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Tão longe, tão perto: comparações

3 ANALÓGICO X DIGITAL: INTERROGAÇÕES EM DIREÇÃO À

3.2 ANALÓGICO + DIGITAL E A ZONA CINZA DE NEGOCIAÇÕES:

3.2.2 Tão longe, tão perto: comparações

Kevin Robins (1995, p.38) indica aproximações entre analógico e digital, explicando que a relação entre fotografia e pensamento cartesiano (racionalista) percebe a mudança tecnológica numa linha evolutiva, com anseios de aperfeiçoamento e sofisticação da imagem que se traduzem num ideal de liberar o medium de “impurezas”, e que uma noção de “revolução digital” leva esse projeto cartesiano a um estágio elevado. A fotografia química e a digital compartilham a preocupação com um tipo de imagem, um padrão que será melhor alcançado com a emergência de novas ferramentas tecnológicas. Esse pensamento cria uma hierarquia entre velho e novo, fazendo deste último uma cura para as incapacidades do primeiro. O digital teria a capacidade de ultrapassar o analógico, ser de alguma forma superior a ele na tarefa de produzir imagens.

O problema é que estabelecer essa dicotomia impede-nos de perceber que se troca uma tecnologia por outra sem que se modifiquem algumas concepções em torno da imagem. Quando não se observa cuidadosamente se (e como) o contato com dispositivos que engendram uma maneira diferente de lidar com o mundo traduzem essa relação para a forma de conceber imagens, interferindo no que pensamos, sentimos, compreendemos a respeito delas e o que fazemos com elas. À medida que o paradigma digital entra em cena apenas para aperfeiçoar ideias já assentadas na fotografia de base química, como podemos celebrar seu poder inovador, revolucionário? Mais adiante, o pesquisador britânico observa:

(...) significativas não são as novas tecnologias e imagens em si mesmas, mas o reordenamento do campo visual em geral e a reavaliação das culturas da imagem e tradições que elas evocam. É notável que boa parte da discussão mais interessante sobre a imagem agora se refere não aos futuros digitais, mas, na verdade, ao que pareciam até recentemente mídias antigas e esquecidas (o panorama, a camera obscura, o estereoscópio); de nossa posição vantajosa pós-fotográfica, tais mídias de repente adquiriram novos significados, e a reavaliação delas é agora importante para entender o significado da cultura digital. Nesse contexto, parece produtivo pensar, não em termos de descontinuidades e disjunções, mas, sim, com base em continuidades, através de gerações de imagens e através de formas visuais. (ROBINS, 1995, p.45)

Aqui, Robins convoca a repensar a convivência entre imagens fotoquímicas e digitais na tentativa de identificar o que realmente estas últimas apresentam. Podemos tomar sua proposta num sentido mais abrangente, pois ele já apostava que a imagem contemporânea num sentido mais geral se distingue pela diversidade de modos, práticas, ferramentas, e indagar: que caminhos

os tensionamentos de tradições no campo visual já ocorriam nas mídias analógicas? E como eles vêm sendo mantidos vivos, de que maneira e por quais motivações são mantidos sobretudo nas práticas artísticas? É possível identificarmos nas estratégias da arte contemporânea um marco comum que encerre o debate divisionista entre analógico e digital? Até que ponto a tipologia do

medium é a questão relevante para artistas interessados na experimentação com as tecnologias?

Onde podemos encontrar um marco conceitual que funcione como denominador estético na promoção de uma imagem experimental que se vale de tecnologias diversas da imagem? De que maneiras a produção contemporânea mantém ativa uma reflexão que contraria esses paradigmas clássicos da imagem, ultrapassando a divisão analógico/digital em favor de estéticas que não obedeçam apenas ao marco indexical?

