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Ordem da representação x ordem da simulação

2 INTELIGÊNCIAS NUMÉRICAS

2.4 SOBRE A IMAGEM

2.4.2 Ordem da representação x ordem da simulação

Outras questões foram levantadas para distinguir as imagens analógicas e digitais, entre elas, a ideia de que as primeiras alinham-se à ideia de representação, enquanto as imagens numéricas apresentariam uma tendência maior à simulação. Ao falar sobre os códigos por trás das interfaces dos artefatos digitais, Manovich (2001, p.112) compara as tradições da representação e da simulação. A primeira supõe a organização de uma cena num espaço demarcado, físico específico, geralmente estático. A representação recorre a várias convenções e sua matéria se reporta ao mundo físico, mas sem se confundir com ele. Já a simulação, quer ficar mais próxima do mundo material, repetindo suas escalas e dimensões até confundir-se com ele.

Para o teórico russo, o modo da representação predominou nas culturas da pintura, fotografia, cinema, em detrimento do modo da simulação30. Contudo, essa tendência de

continuidade do espaço físico no virtual faria parte apenas do momento inicial da tradição da simulação, e a emergência das mídias digitais traz outras questões. A realidade virtual, por exemplo, relacionada a noções como a interatividade entre sujeito e máquina, os movimentos e reações do usuário, têm efeitos no que ocorre no ambiente do dispositivo onde se propõe uma imersão. Nesse ponto se instaura uma diferença importante: em vez da inclinação para uma falsa continuidade do ambiente físico, acentua-se agora a separação entre espaço real e virtual e a “realidade física é ignorada, dispensada, abandonada” (MANOVICH, 2001, p.113).

O ordenamento da simulação é também resultado de convenções culturais. Quando essas referências são “filtradas” e “traduzidas” nas ferramentas disponíveis e na maneira delas

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Manovich apresenta indícios dessa lógica em formas de entretenimento do século XIX, como o panorama que seria uma forma cultural intermediária entre representação e simulação. Museus de cera, escultura em escala humana, e dioramas nos museus de história natural seriam exemplos da lógica da simulação, também no mesmo período. Cf Manovich, 2001, p.113.

operarem nos sistemas informáticos, a tendência à abstração ganha espaço. São as regras internas do sistema que definem os parâmetros de sentido válidos no universo digital. Segundo Manovich (2001, p.117), a evolução dos softwares em direção a uma abstração crescente é compatível com a automatização de tarefas, que governa o próprio desenvolvimento da cultura digital. O mesmo autor explica que, basicamente as operações dos computadores são inicialmente conceitos, quer dizer, estão primeiro no nível abstrato, para só depois se materializarem na tela onde aparecem como resultados de comandos dados pelo usuário.

Quando entendemos que a abstração é uma lógica influenciada pela característica da automação, é possível apontar uma tendência do paradigma digital que influencia sobremaneira as discussões no âmbito da arte, e por consequência da imagem: a criação a partir de conteúdos pré-formatados. A criação que parte de elementos dados e não “do zero”, também se vincula a uma visão do artista que há muito não coincide com a ideia individualista de gênio isolado, mas está de acordo com um universo artístico que se consolida através da relação estreita com as máquinas.

Esse novo tipo de autoria (...) se encaixa perfeitamente com a lógica do avanço industrial e das sociedades pós-industriais, onde quase toda prática envolve a escolha em algum menu, catálogo ou base de dados. Na verdade, como percebi, as novas mídias são a melhor expressão disponível da lógica da identidade nessas sociedades – valores selecionados de menus pré-definidos. (MANOVICH, 2001, p.128)

Se a norma da linguagem informática é lidar com coisas e operações já determinadas pela máquina, o exercício da criatividade vai em direção à modificação do que está posto como modelo, estabelecendo um tipo de autoria baseada nas ações de escolher e selecionar entre um conjunto de possibilidades, efetivando como tendências dessa autoria, estratégias como a mixagem, a customização, a releitura, a composição31. É um modelo criativo que preconiza as

conexões e reinterpretações produzidas ao longo de zonas de contato móveis, por agenciamentos e bricolagens realizados por uma multiplicidade de atores (LÉVY, 1993, p.107), ou como diz

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Deve-se salientar que, do mesmo jeito que outras características das mídias digitais, essas tendências não surgem com a emergência do computador, mas são basilares da lógica que rege seu funcionamento. No universo das artes, releituras e apropriações de elementos prontos não são novidades, e já se verificavam por exemplo nas práticas da Pop Art, da fotomontagem. Fatorelli (2017) faz observações relevantes sobre estratégias de apropriações e releituras, como algo que marca os procedimentos da fotografia contemporânea.

