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A TUA PRESENÇA É BRANCA, VERDE, VERMELHA AZUL E AMARELA

4 RUÍDO, ERRO E IMAGEM

4.9 A TUA PRESENÇA É BRANCA, VERDE, VERMELHA AZUL E AMARELA

As experiências com os efeitos das cores na imagem também estão presentes em outros trabalhos de nosso corpus, podendo sua exploração ser entendida como mais uma forma de potencializar o ruído contido nos materiais empregados na produção das obras. As imagens de

Febre (2002) (figura 51), de Cris Bierrenbach, surgiram quase que de uma brincadeira na qual se

aplicou uma substância a uma cópia fotográfica, que aos poucos foi modificando completamente a imagem. A fotógrafa não sabia de antemão qual seria o resultado, e começou o processo apenas pela vontade de experimentar. Ela simplesmente se deparou com um retrato antigo, começou a manipulá-lo, e percebeu que o rosto começava a se desfazer, adquirindo uma tonalidade vermelha. A dissolução da fisionomia intensificava-se cada vez mais. A digitalização num

scanner desregulado ampliou o efeito das cores, e a artista achou então que o trabalho

representava perfeitamente sensações típicas das mulheres em períodos menstruais.

(...) Quando eu vi aquilo saturado eu falei: Uau! Foi completamente sem querer (...). Eu ia mexer, tentar fazer alguma coisa, mas eu nem precisei porque quando veio aquela coisa saturada, no vermelho, (...) aquilo falava comigo. Quando eu vi aquele negócio

desmontando, desfazendo. Foi tudo meio casual, mas quando eu vi aquilo, era pra mim tanto a representação de estados de espírito de raiva, de tensão, de sangue, de dor, de uma coisa menstrual (...). Eu tinha muita cólica de menstruação, eu precisava tomar anti- inflamatório pra passar dor então era assim: “eu falei, nossa eu acho que eu fico assim alguns dias”. É essa transformação, parece que é uma coisa que toma por dentro, sei lá (...). Tinha uma outra parecida e eu peguei a outra e comecei a fazer de outro jeito (...). (BIERRENBACH, 2018)

Com base na destruição de um rosto, aqui se constrói uma personagem estranha, que surge completamente da interação de substâncias aplicadas a uma imagem já processada, e posteriormente submetida à leitura do digitalizador. Em cada uma dessas etapas, os traços das mídias vão se acrescentando para compor a imagem final. É particularmente interessante a questão de uma leitura “desviada” feita pelo scanner resultar na saturação incomum do vermelho, e como essa fuga de um padrão cromático foi justamente o que interessou à fotógrafa. Através das várias fases de manipulação da imagem, essas cores foram sendo liberadas, pouco a pouco. Confrontando diretamente a representação mais clássica da identidade (o retrato), e promovendo a destruição de seus traços fisionômicos, a artista alcançou uma representação que cria uma identificação com qualquer mulher, porém não no nível descritivo, mas simbólico.

Figura 51 - Febre (Cris Bierrenbach, 2002)

Fonte: Reprodução site da artista

Artifícios que trazem à tona cores estranhas ao processo fotográfico tradicional também são parte essencial da série Noturnos (1998-2004), de Cássio Vasconcellos (figuras 52 e 53),

desenvolvida em cidades do Brasil, França e Estados Unidos. O intuito era fotografar com uma câmera Polaroid apenas ambientes noturnos, (alguns até pontos turísticos). Porém, além dos enquadramentos fechados que tornam irreconhecíveis alguns desses locais, foi utilizada uma luz adicional (lanterna ou holofote com filtro colorido), que alterou as tonalidades originais dos objetos frente à câmera.