Parente (1993) também faz uma ressalva ao fato de a imagem de síntese ser vista como uma oposição radical ao regime da representação. No que denomina “amnésia da história da arte” (Ibidem, p.21), ele lembra que movimentos de confrontação a modelos dominantes sempre foram observados no campo artístico. O cinema experimental, a videoarte, a pintura impressionista, o pontilhismo, as obras de Godard, Tarkovsky, Resnais são exemplos de alternativas ao modelo da representação57. E há aí um problema quando a transição para o digital assume o papel de

condensar uma trajetória de afirmação de tradições formais hegemônicas, em vez de promover verdadeiras rupturas nos modos de pensar e realizar imagens, utilizando para isso seus próprios modos estéticos, conceituais e técnicos: “ou o virtual é uma imagem-acontecimento, uma imagem-devir, ou é apenas uma determinação técnica sem interesse. Ou melhor, uma determinação técnica interessada na reprodução social das representações dominantes” (PARENTE, 1993, p.22). Em texto datado de 2009, Parente convoca-nos a pensar que o virtual não se opõe a um suposto real entregue pelas tecnologias fotoquímicas, mas que ele se torna interessante para o campo da imagem quando figura como ponto de interrogação das ideias de verdade, ligadas aos modelos representativos, que de fato são puras ficções58. Num outro

57

André Parente faz referência ao raciocínio de Deleuze (2005; 2018) sobre o cinema da “imagem-movimento” baseada na lógica de ação-reação (estabelecida pela força da montagem, da mobilidade da câmera, da contiguidade entre tempo-espaço), e produções da “imagem-tempo” que indicam o enfraquecimento dessa lógica, abrindo-se a tempos heterogêneos e sobrepostos na narrativa (o sonho, o devaneio), características das obras de Resnais, Antonioni, entre outros. Na transição da imagem-movimento para a imagem-tempo há uma ruptura com a narrativa clássica do cinema, ou seja, do modelo da representação.

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Cf. Parente, André. A forma cinema: variações e rupturas. In: Maciel, Katia. Transcinemas. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2009, p. 23-47.

momento de reflexão, questiona uma afirmação bastante comum nos debates a respeito da imagem digital:

Porque muita gente diz o seguinte: quando eu produzo uma imagem de síntese que é fruto de uma simulação computacional, essa imagem de síntese não diz mais respeito a uma realidade preexistente. No entanto, ela tem a ver ainda com o processo de representação, ao contrário do que se pensa. Por quê? Porque se eu testo um protótipo virtual, eu não faço mais um protótipo de carro que é físico, eu faço ele virtualmente e testo ele num computador. Mas se ele vai funcionar depois, é porque justamente esse protótipo virtual representava uma série de fenômenos físicos. (PARENTE, 2009, p.169)

As observações desses teóricos estão alinhadas com nosso objetivo de deslocar um pouco o debate sobre analógico/digital feito em bases notadamente técnicas, para reposicioná-lo em direção às proposições estéticas. Ou seja, tentar perceber em que medida a emergência de novas bases tecnológicas serve para chacoalhar modelos de visualidade, resvalando em procedimentos e experiências singulares no campo da imagem. Ao mesmo tempo, apontamos uma convivência entre essas obras (que são objeto de nosso interesse) e trabalhos que ainda se relacionam com padrões de visualidade que eram até o surgimento das novas mídias, atribuídos quase que unicamente às mídias analógicas.

Apontamentos de outros pesquisadores também estabelecem alguns pontos de interrogação nessa direção. Rogério Luz (1993) indica que não há uma diferença radical entre analógico e digital pois pensando no modelo da perspectiva centralizada, ele já propõe uma interpretação do mundo que cria imagens sob um parâmetro científico (geométrico). Qualquer imagem regida pela perspectiva renascentista já é uma virtualização bidimensionada à luz de uma convenção, e aí imagens digitais e analógicas são igualmente criações orientadas por modelos científicos; o que difere é o modelo imposto em cada época e como a imagem incorpora seu discurso.

