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Arqueologia da mídia e investigações do medium

3 ANALÓGICO X DIGITAL: INTERROGAÇÕES EM DIREÇÃO À

3.2 ANALÓGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIAÇÕES:

3.2.3 Arqueologia da mídia e investigações do medium

São importantes para a análise proposta nesta tese a busca de caminhos teóricos que na área da comunicação contribuam para relativizar essa hierarquia entre meios analógicos e as “novas mídias”. Ao mesmo tempo em que diversos dos artistas que integram nosso corpus seguem trabalhando com mídias analógicas e digitais, num interessante cruzamento que beneficia o campo da estética, interessam-nos perspectivas capazes de apaziguar o debate que prioriza certos dispositivos em detrimento de outros. Assim, destacamos o papel da abordagem arqueológica da mídia. As ideias de autores como Jussi Parikka (2012) e Siegfried Zielinski (2006) a respeito de uma continuidade entre tecnologias demonstram não apenas uma crítica à supervalorização do progresso técnico, mas propõem observar como mídias antigas e novas se assemelham em seus propósitos, mesmo que separadas no tempo. Se Lévy (Ibidem), por exemplo, utilizou o hipertexto para falar de como formas de comunicação antigas podem se condensar num dos principais elementos da cibercultura, para Zielinski (2006, p.49) a internet

também é local de convivência das mídias anteriores, que permanecem em uso, não sendo completamente abandonas por força da informática.

A partir da recusa de apontar tendências dominantes, meios hegemônicos ou mais eficientes, a abordagem arqueológica da mídia sugere compreender a tecnologia num sentido não-evolucionista, adotando então uma compreensão relacional dos meios, de uma constante hibridização entre velho e novo (GANSING, 2016). Através do resgate histórico de várias experiências desenvolvidas em épocas distintas (séculos XVII, XVIII, XIX), Zielinski (Ibidem) demonstra que autômatos, instrumentos musicais de estrutura extremamente sofisticada, códigos desenvolvidos para ocultar informações, dispositivos de produção de imagens e fantasmagorias entre outras invenções, possuíam as mesmas funções das tecnologias audiovisuais e informáticas atuais: registrar o mundo concreto, dar forma ao invisível, compor e reproduzir sons, criptografar dados, fazer cálculos, enviar e receber informações, comunicar à distância, etc.

Além desses nomes diretamente ligados ao campo da arqueologia da mídia, consideramos a notável contribuição de pesquisadores como Lev Manovich e seus estudos de software (2013), através de sua reflexão a respeito do computador como dispositivo capaz de reposicionar características de mídias físicas, ao mesmo tempo em que agrega atributos típicos dos sistemas informáticos. Essa questão que perpassa toda a discussão proposta pelo estudioso russo, tem grande relevância no debate em que nos inserimos no tocante aos movimentos estéticos ligados à imagem. A noção desse caráter dual do computador/software incorpora o pensamento arqueológico da mídia ao afirmar uma ligação, por exemplo, entre mídias físicas – pintura, o cinema, a fotografia, a escrita – e os processos realizados pelo software, que nos ajuda a compreender não apenas a relação entre códigos visuais realistas e os usos dos dispositivos digitais, mas também a apropriação de diversos estilos e marcas desses meios analógicos por

softwares, dedicados à manipulação da imagem na contemporaneidade.

Também a já citada proposta em torno da “fotografia não-humana” desvia-se de uma ênfase na tipologia da mídia, para focar-se nas formas de apropriação dos diversos dispositivos e materiais que se constituem em imagens, pensando a fotografia como uma prática vital. A partir de uma compreensão biológica e geológica da fotografia, ela estabelece que o universo de suas imagens é povoado de artefatos nos quais a luz se registra, inscrevendo-se em suportes os mais variados: “O reconhecimento do papel formativo da luz através de diferentes períodos (em

fósseis, impressões, fotogramas, frames de negativos, e imagens digitais) também nos ajuda a levar o debate para além do binarismo analógico-digital” (ZYLINSKA, 2017a, p.7). Assinale-se que esta abordagem é bastante interessante, pois na medida em que enxerga certa autonomia dos dispositivos de imagem, abre caminho para a consideração de estéticas não-convencionais, acionadas pela experimentação com a própria mídia.

