustianas, quando a continuidade mantém um grande abismo entre o ponto inicial e o continuado. Outro desenrolar desses questionamentos, muito significativo para minha pesquisa, é o uso da tecnologia das formações continuadas como bandeira de uma especialidade, essa questão fica muito evidente quando discutimos a formação continuada para a Educação Especial/Inclusiva.

Belintane (2002) parte da mesma constatação que coaduno neste trabalho, de que a formação “inicial” de qualquer profissional é e sempre foi precária, datada e insuficiente, e que devido a isso a preocupação com processos de formação “contínua” ganha status amplamente generalizada. Destaco os termos “inicial” e “contínua” utilizados pelo autor, para pontuar a incongruência neste uso: “inicial” tem por contrapartida “seqüencial” e não “contínua”. O que parece uma discussão meramente de enunciados ou conceitual tem por contingências um jogo de verdade. Como afirmei, a continuidade tem na sua topologia a inexistência de espaços vazios, prescindindo assim da análise de um ponto inicial e uma continuação. O próprio Belintane (2002) concorda com essa problematização ao anunciar seu modelo de políticas de formação de professores39. O autor trabalha o conceito de “ambiência na formação contínua”, como “forma de garantir um espaço de mobilização em torno da idéia

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Se porventura ainda não tenha se tornado figura nessa discussão de formação inicial e continuada e de profissionalização e universidade, evidencio que dialogo aqui com outro amplo debate: crise na modernidade, estruturação do conhecimento e currículo, que por ora não irei adentrar por fugir demasiadamente da proposta deste estudo. Ver mais em Veiga-Neto (2008).

de formação em serviço, para que os projetos tenham como ponto de partida as próprias demandas da comunidade” (BELINTANE, 2002, p. 01).

Mais adiante Belintane (2002, p. 15) afirma que:

A pesquisa universitária – sobretudo a praticada nas universidades públicas de boa qualidade – deve buscar uma relação mais efetiva com as redes escolares, tentar lidar com a dinâmica viva do cotidiano escolar e posicionar-se mais concretamente em relação aos desafios nacionais e regionais. Qualquer teoria ou linha pedagógica advinda do exterior deve passar pelo crivo das demandas autênticas e da história de formação dos professores e de suas singularidades regionais; antes de instituir um imaginário positivo e um discurso competente, deve procurar enxergar suas diferenças, lacunas e desajustes em relação à especificidade regional. Em contrapartida, as redes escolares devem aproximar seus projetos da pesquisa universitária e, se possível, manter um intenso intercâmbio presencial e virtual com as comunidades universitárias. A relação entre produção de conhecimento e aplicação é que vai motivar a necessidade de novos planos de formação contínua. Nesse sentido, não é vantagem para a rede escolar adquirir pacotes de formação contínua ou de cursos sazonais sem estreitar essa proximidade, sem cotejar suas demandas com o estado da arte da pesquisa educacional.

Em linhas gerais, tal autor discute a velha problemática da relação teoria-prática, apontando que a divisão arbitrária entre a formação inicial, centrada na universidade, e a continuada, centrada exclusivamente no serviço cria esse abismo que desmonta qualquer possibilidade de uma continuidade. Essa cartografia nos remete diretamente à lógica da governamentalidade neoliberal e seu discurso de verdade. Afinal, a profissionalização docente, respaldada pela garantia “universitarizada”, responde às demandas do mercado de ter um capital humano que seja certificado por um conhecimento e uma competência específica garantida. A formação inicial ocupa essa função, já as demandas particulares (que apesar de generalizadas são tratadas como específicas: “- O problema está em você Dr. Fausto, capacita- te!”) fabricam uma verdade que monta a necessidade do indivíduo-professor continuar assujeitado pelo Estado, as variadas formações continuadas ocupam essa função.

Souza (2006) analisa essa questão, problematizando o centro de todas as discussões acerca da formação continuada que resume o ideário neoliberal do capital humano: o conceito de competência. Para autora, a formação continuada de professores deve ser examinada, tanto pelas políticas educacionais quanto pelas pesquisas científicas como elemento estratégico para forjar a competência do professor. O discurso da competência é utilizado pela governamentalidade neoliberal, como uma estratégia de poder, a fim de sustentar a crescente importância atribuída à formação continuada de professores no interior de um projeto de melhoria da qualidade da escola.

A lógica que estou traçando desde o segundo capítulo chega ao seu âmago: os países pobres não se desenvolvem devido ao baixo nível de instrução da população, cabe ao Estado

intervir de forma a garantir que a Educação seja a via que fortaleça o capital humano do país, entretanto para isso é preciso formar (conformar) os professores, de forma constante a fim de garantir que suas incompetências não maculem o projeto. Vamos fazer o caminho lógico inverso: devido à falta de competência dos professores para assimilar o conhecimento transmitido na universidade é preciso planejar diversas estratégias de formação continuada, a fim de garantir que eles exerçam sua função de melhorar o capital humano do país e assim possibilitar que este se desenvolva. O DIAGRAMA 08 apresenta a lógica da governamentalidade neoliberal sobre a formação de professores diante dos problemas dos países pobres.

DIAGRAMA 08 – Lógica da governamentalidade neoliberal sobre formação de

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