Reafirmo que as novas imagens são um sintoma, entre muitos, de um determinado estado de cultura em que a prevalência da imagem, resultado de sua importância cognitiva, em especial na arte e na ciência, revela uma tradição problemática marcante em nossa civilização desde o Renascimento. Não é o mundo real, mas a maneira de inventar o mundo possível que aqui interessa, e não apenas uma perspectiva estética, mas também ética e política. (LUZ, 1993, p.54)

Para o autor as mudanças tecnológicas embora saudadas como ferramentas para liberar a imagem do real, continuam fazendo referência a ele sob o ditame de um modelo científico de organização, de direcionamento do olhar, e como isso pode impedir a oxigenação dos modos de criar. Essa compreensão entra em acordo com as análises de Weissberg (1993), para quem toda época possui simulacros e maneiras de interpretar, e a simulação quando faz o real parecer aquilo que não é, já trabalha com a ilusão de profundidade causada pela perspectiva geométrica, remontando ao que fazia a pintura trompe-l'oeil. Zylinska (2017a, p.15-17) acompanha-os na percepção de que a própria visão é um processo historicamente construído, já que é mediado por dispositivos que sugerem um incremento dessa capacidade (o que conforma uma artificialidade inerente também à produção de imagens), e são elaborados com base em relações científicas entre máquinas e corpos. Ritchin (2008), assim como outros teóricos já apresentados aqui, elenca características que a fotografia digital tem como pontos fortes, entre elas não-linearidade, não- sincronicidade, abstração, possibilidade de autoria múltipla, e a reconfiguração de tempos diferentes, mas olhando para experiências realizadas ao longo da História da fotografia, tais questões já se colocavam para os artistas, sendo trabalhadas como ponto de origem de um pensamento sobre os limites e expansões do meio fotográfico. O mesmo autor reconhece que se por um lado a publicidade e a moda estiveram mais abertas às possibilidades trazidas pela imagem digital, nas artes e na documentação a investigação da tecnologia fez-se mais tímida. Acrescente-se que segundo ele, a “hiperfotografia” (digital) além de mais facilmente criada, veiculada e refeita, provoca modos temporais mais elásticos, antagônicos ao “momento decisivo” pinçado de um contínuo, à imagem estática que conforma um objeto palpável e que carece de instantaneidade – que corresponde ao analógico (RITCHIN, 2008, p.142).

O julgamento do autor para estabelecer uma distinção que valoriza o novo em detrimento do antigo, leva em consideração principalmente os efeitos de distribuição decorrentes da maneira de se produzir a imagem, sem contudo entender que ideias de congelamento do tempo, da imagem única e restrita ao paradigma do clique sem modificações do material capturado, não são marcos exclusivos da tecnologia analógica, mas de um tipo de interpretação da fotografia. Não foi o surgimento do digital que oportunizou o intercâmbio entre fotografia e outras artes, ou a exploração de regimes temporais que oscilam entre estático e móvel, mas para Ritchin (2008, p.180-182), a fotografia convencional possui uma temporalidade contínua, pouca abertura para a ambiguidade – estaria de certa forma presa à ideia de retratar uma verdade – e

frente ao digital, restaria para ela o reconhecimento de ter servido à documentação histórica e possuir uma singularidade comparável à da pintura.

Ao lado do entusiasmo em relação ao potencial de interatividade e autoria compartilhada de produção, Ritchin acredita que num ambiente multimídia a fotografia beneficia-se do uso mais democrático traduzido na oferta de conteúdo mais igualitária, plural e qualitativa do ponto de vista informativo. Nos seus argumentos há uma crença na força política que a imagem fotográfica pode adquirir nessa conjuntura de digitalização, mas de uma perspectiva estética esse debate é pouco explorado.

As contribuições desses autores levam a crer que colocar em debate os sistemas analógico e digital é um exercício de compreender e pontuar características diferenciadoras, e paralelamente manter uma atenção a questões onde se verificam continuidades. Em outras palavras, as mudanças técnicas e epistemológicas que acompanham a passagem do analógico para o digital nem sempre significam o abandono de convenções assentadas em nossa cultura visual, embora apareçam trabalhadas pelos artistas a partir de chaves discursivas do paradigma digital.