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4 RUÍDO, ERRO E IMAGEM

4.7 ERRO OU RUÍDO?

Nunes (Ibidem) faz uma pequena genealogia do termo “erro”, mapeando suas conotações nos séculos XVI, XVII e XVIII, todas elas negativas e relacionadas a movimentos de desvio. Bem, se tais períodos históricos são influenciados pela batalha filosófica entre mente e corpo, na qual o intelecto humano assume uma posição dominante, o erro e o ruído não poderiam ser vistos com bons olhos. “No Iluminismo, argumenta Deleuze, o “erro” funciona como um conceito delimitador para categorizar qualquer imagem de pensamento que não se coordene com a imagem ortodoxa do pensamento como um "reconhecimento" da verdade” (NUNES, 2011, p.9).98

O autor sugere uma discussão em torno de uma “poética do ruído”, abrangendo o conjunto de procedimentos e obras que se valem do ruído como efeito revelador de visualidades estranhas, diferenciais, e capazes de mexer com expectativas e paradigmas da esfera artística. Como se a “poética do ruído”99 assinalasse um esforço de tensionamento dos parâmetros estéticos, introduzindo como valor aquilo que antes fora negligenciado. Para tanto, seria necessário dirigir nossa atenção às estratégias de combinação dos meios e de que forma as tecnologias podem voltar-se contra si mesmas.

Figura 46 - New York City (Lee Friedlander,1966)

98

Tradução livre de:“Within the Enlightenment, Deleuze argues, “error” functions as a delimiting concept to categorize any image of thought that does not coordinate with the orthodox image of thought as a “recognition” of truth”.

Fonte: Reprodução internet

Especificamente no campo do fotográfico, Chéroux (2009) defende o erro como ponto de partida para diversos artistas desenvolverem suas obras, levando a própria mídia fotográfica a seus limites. Sua concepção do erro está relacionada exatamente a parâmetros de qualidade instituídos pela indústria fotográfica, e que foram largamente disseminados em manuais e consolidados no imaginário dos usuários. Para o autor, à medida que os erros começam a ser incorporados por artistas eles passam a habitar o universo das inovações fotográficas, abandonando uma conotação explicitamente negativa. Por exemplo, ele cita a presença da sombra de quem opera a câmera na imagem como um dos erros mais comuns entre amadores, que no entanto, tornou-se um recurso para inscrição de autoria (uma afirmação da presença de um sujeito ativo no processo fotográfico), sobretudo no contexto das vanguardas artísticas europeias, empregado por Moholy-Nagy, por exemplo, e que encontramos também na fotografia de Lee Friedlander (figura 46).

O que antes era apenas um defeito, tornou-se uma estratégia para contrariar a suposta objetividade fotográfica (associada a certa frieza do dispositivo), mas também uma manifestação da própria técnica. Além disso, se a luz contém a sombra (BAXANDALL, 1977) que surge por um esforço de intencionalidade, ela pode ser considerada um ruído, (algo contido, porém nem sempre manifesto), o que nos leva a enxergar uma aproximação entre os termos “ruído” e “erro” de uma perspectiva teórica da fotografia (além da proposta de Nunes no âmbito da cibernética).

Embora o erro esteja associado à ideia de falha, de mal funcionamento de um sistema, e o ruído seja essencialmente parte de qualquer corpo, estrutura, enfim, universo expressivo (o que aparentemente faria do primeiro um “defeito” e do segundo um “efeito”), esses dois conceitos não estão assim tão distantes porque a ocorrência do erro é uma presença “virtual” que se “atualiza” (DELEUZE, 1999)100, sob determinadas condições, e logicamente sua configuração

100 Ao contrário de uma relação negativa, o pensamento deleuziano considera o par virtual/autal a partir de uma relação de potência contida, de algo em vias de se expressar (não como externalidade), mas como parte constituinte da própria coisa. Entendemos que o erro, como parte integrante de quaisquer sistemas, pode ou não se materializar, provocar impactos nesses sistemas, e mesmo que não o faça, conserva-se como presença. É a partir desta ideia que se faz a associação entre o erro e o ruído e as noções de virutal/autal em Deleuze. Craia (2009) faz uma análise do virtual, em interlocução com temas importantes do pensamento deleuziano (como as questões da diferença e da ontologia), recuperando a influência do pensamento de Henri Bergson nesse sentido. Deleuze (1999), em seu livro dedicado à filosofia bergsoniana, discorre sobre as relações entre virtual e atual.

depende das características intrínsecas a um dado sistema mediante intervenção de algo (ou alguém).