Parente (2009), o digital baseia-se na vontade de “desterritorializar” as formas de relacionamento das pessoas nos processos de criação.

De acordo com Ritchin (2008), a não linearidade e a quebra de hierarquias no ambiente multimídia, o constante recriar a partir de elementos pré-concebidos (imagens, sons, textos), além de promover o desenvolvimento coletivo de conteúdos, permite que os lugares antes marcadamente separados para amadores e profissionais sejam relativizados. As fronteiras entre essas duas instâncias tornam-se sutis, menos definidas. Fontcuberta (2016, p.32) acrescenta a esse debate a democratização promovida pelo digital, na medida em que, no espaço da imagem, “pela primeira vez somos todos produtores e consumidores”, dada a profusão de aparelhos. Um ponto de vista interessante é desenvolvido por Zylinska (2017a, p.179) nesse sentido, quando a autora afirma que se a cultura da imagem digital sugere um incremento na produção e circulação de fotografias, esse movimento tem raízes ainda no seio da imagem fotoquímica, no momento em que a Kodak populariza a prática fotográfica através de câmeras baratas. A fotografia digital estabelece uma continuidade com práticas iniciadas nas mídias analógicas, só que é mais rápida, menos permanente, e mais excessiva. Tais questões são importantes do ponto de vista dos usos da fotografia, bem como sintomáticas de um modelo criativo que ganha força com as mídias digitais, baseado no intercâmbio de referência e informações e em uma certa horizontalidade de participação de quem manipula os conteúdos para produzir significado.

Nas comparações entre representação e simulação, foram enfatizadas questões como a imaterialidade, a fugacidade, a abstração em relação ao real, que caracterizam as imagens digitais. Hoje, alguns autores já adotam posições menos ortodoxas a respeito do digital. A abordagem das materialidades da comunicação, que inclui pensadores de épocas diversas como Benjamin, Simondon, Derrida e Gumbrecht (FELINTO, 2001), pode contribuir para repensar afirmações sobre o digital e sua imaterialidade. Na medida em que propõe uma valorização das tecnologias, dos objetos e das articulações entre sujeitos e mídias, as materialidades da comunicação emergem como lugar de análise dos meios em sua função significativa. Ou seja, o sentido das coisas, dos artefatos culturais não é dado a priori nem apreendido exclusivamente por um intelecto elevado, mas por nossa relação com a forma das coisas. E esta abordagem não exclui os artefatos da cultura digital do rol de seus objetos de análise. Conforme afirma Felinto (2001, p.14), “a teoria das materialidades tem buscado utilizar os mais recentes desenvolvimentos da cibernética e da teoria dos sistemas para conjugar diferentes estruturas em uma perspectiva

autenticamente conceptual”32. O mesmo autor, reivindicando a presença do corpo como oposição

aos discursos sobre a cibercultura, sempre a negar o valor dessa fisicalidade, diz que mesmo aquilo que inicialmente afirma-se imaterial pode ganhar corpo (...) e que essa ideia alcança o universo da tecnocultura (FELINTO, 2004). Para ele, a própria palavra “corpo” já possui uma semântica de materialidade. Manovich (2013), além de apontar a evidente necessidade de

hardwares na cibercultura, também reconhece enquanto materialidade do computador e seus

produtos os formatos de arquivos, pois que estes gozam de uma identidade (como já indicamos). Mesmo a simulação, apontada como marca do paradigma digital, que a princípio sugere um afastamento em relação ao real, retira do mundo concreto as referências para elaborar objetos, criar ambientes, reproduzir movimentos, recursos amplamente utilizados no cinema e na publicidade, por exemplo. Se com o auxílio de um software é possível recriar no computador uma cadeira exatamente igual à cadeira na qual estou sentada escrevendo esse texto, é porque as referências para que ela seja modelizada no computador são tomadas de uma cadeira concreta, que possui volume, massa, textura, enfim, dimensões específicas e definidas utilizadas como parâmetro.