A perspectiva da arqueologia da mídia também ecoa uma vontade de olhar para o passado das técnicas, ou melhor dizendo, para as técnicas do passado em busca de novos caminhos criativos. “Não procuremos o velho no novo, mas encontremos algo novo no velho” (ZIELINSKI, 2006, p.19). Essa atitude é sintomática dos/das artistas incluídos em nosso corpus que se voltam para redescobrir técnicas antigas da imagem (como pinhole, camera obscura, daguerreótipo, panorama, diapositivo) sem traços de saudosismo, mas em busca de experiências que possam reinventar códigos e metodologias, ou mesmo para o uso de dispositivos de imagem analógicos ou eletrônicos em conjunto com o computador. Acreditamos que encarar o universo da imagem contemporânea através de uma perspectiva arqueológica da mídia, permite-nos considerar igualmente fértil todo um conjunto de obras que aproveita tecnologias antigas e novas da imagem, para indicar como estas são apropriadas em favor do viés “experimental” (LENOT, 2017) do fotográfico. Nesse sentido, alguns estudiosos e estudiosas partindo de uma visão mais horizontal das mídias, convocam a reconsiderar dicotomias tão marcadas entre analógico e digital; Cruz e Oliveira (2009) indicam a importância demasiada atribuída aos aspectos técnicos na teorização sobre a fotografia digital, fazendo com que as diferenças encobrissem as continuidades, ao mesmo tempo em que as teses de indexicabilidade permaneciam bastante associadas ao paradigma analógico. As autoras acrescentam que, por força do digital, abrem-se novas possibilidades de compreensão da imagem, e ao mesmo tempo se pode repensar a mídia analógica.

Fatorelli (2017) faz observações que nos orientam a pensar em uma pluralidade estética mais alinhada com aberturas da própria fotografia, independente da mídia empregada. Para ele, a imagem fotográfica tem uma dupla condição que a faz por vezes aproximar-se do referente, e outras vezes apartar-se dele, e partindo de experimentos variados no âmbito do próprio dispositivo acaba por gerar uma realidade própria, centrada em processos técnicos. Podemos aqui enumerar rapidamente alguns nomes que utilizando exclusivamente ou não materiais fotográficos, acabaram desenvolvendo trabalhos que nos ajudam a pensar essa condição maleável

da imagem que vai do figurativo ao abstrato: Paolo Gioli, Andy Warhol, Marey, Jacques-Henri Lartigue, Geraldo de Barros. Esses artistas buscaram investigar os limites e vizinhanças entre fotografia e outros modos visuais, brincando com as formas, o tempo, as luzes, os materiais. Construída em torno de uma função “apresentativa”, em detrimento de uma função “representativa”, a fotografia se vale de práticas como a apropriação de outras imagens, a criação de cenários específicos para serem registrados pela câmera, a tomada de empréstimo de modos de outras artes como cinema, pintura, performance, teatro e literatura (FATORELLI, 2017), tendências que ganharam corpo e hoje seguem como marcas significativas da produção contemporânea. Esse espaço é coabitado pelas mídias analógicas e digitais, com propostas de uso exclusivo, mas também de cruzamentos.

Também Zylinska (2017a), quando propõe uma definição de fotografia como processo de registro da luz por meio de diversos aparatos (câmeras, scanners, satélites, e corpos vivos), afirmando que esse processo é de “tradução” e não de “transcrição”, apaga a necessidade de uma diferenciação entre sistemas analógicos e digitais, e propõe ainda que a imagem fotográfica seja aceita como algo novo, uma realidade específica, e não uma réplica do mundo concreto. Todas essas observações ajudam-nos a lançar um olhar sobre trabalhos recentes com ênfase nas experiências com os meios e na articulação entre eles.

Andreas Müller-Pohle é um artista alemão cujo trabalho desenvolve uma pesquisa crítica em torno deste viés “representativo” da imagem, discutindo a arraigada ideia de que aquela guarda correspondência de semelhança com o mundo material. Ele reconhece que ainda muito da produção em digital não passa de “simulações e kitschificações de imagens analógicas” (MÜLLER-POHLE, 1996), e problematiza o status realista tanto em projetos de base analógica quanto digital, o que está de acordo com as afirmações a respeito de uma abertura ao múltiplo ser inerente ao fotográfico.

Em Digital Scores (after Nicéphore Niépce), de 1995–1998 (figuras 19 e 20), ele digitaliza a clássica View from the window (Joseph Nicéphore Niépce, 1826). A informação contida na paisagem retratada através de um método físico-químico dá origem a um montante de sete milhões de bytes, que traduzida em dados binários é distribuída em oito partes. O que vemos é literalmente a informação que a imagem carrega, num diálogo irônico que põe lado a lado o símbolo pioneiro dos esforços do pensamento científico para fixar visualmente o mundo – o

palpável, o acabado, o material – e sua total desmaterialização num conjunto disforme, abstrato, sem nenhuma relação estética como aquilo que o originou. O computador atua como ferramenta que expõe a estrutura mesma dos códigos com os quais opera59. A obra Digital scores é

informação pura, e demonstra uma disposição do artista em conceituar o próprio meio; a imagem de Nièpce é o ponto de partida para uma reflexão sobre a fotografia em geral, e os resultados são decisões estéticas da máquina (BATCHEN, 2002, p.177).