De volta à fotografia, na abordagem de Chéroux (Ibidem) a utilização de todo um “repertório de erros” – que inclui desfoque, tremulações, descentralização de motivos, deformações, sobreposições, reflexos, mal uso do flash, efeito ‘olhos vermelhos’, saturação das cores – de modo criativo, delimita certa divisão entre o universo das práticas vernacular e artística.

Toda fotografia é julgada de maneira diferente segundo o lugar no qual se exibe a imagem, segundo as mãos nas quais se encontra, e sobretudo de acordo com os olhos de quem a contempla. A apreciação (sobre os erros) varia, por exemplo, segundo a filiação do autor – e por extensão daquele que observa – a uma das seguintes categorias: artistas, amadores ou profissionais.101 (CHÉROUX, 2009, p.47)

Concordamos que esta divisão entre amadores e artistas é relevante, na medida em que a identificação do erro na fotografia transfere-se de uma conotação meramente negativa para referir um valor estético, porém atualmente há um entendimento partilhado entre essas duas categorias sobre a noção de erro como um elemento surpresa, acolhido com simpatia quando passa a figurar na imagem. De algum modo, a natureza plural que caracteriza a imagem contemporânea já permite que mesmos erros “clássicos”, como os apontados pelo autor, sejam considerados parte de uma certa zona de indeterminação do dispositivo, que mesmo os amadores já não se recusam a aceitar exatamente porque no escopo da arte já se encontram reconhecidos e incorporados.

Fontcuberta (online, 2010)102 identifica que nos últimos anos, os resultados mais interessantes em criação fotográfica emergem dos usos vernaculares da imagem não associados à ideia de qualidade, o que para ele enseja uma renovação visual. Aprofundando-se nesse debate, Piper-Wright (2018) estuda as diversas motivações de ordem subjetiva e suas relações com o pensamento teórico-filosófico sobre a mídia fotográfica que explicam a presença e valorização do erro fora do circuito artístico, ou seja, entre usuários comuns. Para tanto, vem desenvolvendo um projeto chamado In Pursuit of Error103, no qual recebe imagens enviadas por amadores. Imagens

101

Tradução livre de: “Toda fotografia es juzgada de manera diferente según el lugar en el cual se muestra la imagen, según las manos en las que se encuentra y sobre todo de los ojos que la miran. La apreciación varía,por ejemplo, según la pertenencia del autor - y por extensión, del que la observa - a una de las siguientes categorías: artistas, aficionados o profesionales.

102

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LCByiio0adQ. Acesso em 10/02/2020.

103 Imagens e também com a produção teórica da autora sobre o tema do erro na fotografia contemporânea estão no site do projeto: https://inpursuitoferror.co.uk/. Acesso em 30/01/2020.

que “deram errado”. Para ela, a fotografia significa um agenciamento complexo entre as intenções humanas e o funcionamento do equipamento, e nessa interrelação há um espaço de abertura, invadido de certa maneira pelas circunstâncias espaço-temporais do ato fotográfico. Nesse espaço é que o erro, digamos assim, toma corpo:

O erro abre um espaço paradoxal entre a máquina e o humano e apresenta esse espaço como lacuna, uma aporia nas convenções da prática fotográfica tecnólogica e culturalmente. Essa aporia é uma zona rica em imaginação, surpresa e desconhecimento que tem sido explorada em si mesma por artistas ao longo dos anos104. (PIPER- WRIGHT, Ibidem, p.1)