Reconhecemos que tais questões contribuem para pensar que o ambiente informático não é mesmo totalmente desprovido de materialidade. Tão pouco se pode dizer que há um grau menor de abstração quando se trata de sistemas analógicos (comparativamente aos digitais). O que nos parece é que, frente às especificidades dos aparelhos digitais e as novas condições de interação que nós (enquanto espectadores e criadores de conteúdo) experimentamos no contexto da cibercultura, muitos pensadores tendem a atribuir a essas especificidades a responsabilidade majoritária pelas noções de simulação e graus variados de abstração de algumas obras, quando na verdade, tais questões já se colocavam para artistas que entendem (ou entendiam) as mídias da imagem como essencialmente permeáveis e destinadas a produzirem simbologias, fantasmagorias (em detrimento de reproduções do cotidiano). Ou seja, a ênfase nas propriedades de simulação, na imaterialidade, na fluidez é teórica, enquanto que na prática há diversos exemplos indicando a anterioridade dessas questões no campo da imagem, reduzindo assim uma distância a priori entre mídias analógicas e digitais.

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Nas discussões a respeito de nosso corpus, e nas explanações a respeito do ruído como pontos importantes desta tese, retomaremos a perspectiva das materialidades da comunicação como instrumento de análise.

No campo da filosofia, temos em Flusser (2008) boas rotas de fuga às divisões excessivamente demarcadas entre as tecnologias, pois ele considera que a partir do momento em que as informações – e para ele informar significa dar forma33 – são produzidas por aparelhos,

estamos sempre operando com abstrações. Mesmo que uma imagem seja semelhante ao que esteve em frente ao dispositivo, ela resulta de transcodificações de sinais recebidos e interpretados de acordo com os parâmetros do dispositivo, o que termina por colocar num mesmo nível imagens digitais e analógicas. Os “aparelhos” – os dispositivos produtores de imagem para Flusser – têm a peculiaridade de serem desenvolvidos com base em conhecimentos científicos, e tais conhecimentos estão simbolicamente informando as imagens criadas. Quando diz que “a fotografia é consequência da recodagem de textos da ótica e da química” (FLUSSER, Nascimento da imagem nova34), o filósofo está dizendo que se observarmos com atenção,

encontraremos nas fotografias o pensamento científico sobre a ótica e a química de uma época, o que também se reflete em determinada reflexão crítica e estética sobre a fotografia.

Essas observações mostram que algumas reflexões que remontam à emergência do paradigma digital, ressaltaram questões apresentadas naquele momento como novidades, e porque não, superações em relação às tecnologias analógicas. Com o passar dos anos, os pesquisadores do campo da imagem, voltaram-se para outros temas e alguns posicionamentos e afirmações podem ser revisados, no sentido de que, do ponto de vista estético (que é o nosso interesse central), há tanto negociações quanto formas diferentes de produzir, disseminar e pensar a imagem, e experiências variadas que talvez nos impeçam de separar tão duramente analógico e digital. Podemos indicar diferenças, sem com isso estabelecer uma relação evolutiva entre os meios, ou reforçar ideias de que há tecnologias melhores quanto mais recentes forem. Como se o progresso técnico inexorável fosse algo natural (ZIELINSKI, 2006).

A seguir, analisaremos alguns exemplos que demonstram esse campo de negociações entre os sistemas analógico e digital, relativizando uma dicotomia entre eles, pois que considerar os empréstimos de elementos de cada um deles em alguns trabalhos artísticos, e mesmo a resistência de certos paradigmas às mudanças tecnológicas, são questões centrais em nossa

33 FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Ubu Editora, 2017.

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discussão, e apontam que o campo de produção das imagens contemporâneas é cada vez mais norteado pelo diálogo entre tecnologias, formatos e estéticas.