Figura 52 - Aeroporto de Congonhas #4 (Cássio Vasconcellos, 2002)

Fonte: Reprodução site do artista

O despojamento de um equipamento como a Polaroid, cuja instantaneidade é marca registrada do elemento surpresa do fotográfico, combina-se nesse projeto com o fato de Vasconcellos ter realizado as imagens à medida que ia (re)descobrindo o espaço urbano, (primeiramente da cidade São Paulo) sem muita rigidez de planejamento. A ideia inicial era apenas lançar um olhar sobre as facetas escondidas de sua cidade natal. As andanças por lugares que normalmente estão submersos no vai-e-vem dos transeuntes, e o esquadrinhamento de um olhar atento às particularidades das formas, das linhas de edifícios, muros, das silhuetas desenhadas pela penumbra na superfície dos objetos, constrói uma paisagem cheia de vida que nasce dos cantos esquecidos exatamente pela força das cores. Vasconcellos arma uma estratégia técnica que permite fazer surgir das sombras noturnas uma profusão de cores. Na verdade, podemos dizer que a luz adicional depositada sobre formas de diferentes tonalidades, exprime o excesso de cada cor, ou seja, faz emergir uma potência escondida de cada azul, amarelo, verde, vermelho. O resultado é de um aspecto fantástico:

Como uma marca registrada, procuro a singularidade, o limite entre o real e o imaginário. Nessas fotos, particularmente, busquei formas de retratar uma visão pessoal e distinta. Tentei resgatar o que está invisível, ou o que não é tão explícito. Encontrar na fotografia a beleza escondida no comum, no caos, no feio (...). (VASCONCELLOS, 2002, p.6)

O caótico, a feiura, e o estranhamento que surgem do cotidiano, ou melhor que se esconde sob a pele da normalidade, são simbolismos bastante associados ao tema do ruído (HAINGE, 2013). Na série Norturnos, esse ruído é o desconhecido que nasce das formas construídas através de enquadramentos inclinados, de paisagens sem linha do horizonte, entrecortadas por placas, muros que se sobrepõem de maneira confusa às vezes, enganando o nosso olhar, que por sua vez encontra dificuldade em reconhecer aquilo que fita. E surge também da exploração dos efeitos da luz e da interpretação “errada” do sistema da Polaroid, que nos dá tonalidades novas. A apropriação poética da Polaroid inscreve-se numa tradição que de certo modo ironiza e critica a sofisticação dos dispositivos de imagem, representada por artistas como Andy Warhol (1928-1987), Paolo Gioli (1942- ), William Eggleston (1939- ), sendo este último fortemente interessado na questão da cor, assim como Vasconcellos.

Desde o início usei o mesmo tipo de câmera, uma antiga máquina Polaroid SX-70, da década de 70, um clássico da fotografia no seu estilo. Meu trabalho pessoal é basicamente em preto e branco. Cor somente em Polaroid que confere às fotos um resultado peculiar em resolução e textura, justamente o que me fascina. (VASCONCELLOS, 2002, p.6)

Nos dias de hoje, o formato vem sendo revisitado em projetos comerciais como o

Impossible Project108, que reveste seu negócio com uma aura de saudosismo perfeitamente adaptável ao estilo cool ao qual a estética Polaroid foi sendo associada ao longo do tempo (justamente pela investida dos artistas). Mas na proposta do fotógrafo paulistano, o dispositivo não é empregado nessa atitude saudosista nem tão pouco purista. Ela é desprogramada pela intromissão da luz adicional no processo (um elemento necessário já que todo o trabalho é noturno), o que contribui para um forte aspecto de artificialidade dessas imagens. As originais em

Polaroid ainda foram escaneadas e impressas em jato de tinta, ou seja, acrescenta-se ainda mais

uma “camada” de processamento da imagem. O autor quis inventar uma cidade surreal onde o

108

No site do Impossible Project toda a estratégia de venda dos produtos (câmeras e filmes) converge para uma ideia de autenticidade, ligada ao formato Polaroid como padrão da fotografia instantânea. Mas sem perder de vista o cenário de convergência dos meios, entre os produtos oferecidos já há um equipamento que recebe imagens digitais e imprime-as em formato Polaroid (o Polaroid Lab). Conferir: https://eu.polaroidoriginals.com/. Acesso em 07/02/2020.

burburinho e a agitação estão nas entrelinhas, implícitos numa espécie de tensão inaudita. Tais condições de um mistério escondido sob a aparência da calmaria já são lugar-comum no imaginário sobre a noite na literatura, no cinema, e ecoa a presença de um ruído contido, subentendido no conhecido, no comum.

Figura 53- Avenida Paulista #7 (Cássio Vasconcellos, 2001)

Fonte: Reprodução internet