Comparando imagens e relatos de usuários, a autora percebe que, seja o erro causado por mal funcionamento do equipamento ou ações não planejadas pelos usuários externas ao medium, para eles a causa é menos importante do que o resultado, e a tendência dominante é as imagens não serem descartadas. Ela distingue dois tipos de erro: os acidentais e os resultantes da manipulação do equipamento. Os primeiros seriam causados por uma subjetividade maquínica, atuando sem o controle nem conhecimento preciso do usuário do que se passa internamente no dispositivo. Já os outros vêm à tona com a intenção de subversão do “programa” da câmera (FLUSSER, 2011). Se tanto artistas quanto amadores são capazes de enxergar o caráter diferencial do erro como elemento criativo, o que distingue essas duas categorias de praticantes da fotografia seria, no caso dos primeiros, o fato de o erro emergir (curiosamente) em meio a processos de domínio bastante razoável da tecnologia, e de constante tensionamento do dispositivo como parte integrante de procedimentos deliberados. O que não se verificaria em relação aos fotógrafos amadores.

O erro deliberado usa a câmera contra ela mesma, pertubando os parâmetros para que se produza o erro na imagem. Enquanto há determinadas ações que podem ser previstas, também há situações em que o conhecimento de determinado resultado é parcial. Eu sei que reduzindo a velocidade do obturador obtenho um borrão, mas não posso prever o resultado da imagem apenas com base nessa intervenção. A situação que está sendo fotografada, bem como a luz e o tempo contribuem com elementos adicionais e imprevisíveis para o resultado105. (PIPER-WRIGHT, Ibidem, p.5)

104

Tradução livre de: “The photographic error opens up a paradoxical space between machine anda human and presents this space as a gap, an aporia in the conventions of photogrpahic practice both technologically and culturally. This aporia is a rich space of wonder, surprise and not-knowing which in itself has been explored by artists for many years.

105

Tradução livre de: “The deliberate error uses the camera against itself, disrupting the settings in order to produce an error image. While there are certain actions which can be predicted it is also the case that knowledge of a proposed outcome can only be partial. I might know that reducing the shutter speed will produce blur, but I cannot predict what the resulting image will look like based on that intervention alone. The situation been photographed, as well as light and time, will all contribute additional, unforseen elements to the resulting photograph”.

Estas reflexões sobre uma zona de fricção entre o controle e a imprevisibilidade envolvendo a noção de erro, ressoam as concepções dos artistas incluídos nesta tese sobre a interação destes com as tecnologias da imagem, mesmo que o estudo de Piper-Wrtight em questão seja dirigido a fotógrafos amadores. Para nós, seja nas fotografias de amadores ou no campo da arte, o erro expõe o caráter processual da fotografia (PIPER-WRIGHT, Ibidem), algo percebido igualmente por amadores e artistas, pois que todos reconhecem esse espaço de liberdade presente na nossa relação com as mídias, sendo capazes de entender a manifestação desse caráter processual como um valor estético.

Para além dos debates sobre apropriações de amadores ou artistas, interessa-nos aqui a variabilidade de abordagens que exprimem a concepção estética do erro, do ruído e da falha nas obras contemporâneas que pertencem ao universo das tecnoimagens (FLUSSER, 2008), em especial na relevância que estas vêm adquirindo nos anos recentes como verdadeiras problematizações de paradigmas centrais para o campo da fotografia. Nesse sentido, o estudo de Chéroux oferece outras contribuições que se alinham aos trabalhos presentes em nosso corpus.

Em muitos dos exemplos trazidos em seu livro, ele ressalta o potencial dos artistas para criar imagens que brincam com as noções de verossimilhança e o mimetismo. Segundo o autor, o erro também se relaciona com a alteração da função mimética da fotografia (CHÉROUX, 2009, p.188) – tema largamente explorado pelos movimentos da vanguarda artística europeia de meados de 1920, nas aproximações com o medium fotográfico106 – originando trabalhos em que muitas vezes nem é mais possível reconhecer os traços característicos dos objetos, ou mesmo de um rosto. Estes podem desfazer-se em linhas, pontos, pixels, deixando à mostra os elementos mínimos formadores da imagem, que passam a ocupar o centro de nossa atenção (em detrimento da função de reconhecimento das formas).