No projeto Cyclograms (1991-1994) (figuras 21 e 21a), a ideia básica também parte de imagens previamente selecionadas para criar algo diferente. Várias fotos são picotadas e os pedaços jogados num recipiente que contém revelador fotográfico. O interior do recipiente é revestido com papel fotográfico. À medida que tudo se mistura, os pedaços de imagens vão manchando o papel, criando fotogramas. Novas imagens surgem por meio da destruição das anteriores. Método e materiais analógicos são empregados num processo de reciclagem, onde o resultado final é uma surpresa, e o substrato original desgarrou-se de seus contextos, intenções e usos. Esse rearranjo é alheio à centralidade de um dispositivo de registro, pois a presença da câmera ficou lá atrás (nas fotos retalhadas), sendo relativizada em relação aos demais materiais empregados (o revelador, o papel). Há ainda uma liberdade envolvida no processo de obtenção das imagens que se assenta num certo nível de descontrole: “Em muitas das obras de Müller- Pohle, o acaso assume uma função importante no vir-a-representar pictórico que termina em indeterminação, isto é, quando a imagem testemunha pictorialmente uma reação de maneira imprevisível60” (VON AMELUNXEN, 1999, tradução nossa).

59 Müller-Pohle tem outro trabalho que resulta da interface analógico/digital: a instalação Analog-Digital Mirror (2004), na qual a imagem capturada por uma câmera de vídeo perde a forma e transforma-se em números e letras de acordo com o movimento de quem interage com o sistema. Disponível em: http://muellerpohle.net/projects/analog- digital-mirror/. Acesso em 19/09/2018.

60 Tradução livre de: “In many of Müller-Pohle’s works chance assumes an important function in the pictorial

coming-to-be that ends in indeterminateness, that is, when the image pictorially testifies to a reaction in an unforeseeable manner.

Figuras 19 e 20 - Digital scores I e Digital scores IV (Andreas Müller-Pohle, 1995-98)

Fonte: Reprodução internet

A obra do alemão exemplifica uma forma de pensar a fotografia como artefato que pode se reinventar contrariando modelos ou regras de procedimentos ligados à própria tecnologia, que por sua vez contribuem para revisitar, sob diversas metodologias, paradigmas sempre caros à imagem, conforme nos lembrou Soulages (online, 2017).

Junto a ele podemos colocar todo um grupo de artistas que em vez de contentarem-se em reafirmar o debate em torno do mimetismo, da veia testemunhal da imagem, preferem experimentar com equipamentos e conceitos, produzindo uma estética implicada pelos rearranjos do próprio dispositivo. Há um despojamento na elaboração da imagem ligado a um fazer dotado de curiosidade, mais interessado em deixar que os materiais se misturem sem controle rígido, e seu valor reside também no elemento surpresa.

Figuras 21 e 21a - Cyclograms 5.2.1994 (Andreas Müller-Pohle,1994)

Fonte: Reprodução internet

O que parece seguro apontar é que, no campo da imagem, mídias analógicas, eletrônicas e digitais compartilham um espaço de convivência e utilização em diferentes práticas, que vão do âmbito artístico ao vernacular, com empréstimos e (re)posicionamentos que acontecem sobretudo pela maleabilidade própria da fotografia. Ao mesmo tempo, esforços de repensar alguns paradigmas básicos da fotografia – sua condição de imagem única, fixa e mimética entre outras questões – não são exclusivos das mídias digitais, nem tão pouco são catalisados apenas quando elas surgem. Eles já se verificavam entre alguns pioneiros da fotografia61, portanto num momento

em que o digital sequer sonhava aparecer, e são revisitados por artistas que na atualidade trabalham também com a mídia analógica. De maneira mais generalizante, parece que o espaço da fotografia contemporânea é afetado pela convivência entre formatos com tendências tanto de hibridização, de contaminações, de empréstimos e reposicionamento de paradigmas e estéticas,

61

Fatorelli (2006) faz referência ao movimento pictorialista, ao flou das fotografias de Julia Margaret Cameron, e dos movimentos da vanguarda europeia da década de 1920 como exemplos de confrontação de uma fotografia

quanto de fetichização de estéticas antigas e da ressignificação de tecnologias vistas como obsoletas, e de técnicas clássicas da imagem, num movimento que vai das alianças aos afastamentos com a mesma fluidez.

Contudo, parece que o reconhecimento de uma atitude mais crítica ao medium, como algo capaz de influenciar a busca por novas estéticas além da representação, é algo que se torna mais presente no debate acadêmico e artístico a partir exatamente do entendimento paralelo de que: 1) a fotografia é plural, mas sua história tem zonas de sombra por vezes negligentemente exploradas, principalmente no diálogo com outras artes da imagem; 2) a tônica de abertura do fotográfico é uma característica que já vinha sendo demonstrada, passando a ser aceita com mais evidência porque a discussão a respeito do que caracteriza a fotografia retorna, à medida que vai se instituindo o paradigma digital, e se procura desvendar o que muda e o que permanece das teses clássicas que conformam a teoria do meio.